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3. Pensar o múltiplo

3.2. Tempo interativo

3.2.2. Pluralismo de ritmos

Nos locais de intercâmbio, no espaço de compatibilização de direitos humanos e particularidades, encontram-se tempos históricos diferentes: do mundo, dos Estados e das pessoas. E mais: encontram-se ritmos jurídicos variados, o tempo das leis, dos processos, dos costumes.

130 "Le temps des droits de l'homme est irréversible quelles que soient les réactions produites, au point

d'imposer le principe de l'imprescriptibilité aux crimes contre l'humanité, précisément parce qu'ils mettent en cause les droits essentiels qui touchent à la dignité au sens le plus forte du terme." DELMAS-MARTY, Mireille. Trois défis pour un droit mondial. Paris: Seuil, 1998, p. 102-3.

131 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 214.

132 BOITEUX, Elza Antonia Pereira Cunha. A constante axiológica dos direitos humanos. In: BENEVIDES,

Maria Victoria de Mesquita; BERCOVICI, Gilberto; MELO, Claudineu de. Direitos humanos, democracia e república: homenagem a Fábio Konder Comparato. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 385.

O pluralismo ordenado dos direitos humanos tem que lidar, necessariamente, com este

pluralismo de ritmos. A ordenação dessa pluralidade deve combinar de forma mais justa,

inclusive no sentido físico, i.e. da forma mais ajustada, as diferentes velocidades da vida jurídica, para que o diálogo seja possível133.

Mas ajustar velocidades não pode, em nenhuma hipótese, confundir-se com a imposição de um ritmo específico, da história de determinada comunidade cultural. Como alerta Ricoeur: "... direitos à diferença vêm continuamente contrabalançar as ameaças de opressão ligadas à própria idéia de história universal, se a realização desta é confundida com a hegemonia de uma sociedade particular ou de um pequeno número de sociedades dominantes"134.

O desafio é, justamente, alcançar uma sincronização que permita preservar uma margem

nacional de tempo. Delmas-Marty fala, a respeito, fala que esse processo deve levar à

aceitação de uma espécie de policronia135.

Como será visto a seguir, o pluralismo ordenado prestigia mais a harmonização de normas que a uniformização. De maneira análoga, para além de uma sincronia, o diálogo pelos direitos humanos exige, de forma privilegiada, uma policronia, ou, como explica Delmas- Marty, a convivência de velocidades variáveis, de acordo com os Estados, dentro um mesmo espaço jurídico136.

133 "Le pluralisme ordonné, c'est aussi l'art de mélanger les rythmes et de combiner au plus juste - ici encore

d'ajuster - les vitesses aux énergies, et aux inerties, propres à chaque societé. De même que l'espace normatif mondial n'a pas supprimé l'espace national, ni empêche l'apparition d'ensembles régionaux, le temps mondial n'a pas supprimé le temps historique, ni celui des États ni celui des régions." DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit II: le pluralisme ordonné. Paris: Seuil, 2006, p. 199.

134 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. T. III. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus,

1997. p. 371.

135 "Mais la tentation pourrait être alors de prétendre imposer le même rythme à tous les États. D'où

l'hypothèse, qui reste à vérifier, que, pour rester pluraliste, toute synchronisation devra préserver un tempo national, c'est-à-dire une marge nationale dans le temps et pas seulement dans l'espace. Autrement dit, l'hypothèse selon laquelle la synchronisation pourrait conduire à accepter une certaine polychronie." DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit II: le pluralisme ordonné. Paris: Seuil, 2006, p. 226.

136 "Mais, si l'on admet que la synchronisation, comme l'harmonisation, ne doit pas être confondue avec

l'uniformisation, il reste à explorer les possibilités offertes par la notion de 'polychronie', c'est-à-dire par l'usage, mais dans un même espace juridique, des vitesses variables selon les États." DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit II: le pluralisme ordonné. Paris: Seuil, 2006, p. 201.

Assim como admitir o múltiplo para o direito parece ser temerário, pensar o direito em velocidades diferentes também pode ser assustador. Mas a policronia não se confunde com a assincronia, ou seja, a ausência de interseção, em que as normas estariam em tempos e espaços diferentes. A conjugação dos locais de intercâmbio e dos tempos interativos é fundamental para a harmonização de normas137. Na policronia, a compatibilização de normas ocorre em velocidades diferentes no mesmo local de intercâmbio138.

A diversidade de velocidades na produção do direito e das reações entre os diferentes conjuntos normativos também serve para lembrar que a imposição da aceleração nem sempre é positiva. Como salienta Ricoeur, a ideia de tempo acelerado parece fortemente ligada à ideia de progresso. É em contraste com a aceleração do tempo que se pode falar em reação, atraso139. Mas, então, o cuidado deve ser redobrado. Cada ator da

compatibilização dos direitos humanos tem um tempo, que deve ser respeitado, sem uma acusação automática de atraso.

É nesse sentido que se pode falar em um direito ao tempo – um direito ao seu tempo, ao seu ritmo. Faz parte da consolidação de direitos humanos universais com respeito à diversidade a construção de um futuro de garantias, mas de acordo com os seus objetivos140.

A compatibilização de normas entre o conjunto dos direitos humanos universais e os diversos conjuntos jurídicos nacionais depende da revisão da ideia de progresso e da utopia

137 "Pour nécessaire qu'il soit, le travail sur le temps normatif (à plusieurs vitesse) ne peut être isolé d'une

réflexion sur l'ordre (à géométrie variable) et l'espace (à plusieurs niveaux). C'est sans doute la condition pour que la polychronie favorise une synchronisation pluraliste des divers ensembles normatifs." DELMAS- MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit II: le pluralisme ordonné. Paris: Seuil, 2006, p. 253.

138 "Inhabituel dans le champ juridique, ce terme de 'polychronie' traduit l'idée d'une différenciation dans le

temps qui consiste à admettre que les dispositifs juridiques puissent se transformer à des vitesses différents dans un même espace. Distincte de l'asynchronie (des vitesses différentes dans des espèces différents), la polychronie, parfois évoquée à travers l'expression d'une Europe 'à plusiers vitesses', devrait permettre la relance du processus d'intégration..." DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginantes du droit II: le pluralisme ordonné. Paris: Seuil, 2006, p. 227.

139 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. T. III. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus,

1997, p. 364.

140 "Il s'agirait de rappeler tout d'abord une prérogative généralement négligée: le droit au temps – on veut

dire le droit à son temps, le droit à son rythme. Chacun, groupe ou individu, doit pouvoir avancer à sa cadence (ou ne pas avancer); mieux: chacun doit pouvoir construire son histoire, découvrir sa 'diagonale' inédite entre durée et moment, et prendre dans cette voie les 'initiatives' qui lui paraissent s'imposer. Chacun doit pouvoir reconstruire un passé selon son expérience et construire un futur selons ses attentes." OST, François. Les temps du droit. Paris: Odile Jacob, 1999, p. 31.

de um futuro melhor sem ancoragem na realidade. Essa utopia pode inviabilizar o caminho do pluralismo ordenado:

[...] Se a crença em tempos novos se baseia em expectativas que se afastam de todas as experiências anteriores, então, a tensão entre experiência e expectativa só pôde ser observada no momento em que seu ponto de ruptura já está visível. A idéia de progresso que ainda vinculava ao passado um futuro melhor, tornado ainda mais próximo pela aceleração da história, tende a ceder lugar para a da utopia, tão logo as esperanças da humanidade perdem toda ancoragem na experiência adquirida e são projetadas num futuro propriamente sem precedentes. Com a utopia, a tensão torna-se um cisma. [...] É preciso resistir à sedução de expectativas puramente utópicas; elas só podem desesperar a ação; pois, na falta de ancoragem na experiência em curso, elas são incapazes de formular um caminho praticável dirigido para os ideais que elas situam 'alhures'141.

O próprio ritmo dos processos históricos dos direitos humanos é diverso, é múltiplo. Como apontam Ost e Kerchove, a temporalidade dos sistemas jurídicos é múltipla: o tempo mítico da fundação, o tempo de permanência da dogmática jurídica, o tempo retrospectivo dos costumes jurídicos, o tempo prospectivo das leis e dos códigos142. Mas é a quinta forma de temporalidade dos sistemas jurídicos que parece reger o pluralismo ordenado: é o tempo de alternância entre o avanço e o regresso, o tempo que oscila entre tradição e antecipação, memória e previsão, costume de longa duração e lei racional143. Na realidade, inobstante a maior representatividade desse tempo espiral, são as inúmeras combinações temporais do direito que se destacam na compatibilização de direitos: movimentos de aceleração e processos de estabilização144.

O processo histórico dos direitos humanos é contínuo e cumulativo, mas compreende velocidades variáveis. Essa variedade faz desse um caminho verdadeiramente humano,

141 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. T. III. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus,

1997, p. 370-1.

142 KERCHOVE, Michel van de; OST, François. Le système juridique entre ordre et désordre. Paris:

PUF, 1988, p. 225-8.

143 "Nous pouvons enfin dégager une cinquième forme de temporalité, sans doute le plus représentative de la

racionalité juridique. On pourrait la qualifier des temps 'd'alternance entre l'avance et le retard', pour reprendre une des classifications de G. Gurvitch: un temps qui oscille entre tradition et antecipation, mémoire et prévision, coutume de longue durée et loi prométhéene. On se rapproche plus encore de la realité en concevant ce temps sur le mode de la spirale: évolution cumulative qui progresse sans se renier jamais. Nous parlerons donc de temps cumulatif qui caractérise une manière de changement dans la continuité, de progrès qui se superpose aux acquis du passé sans jamais s'y substituer totalement." KERCHOVE, Michel van de; OST, François. Le système juridique entre ordre et désordre. Paris: PUF, 1988, p. 228.

144 "On imagine sans mal les innombrables combinaisons auxquelles ces diverses temporalités juridiques

peuvent donner lieu: on observera tantôt des mouvements d'accélération, dans les périodes historiques 'chaudes' de bouleversements sociaux, tantôt des processus de stabilisation, dans les périodes historique "froids'." KERCHOVE, Michel van de; OST, François. Le système juridique entre ordre et désordre. Paris: PUF, 1988, p. 228.

pois faz emergir a finitude da condição mortal. É porque é realizado pelos homens que os direitos humanos são uma luta constante. E por isso traduzem a abertura a um tempo novo, irredutivelmente plural e bastante indeterminado145.

Em suma, é também por esse tempo interativo que a ciência da lógica clássica não satisfaz a compatibilização de normas de direitos humanos universais e direitos nacionais. O tempo das ciências clássicas era imutável para satisfazer leis eternas, mas é a ciência contemporânea – como a lógica difusa – que se inclina à aleatoriedade, à indeterminação e à incerteza146.