• Nenhum resultado encontrado

4. A lógica na Modernidade

4.2. Leibniz

Se a lógica moderna não é exatamente destacada pelos historiadores da lógica, há uma constância sobre o fato de ter sido Leibniz o lógico mais importante da Modernidade. A sua importância advém de sua dedicação ao projeto de elaboração de uma característica

universal, ou seja, uma língua artificial cuja estrutura espelharia a estrutura do

pensamento. Leibniz defendia que a linguagem natural não era o veículo apropriado para o pensamento, ao menos não para o pensamento correto470. Com isso, pretendeu

transformar o raciocínio em cálculo471.

467 KNEALE, William Calvert; KNEALE, Martha. O desenvolvimento da lógica. Tradução de Manuel

Lourenço. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980, p. 321.

468 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 184.

469 KNEALE, William Calvert; KNEALE, Martha. O desenvolvimento da lógica. Tradução de Manuel

Lourenço. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980, p. 315-7.

470 "O grande filósofo e polímata Gottfried Wilhelm von Leibniz dedicou grande interesse à lógica e

desenvolveu numerosas idéias que anteciparam conquistas feitas dois séculos mais tarde. [...] Antes dos vinte anos, elaborou ele o projeto de construir uma lingua philosophica, ou characteristica universalis, língua artificial cuja estrutura espelharia a estrutura do pensamento. Estava ele convencido de que a linguagem comum, com sua ambigüidade, indefinição de contornos, impropriedades e elementos supérfluos não poderia constituir-se em veículo adequado para a comunicação nem mesmo para o pensamento." MATES, Benson. Lógica elementar. Tradução de Leônidas H. B. Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Editora Nacional e Edusp, 1967, p. 282.

471 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

Tal pretensão, que tanto o aproxima da contemporaneidade e da revolução da lógica matemática, não afasta a observação de Blanché acerca de sua situação dúbia na história da lógica:

A situação de Leibniz na história da lógica tem alguma coisa de ambíguo. Os lógicos modernos estão de acordo em ver nele o grande pioneiro, e em pô-lo na origem da sua geração. Ele é considerado como 'o criador da logística', 'o primeiro matemático-lógico', 'o pai da lógica simbólica'. [...] Só que uma restrição se impõe de imediato, como Scholz e Bochenski não podiam deixar de reconhecer. A relação da lógica leibniziana à lógica matemática contemporânea deve entender-se como uma relação de antecipação mais do que de paternidade ou, se se preferir, de analogia mais que de verdadeira influência (grifos nossos)472.

Na realidade, inobstante Leibniz tenha sido um pioneiro na construção da relação entre lógica e matemática, seus estudos lógicos permaneceram sem repercussão por bastante tempo, a ponto de ser possível dizer que a lógica contemporânea, cujo aspecto de maior destaque é ser uma lógica matemática, nasceu independentemente dos escritos leibnizianos. O que de fato ocorreu foi que o aparecimento da lógica matemática jogou luz sobre o trabalho de Leibniz473.

Feitas essas advertências iniciais, importa entender o projeto de Leibniz, que, tão

fascinado pela certeza, projetou uma característica universal que pudesse afastar as

ambiguidades.

O projeto de Leibniz foi, como ele mesmo precisou, o de criação de (i) uma língua

filosófica ou característica real, em que houvesse relação direta com as coisas, sem

passar por intermédio das palavras; e de (ii) uma característica lógica ou escrita racional, cuja sintaxe estivesse livre das contingências das gramáticas empíricas e que fosse acima de tudo um instrumento da razão474. Para tanto, "suas tentativas enveredaram por duas

472 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 191-2.

473 "Leibniz não poderá ser olhado propriamente como o criador da logística moderna, pois que esta nasceu

de maneira independente, ignorando os seus escritos lógicos. Poder-se-ia quase dizer que foi a relação inversa que funcionou, no sentido de que foi a nova orientação que a lógica tomou no final do século XIX que chamou a atenção de alguns dos seus promotores ou adeptos, como Russel ou Couturat, para os trabalhos de Leibniz e que reteve o interesse." BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 192.

474 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

vias diferentes: uma em que ele se inspira no modelo matemático, a outra em que ele parte das línguas naturais para tentar racionalizá-las"475.

As tentativas de Leibniz de elaboração de uma característica universal não foram totalmente realizadas – foram apresentadas algumas amostras parciais e muito imperfeitas. Contudo, isso não diminui a relevância de que ele introduz uma inovação real para a lógica, com a ideia subjacente ao projeto. É ele que inicia o movimento de cisão entre a lógica clássica476 – de Aristóteles até o século XIX – e a lógica simbólica, que remonta a Leibniz justamente em razão desse projeto. Ao se observar a tentativa leibniziana de elaboração de uma nova simbologia, nesse aspecto, especificamente, ele promoveu uma virada na lógica477.

Em tempo, Blanché explica como se deve compreender a expressão "língua característica universal": é de fato "uma língua, um sistema de signos regido por uma sintaxe, mas que tornou independente da língua, órgão de fonação: o que é assinalado pelo qualificativo de característica"478.

Leibniz pode ser visto como um precursor da lógica matemática porque a sua ideia de lingua characteristica universalis era um projeto de "um sistema de símbolos gráficos que sejam como que o alfabeto dos pensamentos humanos e graças aos quais mesmo os nossos mais complexos pensamentos possam escrever-se de maneira plenamente racional"479. Mas, repise-se, em sua pretensão de reduzir a matemática à lógica, ou seja, tentando comprovar que seria possível exprimir enunciados aritméticos termos puramente lógicos480, por meio de uma língua matemática universal, Leibniz apenas começou a trilhar o caminho481.

475 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 208.

476 Esta é uma das acepções possíveis para a expressão "lógica clássica". Outras são apresentadas ao longo

deste trabalho.

477 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 204.

478 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 206.

479 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 210.

480 "O logicismo é a tese (sugerida por Leibniz, mas desenvolvida em detalhe por Frege) de que a aritmética é

Se, por séculos, a palavra escrita tentou imitar a palavra falada, a passagem para a linguagem simbólica apresenta a fórmula escrita como o texto autêntico, com o enunciado oral a fornecer uma aproximação mais ou menos exata482.

O que se tentou demonstrar é que, se desde Aristóteles até aqui, houve um esforço de todos os estudiosos da lógica no sentido de conferir certeza ao raciocínio e credibilidade às conclusões, sendo que a partir de Leibniz, as dificuldades lançadas pela própria língua não serão sequer admitidas. O que se quer é conciliar a lógica, a ciência do bom raciocínio, com a pureza da matemática e sua linguagem simbólica. A partir daí, esse é o objetivo dos lógicos:

Depois de Leibniz, e conforme ele próprio começara a dar o exemplo, a lógica vai tender pouco a pouco desdobrar-se. A lógica dita clássica, encarada como revelando da filosofia, contentar-se-á as mais das vezes em prolongar, com algumas modificações mais ou menos felizes, as doutrinas recebidas, sujeitas à proposição atributiva e centradas na silogística, doutrinas aliás reduzidas muitas vezes às suas partes mais elementares, àquilo a que por vezes se chama a lógica menor. Mas ao mesmo tempo, e à margem dos trabalhos dos filósofos, essa lógica será também cultivada por alguns matemáticos que, mesmo permanecendo ainda largamente tributários do ensino tradicional, introduzem no entanto idéias e métodos novos. A ruptura entre as duas correntes só se consumará na segunda metade do século XIX; mas antes, durante perto de dois séculos, assiste-se (sic), nas fronteiras da ciência oficial, as tentativas variadas de introduzir nas especulações lógicas o espírito e os métodos da matemática483.

A pergunta que era insistentemente formulada é: não se poderá expandir o rigor e a certeza das matemáticas, por meio de seu método, a todo o conjunto da ciência, dentro do qual se encontra a lógica?484

lógicos, e de que, então, os teoremas aritméticos podem ser derivados de axiomas puramente lógicos." HAACK, Susan. Filosofia das lógicas. Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra. São Paulo: Editora UNESP, 2002, p. 34-5.

481 "Empenhado assim na via de uma matemática universal, Leibniz não fez no entanto mais que apontar a

sua direção."BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 209.

482 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 205.

483 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 223.

484 "A ideia, de origem cartesiana, renovada e precisada por Leibniz, conheceu uma grande aura no século

XVIII. Tal como Newton o fizera pela mecânica, não poderá alargar-se ao conjunto da ciência o rigor e a certeza das matemáticas, utilizando o seu método? Em que medida as próprias noções metafísicas e morais se prestação a um tal tratamento? Sempre atenta aos problemas da actualidade, a Academia de Berlim pusera em concurso para 1763 a questão de saber 'se as verdades metafísicas em geral e em particular os primeiros princípios da teologia natural e da moral são susceptíveis da mesma evidência que as verdades matemáticas',

Leibniz acreditava que a matemática, apreciada em razão de seu formalismo, era a única

garantia contra o erro485. Na realidade, "objetivo último de Leibniz era introduzir na moral, na metafísica e na teologia a mesma certeza que reina nas matemáticas"486. Mesmo nesse início de formulação de uma lógica simbólica, com base no modelo da álgebra, conseguiu-se elaborar uma característica alargada. Mas a realidade é que essa lógica não era universal, como pretendia Leibniz. Efetivamente, ela tinha como limite as disciplinas lógico-matemáticas ou ao aspecto lógico-matemático das outras disciplinas487. Cabe destacar, ainda que a título de curiosidade, que, como conta Blanché, Leibniz dava como exemplo de raciocínios formalizados a prática dos juristas: "Deve ter-se como certo que, como fizeram os matemáticos para as coisas necessárias, são os jurisconsultos que, para as coisas contingentes, praticaram melhor que todos os outros mortais a lógica, isto é, a arte de raciocinar"488.

Em suma, excetuado Leibniz, na Modernidade, encontra-se uma lógica estagnada. Isso se dá não porque a Modernidade não tenha sido uma época de engrandecimento da filosofia a das ciências, mas porque foi um momento de uma lógica abandonada. Eram outras as preocupações dos pensadores modernos. Isso não impediu, contudo, que fossem abertas as portas da lógica simbólica.

Por fim, Kneale denuncia que é a Modernidade, especificamente pela lógica do Port Royal, que vai ser culpada pelo "mau hábito de confundir lógica com epistemologia"489. Que se peçam desculpas pelo mau hábito, mas, de fato, para os fins deste trabalho, no âmbito da filosofia da lógica, numa realidade pós-moderna (no sentido temporal de que é após o

e Lambert esboçara uma resposta em que tomava resolutamente partido pela afirmativa." BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 227.

485 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 221.

486 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 222.

487 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 209.

488 BLANCHÉ, Robert; DUBUCS, Jacques. História da lógica. Tradução de António Pinto Ribeiro e Pedro

Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 212.

489 KNEALE, William Calvert; KNEALE, Martha. O desenvolvimento da lógica. Tradução de Manuel

evento Modernidade), é inviável traçar limites muito nítidos e rígidos entre ciência do bom raciocínio e ciência do conhecimento, vez que ambos são facetas do fascínio pela certeza