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Pontos cruciais na obra de Mireille Delmas-Marty para a apreensão do giro lógico

1. Começando pelo começo: o conjunto da obra de Mireille Delmas-Marty e as forças

1.2. Pontos cruciais na obra de Mireille Delmas-Marty para a apreensão do giro lógico

Alguns pontos que se destacam na obra de Delmas-Marty são primordiais para esta tese. São questões que se encontram difusas em seus trabalhos, mas que servem como pontos de partida específicos para a abordagem da universalidade dos direitos humanos como um problema lógico-epistemológico.

1.2.1. Conjuntos jurídicos

O primeiro deles é a abordagem dos ordenamentos jurídicos como conjuntos jurídicos (nacionais e internacionais)80.

A opção pela noção de conjuntos jurídicos, e não ordenamentos jurídicos, tem repercussão relevante. A primeira delas é que a ordenação dos elementos normativos não é um dado do qual se parte, mas um projeto de pluralismo ordenado que se deve alcançar. Além disso, é essa noção que permite pensarmos as ordens jurídicas como conjuntos em interação e que possibilita adotar as noções da filosofia da lógica para limite e para pertencimento.

Essa perspectiva não é simples, porque "os termos ‘conjunto’ e ‘elemento’ da Teoria Clássica de Conjuntos não têm definição, ou seja, são considerados noções primitivas"81. E a "noção de pertinência a conjunto é também considerada primitiva, ou seja, sem definição"82. Mas é possível adotar que "conjuntos podem ser caracterizados como uma coleção de objetos distinguíveis que compartilham alguns aspectos comuns, aspectos estes que os qualificam a pertencer ao conjunto. Os objetos que formam o conjunto são chamados de elementos do conjunto"83.

80 "Rien ne garantit le résultat mais les pratiques montrent déjà la possibilité de relier par de multiples

interactions, judiciaires et normatives, spontanées et imposées, directes et indirectes, des systèmes, ou plus largement des ensembles juridiques (nationaux ou internationaux), que l'histoire avait séparés et qui rejettent une fusion synonyme d'hégémonie." DELMAS-MARTY, Mireille. Le pluralisme ordonné et les interactions entre ensembles juridiques. In: Recueil Dalloz, 2006, p. 951.

81 NICOLETTI, Maria do Carmo; CAMARGO, Heloisa de Arruda. Fundamentos da Teoria de Conjuntos

Fuzzy. São Carlos: EDUFSCar, 2011, p. 5.

82 NICOLETTI, Maria do Carmo; CAMARGO, Heloisa de Arruda. Fundamentos da Teoria de Conjuntos

Fuzzy. São Carlos: EDUFSCar, 2011, p. 5.

83 NICOLETTI, Maria do Carmo; CAMARGO, Heloisa de Arruda. Fundamentos da Teoria de Conjuntos

O relevante aqui é compreender que a adoção da noção de conjuntos jurídicos permite a comparação entre seus elementos, a constatação de suas interseções, coincidências, sem que, para isso, seja necessária a ideia de hierarquia e verticalidade entre as diversas coleções.

Ainda, é a partir dessa noção que podemos falar em conjuntos difusos – e consequentemente, conjuntos jurídicos difusos –, ou seja, conjuntos em que os limites são indeterminados. Nesse sentido, é importante apresentar, desde já, a ideia do que é um conjunto difuso (fuzzy), em contraposição aos conjuntos determinados (crisp), e suas implicações:

Conjuntos fuzzy são usados para modelar informação vaga. De maneira simplista, a noção de conjunto fuzzy pode ser abordada como uma generalização da noção clássica de conjunto (referenciado como conjunto crisp), que objetiva representar conjuntos cujas fronteiras não estão claras. Conjuntos fuzzy são particularmente úteis para representar conceitos imprecisos. Como visto anteriormente, a função característica de um conjunto crisp atribui valor 0 ou 1 a cada elemento do conjunto universo, discriminando, com essa atribuição, os elementos que pertencem ao conjunto crisp, sendo definido, daqueles que não pertencem. Quando da definição de um conjunto [fuzzy], sua função característica pode ser generalizada de maneira a associar a cada elemento do conjunto universo um valor, em um determinado intervalo, que reflete o grau de pertinência do elemento ao conjunto sendo definido. Tal função é chamada função de pertinência e o conjunto definido por ela é o chamado conjunto fuzzy. O grau de pertinência de um elemento do conjunto universo a um conjunto fuzzy expressa o grau de compatibilidade do elemento com o conceito representado pelo conjunto fuzzy84 (grifos nossos).

Em suma, a adoção da noção de conjunto jurídico, por Mireille Delmas-Marty, é essencial para a ruptura lógica com a oposição entre direitos humanos universais e diferenças culturais. É preciso imaginar o conjunto dos direitos humanos como coleção de elementos normativos com aspectos comuns e que cujos limites são indeterminados, ou seja, um conjunto difuso.

1.2.2. Globalização econômica e mundialização jurídica

O segundo ponto primordial para a tese é o de que a globalização econômica não é oposta à mundialização jurídica, nem aos direitos humanos universais. Na realidade, deixado o

84 NICOLETTI, Maria do Carmo; CAMARGO, Heloisa de Arruda. Fundamentos da Teoria de Conjuntos

idealismo de lado, "se os direitos humanos aparecem como nossa bússola, a economia é o verdadeiro motor da mundialização"85.

O mais relevante é observar que a globalização tem repercussão enorme na dinâmica de interação dos conjuntos normativos. É principalmente em razão da globalização econômica que é impossível crer em uma autonomia perfeita dos diferentes ordenamentos. As relações comerciais sem fronteiras precisam de segurança jurídica, que só pode ser dada por um direito mundial. E são os direitos humanos que possibilitam um direito mundial legítimo e sustentável, inclusive em termos econômicos.

É fato que há uma globalização econômica em curso, à qual deve corresponder uma globalização política e jurídica. A comunicação entre conjuntos normativos diversos ocorre por meio dos direitos humanos, e não contra eles. Isso por quatro razões: necessidade de segurança, necessidade de legitimidade, natureza fundadora e natureza universalista dos direitos humanos86. Em outros termos, os direitos humanos aproveitam o impulso universalizante da economia globalizada e a globalização se sustenta das condições mínimas de participação da vida pública criadas pela mundialização, na qualidade efetiva de trabalhador, de consumidor e, principalmente, cidadão.

Além disso, essa abordagem colabora para o distanciamento de uma perspectiva ingênua da universalidade dos direitos humanos e privilegia a adoção de uma compreensão dos direitos humanos universais como dinâmica de aproximação entre os diversos conjuntos jurídicos.

Por fim, o interessante é que, observados de perto, os dois processos – globalização e mundialização – mesclam-se. Isso porque, "da imprecisão dos direitos do homem à flexibilidade da economia, a mundialização tem em comum que ela impõe uma transformação dos modos de argumentação lógica"87.

85 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um direito mundial. Tradução de Fauzi Hassan

Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 3.

86 DUBOUT,Edouard; TOUZE, Sébastien. La fonction des droits fondamentaux dan les rapports entre ordres et

systèmes juridiques. In: DUBOUT,Edouard; TOUZE, Sébastien (orgs.). Les droits fondamentaux: charnières entre ordres et systèmes juridiques. Paris: Pedone, 2010. p. 16-22.

87 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um direito mundial. Tradução de Fauzi Hassan

1.2.3. Fascínio sobre o laboratório europeu

A construção de um direito comum da Europa é razão de grande interesse para a presente tese. Esse interesse decorre menos do relativo sucesso de integração que a Europa obteve nas últimas décadas, e mais da admissão do múltiplo nessa construção. Nesse sentido, a obra de Delmas-Marty aponta a Europa como laboratório da ruptura lógica com a relação exclusivamente binária entre diferentes tipos de ordenamentos jurídicos.

Admitindo que a combinação dos conjuntos não se dá de forma pré-determinada, a coexistência do direito supranacional europeu com a manutenção de uma margem nacional de apreciação – cuja extensão será analisada com acuidade mais tarde – é um exemplo primoroso da convivência da lógica clássica com a lógica difusa no panorama jurídico. Em termos simples, não é mais possível falar, de antemão, em sim ou não para a revisão pela Corte Europeia da forma como a norma comunitária foi aplicada em determinada situação, pois tal definição depende do reconhecimento ou não, no caso, da referida margem. Essa transformação é, antes de tudo, lógica:

Vimos, de fato, como o reconhecimento de uma margem – margem nacional de apreciação para poupar as suscetibilidades nacionais, margem européia de controle para preencher as lacunas dos textos europeus – transformara o raciocínio jurídico suscitando o aparecimento de uma escala de graduação e de um limiar de decisão (precisamente o limiar de 'compatibilidade') que escapam às regras da lógica clássica. Vimos também em quais condições esse tipo de raciocínio podia obedecer a uma lógica diferente – a lógica dos subconjuntos vagos – que garanta a um só tempo o rigor da argumentação e a flexibilidade das decisões 88.

Na Europa convivem os diversos conjuntos jurídicos nacionais, o conjunto do direito da economia comum, o conjunto dos direitos humanos europeus e os conjuntos de direitos internacionais. Aparentemente, a desordem deveria ser completa. Mas não é. Evidentemente, não se pode querer visualizar um ordenamento jurídico coeso e coerente frente a tamanha complexidade. Mas é possível, sim, ver uma ordem – uma nova ordem: é possível vislumbrar um pluralismo ordenado. E a chave de legitimação desse fenômeno é

88 DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. Tradução de Ermantina de Almeida Prado Galvão.

mesmo a ética dos direitos humanos, que deve orientar a interpretação das normas e a relação dos conjuntos89.

Além das observações específicas apontadas acima, vale ressaltar as lições de Marcelo Dias Varella sobre a relevância das situações experimentadas do laboratório europeu:

A União Europeia serve como um lócus de experimentação de novas formas de integração, que ensina lições boas e ruins para os demais sistemas em transformação. Dificilmente os demais sistemas caminharão pelos mesmos passos do modelo europeu. No entanto, pode-se afirmar que se vive um laboratório com experiências intensas de internacionalização de normas no espaço europeu, um espaço cada vez mais importante, em função da integração progressiva de Estados, com projeto de incorporação de novos Estados a médio espaço de tempo. Essas experiências servem como um exemplo do processo de internacionalização do direito, em especial sobre a forma de construção do direito e de expansão do bloco (a), a partir de um processo de legitimação das estruturas supranacionais (b) e mesmo a construção de uma cidadania (c), que acarreta uma erosão dos sistemas estatais soberanos (d) 90.

Diante disso, a Europa é um laboratório fascinante do pluralismo ordenado dos conjuntos normativos difusos. É possível vislumbrar, na Europa, uma admissão do múltiplo na conjugação direitos humanos e especificidades nacionais. E, por isso, assim como na obra de Delmas-Marty, ela será exemplo reiterado neste trabalho.

89 DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. Tradução de Ermantina de Almeida Prado Galvão.

São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 266.

90 VARELLA, Marcelo Dias. Internacionalização do direito: direito internacional, globalização e