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L C Holborow e a Admissão de uma Linguagem Privada Dependente

No documento Behaviourismo e Cepticismo em Wittgenstein (páginas 44-51)

Um artigo mais talhado para a discussão do problema do behaviourismo em Wittgenstein é da autoria de L. C. Holborow e intitula-se Wittgenstein´s Kind of

Behaviourism? (The Philosophical Quarterly, vol. 17, No. 69). Neste artigo, o autor não

consegue esconder alguma discordância em alguns aspectos com o pensamento de Wittgenstein, como veremos adiante.

Nele, Holborow começa por abordar, entre outras coisas, o célebre argumento

da linguagem privada de Wittgenstein. Para isso, dirige uma crítica ao artigo de C. W.

(The Philosophical Quarterly, Jan. 1966, pp. 35-46) que, por sua vez, apontaria algumas falhas ao pensamento de Wittgenstein. Segundo Holborow, Mundle nota acertadamente que o argumento do diário é colocado de tal forma que se o diarista pode dar uma descrição ou revelar a natureza da sensação E, então tal não serve como exemplo de uma experiência privada. A restrição por parte de Wittgenstein do termo privado a sinais que parecem não ter justificação em português parece não fazer sentido para Mundle dado que ele não vê razões para Wittgenstein objectar se E está a ser usada para descrever sensações com palavras da nossa linguagem comum, dado que estas, para Wittgenstein, não são utilizadas habitualmente para descrever sensações privadas. Todavia, não é a possibilidade da utilização de E neste sentido permitido que preocupa Wittgenstein, mas sim a utilização que o diarista faz da sensação num sentido proibido. Não há aqui, portanto e para Holborow, qualquer tipo de mal-entendido porque esta ideia resulta da maneira, por exemplo, como podemos ensinar o vocabulário de dor. Podemos ensinar o vocabulário de dor somente se houver expressões públicas de dor e também podemos concluir que qualquer palavra que represente uma sensação exprimível pode ser ensinada sem necessidade de uma linguagem privada.

A abordagem do argumento da linguagem privada começa, para L. C. Holborow, nas secções 243-4 das Investigações Filosóficas com uma descrição da aprendizagem dos nomes das sensações. É relevante notar que esta é uma descrição de como podemos aprender a dar o nome às sensações e não uma aprendizagem de tudo quanto podemos fazer com as palavras depois de as termos aprendido, como Mundle parece fazer crer, segundo Holborow. As sensações privadas imediatas referidas nas IF, na secção 243, são diferentes das experiências interiores que podem ser exprimidas na nossa linguagem comum, as sensações privadas imediatas são efetivamente privadas já que não têm aquilo a que Wittgenstein chama uma expressão natural. Segundo Holborow, Wittgenstein ficaria satisfeito com a existência de experiências que não são exprimíveis em linguagem ou outro tipo de comportamento, mas o que ele pretende negar é que pudesse haver uma linguagem que se referisse a experiências que são

radicalmente privadas, quer dizer, experiências sem qualquer tipo de expressão natural.

Na secção 259, Wittgenstein pergunta pelo que é isso de dar o nome à sensação e como é que tal poderia constituir uma regra, para, em 260, concluir que até agora o sinal E não desempenhou qualquer função. De acordo com Holborow e na sequência das secções anteriores, a secção 261 mostrar-nos-ia que nenhuma regra poderia seguir-

se de se ter dado o nome à sensação porque sensação é uma palavra da nossa linguagem corrente que precisa de uma justificação pública de um tipo que o diarista deve abandonar se quiser chamar à sua linguagem uma linguagem radicalmente privada (a expressão é de L. C. Holborow). A questão de saber se poderá existir um qualquer tipo de linguagem privada permanecerá em aberto durante mais algumas etapas deste artigo.

A. J. Ayer é lembrado e citado neste artigo quando defende que não há diferenças substanciais entre reconhecer um objecto privado e reconhecer um objecto público (The Concept of a Person, London, 1963, pp. 41-2). Mas as primeiras considerações de Holborow em relação ao argumento de Wittgenstein sobre a linguagem privada apontam num outro sentido no que concerne a distinção entre reconhecimento de um objecto privado e reconhecimento de um objecto público. É que o nosso diarista não estabeleceu um critério para a definição ostensiva interior e muito menos um critério para a utilização do sinal E. Ayer não aprecia esta parte do argumento de Wittgenstein porque ele defende que, neste particular, a linguagem pública não está em melhor posição do que a linguagem privada porque o que quer que torne a emissão de um som ou a inscrição de alguns riscos na significação de um sinal pode muito bem funcionar em ambos os casos, quer a linguagem seja pública quer a linguagem seja privada.

Em jeito de resposta a parte deste argumento, Holborow sublinha que em nenhuma parte Wittgenstein afirma que fornecer uma definição ostensiva do cariz proposto por Ayer é suficiente para que a pessoa seja compreendida e Wittgenstein reitera que uma definição deste tipo pode ser interpretada erradamente. No início das

Investigações, Wittgenstein salienta o facto de que a nossa relação com o mundo não é

de tal forma que torne a definição ostensiva num método eficiente de ensino, no entanto, é claramente errado supor, segundo Holborow, que Wittgenstein queira defender que só pelo facto de eu não poder dar uma definição ostensiva de uma palavra, eu não posso ter sucesso em atribuir um significado a essa palavra ou a qualquer outra. Isto é tanto mais certo quanto em IF, 288, Wittgenstein descreve como é que se poderia ensinar o significado da palavra dor a alguém que não o soubesse de todo e isto não tem nada que ver com a definição ostensiva de um objecto.

Seguindo ainda a linha de pensamento de Holborow, Mundle faria uma tentativa gorada de defesa de uma linguagem privada quando defende o argumento do diário como um contra-exemplo às ideias de Wittgenstein de negação da existência de uma linguagem privada. O diarista com problemas de estômago que o seu médico não

consegue diagnosticar faz afirmações que não são privadas em várias acepções. Expressões como problemas estomacais, dores de estômago ou malditas dores não são

radicalmente privadas porque nós podemos ensinar o seu uso da mesma forma que nós

ensinamos o uso da palavra dor. Porém, isto não é suficiente para sensações designadas pela letra E, pois este sinal representaria não só qualquer tipo de dor de estômago, mas também um tipo de sensação especial que a pessoa que a sofre consideraria inexprimível na nossa linguagem pública.

Holborow riposta, considerando que nem Mundle nem Wittgenstein estão totalmente certos, admitindo a existência de uma linguagem parcialmente privada. No entanto, admitir a existência de uma linguagem deste tipo não é considerar que o argumento wittgensteiniano do diário não é um argumento forte. O autor não está em desacordo total com a perspectiva wittgensteiniana.

Wittgenstein socorre-se de um cenário em que uma determinada sensação daria origem a um aumento da pressão arterial registada num manómetro. Para Holborow, que segue o caminho trilhado por Wittgenstein, a relação da sensação com essa alteração no organismo de alguém seria apenas uma relação de contingência porque a subida da pressão arterial não está relacionada com esta sensação da mesma forma que as expressões da dor estão relacionadas com a dor. Não se trata efectivamente de um facto contingente quando gemo e contorço-me quando sinto dores muito fortes. O que Wittgenstein quer mostrar é que uma relação contingente deste tipo não consegue apoiar a ideia que eu terei eventualmente identificado uma sensação privada.

No caso da repetição das duas sensações já descritas (a dor de estômago particular e a sensação associada ao aumento da pressão arterial), Wittgenstein afirma que não há lugar para a correcção ou para o erro. Tanto no caso da sensação especial representada pelo diarista pela letra E como no caso da sensação registada pelo manómetro, a única razão que nos leva a considerar que eles tiveram a mesma sensação é que eles utilizaram o mesmo sinal nas duas ocasiões diferentes. Não há lugar em Wittgenstein para duas sensações privadas exactamente iguais. Por outro lado, esta forma de colocar a questão não pode fazer-nos esquecer que a falta de uma justificação independente num caso específico – e aqui Holborow coloca-se ao lado de Wittgenstein – não impede uma afirmação que inclua uma sensação porque para Wittgenstein quando eu, em circunstâncias normais, afirmo que estou com dores não tenho necessidade de qualquer justificação ulterior.

Holborow imagina também um cenário. Imaginemos que duas pessoas discutem se a intensidade de um choque eléctrico seria algo semelhante a um ataque brutal com agulhas e alfinetes. Provavelmente estariam de acordo que se tratava de tremores, mas a concordância ficaria por aí porque quanto à intensidade e descrição do choque eles estariam inclinados a dizer coisas diferentes. A sensação experimentada pelo diarista é, no entanto, de um registo diferente do abordado neste último cenário.

Seria importante notar que, para Wittgenstein e segundo Holborow, nestes casos ou nestes cenários, não há lugar para a dúvida: (…) duvidar se eu estou com dores não quer dizer nada (IF, 288). Holborow vê, no entanto, estas últimas palavras como um erro se é que está em causa a impossibilidade de alguma vez dar sentido a estas palavras. Seria verdade que muitas vezes é de facto impossível duvidar se alguém está com dores, mas pelo menos em casos em que alguns pacientes manifestam dores internas, pelo menos a princípio, o grau de incerteza é maior e, para Holborow, onde há lugar para a incerteza pode haver lugar para o erro, pelo menos a princípio. Pela nossa parte, corroboramos esta posição de Holborow, no sentido que pode haver efectivamente sensações internas de tal maneira particulares onde não haja lugar a qualquer tipo de exteriorização e onde a dúvida se há alguma sensação a ocorrer se pode colocar.

Todos estes casos citados por Holborow não implicam a retirada das objecções iniciais do autor à ideia da existência de qualquer coisa como a privacidade radical das sensações. Quando o autor afirma que talvez pudéssemos tomar uma sensação por qualquer coisa que não ela, Wittgenstein recusa esta posição, no entanto, o autor corrobora a posição do filósofo austríaco quando este defende que não há um critério privado de identidade para as sensações. Porém, o número de casos abordados perfaz também a extensão do desacordo com Wittgenstein, nomeadamente nos casos em que se pode duvidar da presença da sensação.

Para Holborow, é claro, por exemplo, que Mundle se enganou ao assumir que Wittgenstein defendia que nós nunca poderíamos falar sobre as nossas próprias imagens mentais. Este erro resultaria do facto de ele não distinguir entre experiências

radicalmente privadas e outras experiências que são privadas num sentido menos

problemático. Uma linguagem privada dependente seria admissível para Holborow no caso de sensações internas particularmente distintas e, como já vimos, sem uma exteriorização, pelo menos num momento inicial.

Podemos pensar que a afirmação do diarista pode ser corroborada no futuro pelo facto de ele ter padecido de uma úlcera e outros poderão afirmar que padeceram do mesmo tipo de úlcera que teve associada a mesma sensação diferente de qualquer outra. Esta hipótese é colocada por Holborow para justificar as suas posições, mas Wittgenstein não está tão certo disto. Wittgenstein utilizaria para se justificar a distinção que faz em IF, 354 e 376 (ref. de Holborow), entre critérios e sintomas. A partir desta distinção, se o tipo de úlcera sofrido corresponde a um critério para identificação da sensação, nada de errado veria Wittgenstein nesta hipótese, mas se a úlcera sofrida pelo paciente é apenas um sintoma associado à sensação, então há necessidade de uma verificação independente de tal sensação. Holborow não subscreve a proposta de Mundle que afirma que não é necessária qualquer comprovação quando se verificam condições fisiológicas semelhantes que dariam origem a sensações semelhantes em diferentes pessoas. Holborow, embora discordando deste princípio considerado isoladamente, utiliza-o para subscrever que ele é útil para a confirmação das nossas

expressões da sensação e, como tal, se verificarmos também que cada um de nós é

capaz de ter a mesma sensação E, então o princípio referido poderá ser salvaguardado e aplicado.

Mundle aceita o modelo do argumento dos escaravelhos-na-caixa (o cenário traçado por Wittgenstein em que eu não sei se o que está na caixa é um escaravelho ou outra coisa qualquer, acrescido do facto de não saber o que se passa nas caixas dos meus vizinhos até dada altura) mas rejeita as suas consequências. Mas se o comportamento e a descrição das sensações dão razões tão boas como as supracitadas para a compreensão do que está envolvido na identificação de uma sensação, então o modelo escaravelhos- na-caixa já não teria nenhum papel a desempenhar. Como Mundle sublinha, segundo Holborow, é uma característica das coisas tais quais elas são que cada uma das pessoas saiba o que é um escaravelho apenas pela observação do escaravelho que está na sua caixa, porém Mundle também admite que podemos dizer o que está na caixa olhando para fora dela. Deste modo, Mundle vê-se forçado a admitir que as palavras para a sensação estão naturalmente amarradas às nossas expressões naturais das sensações (a citação é de Wittgenstein lembrada por Holborow). Para Wittgenstein, a evidência suscitada pelas expressões naturais das sensações não se podem desligar das palavras para a sensação, embora ele admita, num outro contexto, que haja sensações sem manifestações naturais, sem nunca admitir, no entanto, uma linguagem privada para essas sensações.

Holborow, em coerência com o teor do seu artigo, procura destacar-se da posição de Wittgenstein que afirma que a caixa não é de modo algum transparente. Para Holborow, a caixa é, pelo menos em parte, transparente. Alguns aspectos mais gerais do que estaria dentro da caixa podem ser naturalmente transmitidos aos outros, mas aspectos mais precisos do seu interior só são acessíveis ao proprietário da caixa. Para Wittgenstein, no entanto, afirmações sobre o que está dentro da caixa não têm sentido. Justifica-se aqui uma tomada de posição da nossa parte: só o proprietário poderá ter acesso a pormenores peculiares que envolvam o conteúdo da caixa, qualquer que seja esse conteúdo porque nenhuma sensação é susceptível de uma transmissão exacta.

L. C. Holborow admite como se tem visto um ataque, embora parcial, à proposta de Wittgenstein de rejeição de uma linguagem privada defendendo uma linguagem parcialmente privada. Ora, esta ofensiva tem por base a concepção de que uma linguagem parcialmente privada admitiria, pelo menos, a existência de sensações especiais – que podem ser qualia – que não teriam uma exteriorização, manifestação ou verbalização tão óbvias como Wittgenstein admite. Admitimos que a posição de Wittgenstein no argumento da linguagem privada não é fácil. A rejeição de uma linguagem privada para as sensações, no entanto, corre o risco de querer tornar público tudo o que pertence a uma interioridade que algumas vezes não encontra expressão nas palavras da nossa linguagem comum e portanto pública. É esta visão radicalmente exteriorista que Holborow rejeita, admitindo, muito embora, que Wittgenstein teria razão se não radicalizasse o discurso e admitisse a existência de algum tipo de expressões confinadas a uma expressão meramente privada. Que eventualmente ninguém percebesse, especularíamos nós.

No sumário deste artigo que Holborow empreendeu é sublinhado que a interpretação de Wittgenstein que ele esboçou difere da de Mundle na medida em que a interpretação de Mundle apresenta um Wittgenstein preocupado apenas em negar o que Holborow chamou uma linguagem privada independente, enquanto os pontos de vista do autor diferem dos de Wittgenstein na medida em que, embora concordando que não pode haver uma linguagem privada radicalmente independente, pode haver, contudo, uma linguagem privada dependente.

Wittgenstein não é, segundo Holborow, apesar desta divergência, um behaviourista em qualquer dos sentidos conhecidos relevantes e esta afirmação é perfeitamente compatível com a insuficiência do argumento do diário e do argumento dos escaravelhos que já foi registada por Holborow: “(…) but that he was no

behaviourist in any important sense is not only compatible with the diary and beetles arguments, but also apparent in various other passages not mentioned by Mundle (…)” (p. 357).

No documento Behaviourismo e Cepticismo em Wittgenstein (páginas 44-51)