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Warren Goldfarb versus Saul Kripke

No documento Behaviourismo e Cepticismo em Wittgenstein (páginas 33-38)

Outro autor mais ou menos de acordo com as posições de Wittgenstein é Warren Goldfarb (filósofo e matemático cujos interesses são a lógica e a história da filosofia analítica, dos quais se destaca Wittgenstein), e nomeadamente no seu artigo Kripke On

Wittgenstein On Rules (The Journal of Philosophy, vol. 82, No. 9).

Para este e quanto às atribuições de significado, nós justificamo-las no momento em que sentimos necessidade de o fazer, o mesmo é dizer que nós esclarecemos obscuridades gramaticais em relação a factos e a nossa vida não sofre alterações devido

a essas situações. No entanto, e mais importante do que isto, é Goldfarb considerar que o desafio céptico se funda em considerações ontológicas, pois estas questionam se tudo o que existe fosse colocado diante de nós, se nós estaríamos em condições de retirar as atribuições de significado correctas a partir dessa realidade diante de nós. Kripke, no entanto, contenta-se em suscitar meras possibilidades de atribuições à margem do padrão comunitário (quais em vez de mais em WRPL). É a noção de tudo o que há, segundo Goldfarb, que deve fornecer a base para o desafio céptico porque se nada no mundo nos permite colocar uma questão entre uma ou outra possibilidade de atribuição de significado, então não há nenhuma questão a ser levantada, ou seja, não há lugar para questões como as que apontam para saber se há quaisquer razões específicas para duvidar de uma atribuição de significado. Para Goldfarb, é a noção de facto ou a noção de tudo o que há que deve servir de base à compreensão do desafio céptico.

O peso desta noção pode talvez ser avaliado recorrendo à forma como Gottlob Frege se confrontaria com o paradoxo céptico. Segundo Goldfarb e de acordo com Frege, não podemos nunca estar numa posição de dúvida genérica sobre se as palavras que usamos ou as afirmações que proferimos têm significado. A concepção fregeana de facto impede-nos de pôr em causa o nosso acesso imediato ao reino do significado, quer isto dizer que não podemos, de forma alguma, pôr em causa a existência de factos semânticos.

Por outro lado, o fisicalismo que Kripke apresenta em boa parte de WRPL como hipótese de fundamento para as atribuições de significado é no entanto modificado pela admissão de sensações simples e introspectivas e as suas qualidades concomitantes (o fisicalismo é uma corrente contemporânea da filosofia analítica que se equipara, de alguma forma, ao materialismo que o precedeu e que reduz o estatuto do ser humano – ou a mente humana melhor dizendo – a uma base significativamente biológica, mas não só, como é evidente). Dadas quaisquer perspectivas implícitas nesta posição, Kripke defende que os factos do significado irredutíveis podem apenas ser factos do significado mentais que têm qualidades introspectivas – como já vimos – e semânticas.

O problema das atribuições de significado tornou-se familiar a partir das críticas de Noam Chomsky ao behaviourismo e tem por base as limitações humanas e a consequente necessidade de frases caeteris paribus. Quer dizer que se, seguindo W. V. Quine (um reputado behaviourista), nós entendermos uma disposição como um estado físico que provoca uma determinada resposta a um estímulo específico, então qualquer pessoa que possua essa disposição deveria inexoravelmente dar sempre essa resposta a

esse estímulo. Contudo, segundo Goldfarb, as pessoas têm capacidades finitas e são, entre outras coisas, propensas ao erro, à apatia e a lapsos de atenção. Ninguém tem uma disposição (no sentido quineano) para responder correctamente porque ninguém tem a capacidade de apresentar sempre o comportamento verbal correcto. A posição de Kripke é salientar que a caracterização da relação do comportamento com o significado requer por si só a utilização de noções de significado e, por conseguinte, não há um modo estritamente fisicalista de apontar um estado físico que possa ser identificado com querer dizer uma palavra de uma determinada forma.

Segundo Warren Goldfarb, para alguém que defenda razões internas para as atribuições de significado, as verdadeiras justificações dos juízos de correcção das respostas estariam escondidas, seriam factos profundamente inculcados no nosso cérebro. No entanto, Kripke, quando afirma que o facto deve mostrar como é que eu

estou justificado, parece querer dizer que as justificações devem, de alguma forma, ser

transparentes (WRPL, pp. 27-37, referência de Goldfarb). O reducionista não poderia aceitar isto, segundo Goldfarb, porque se há uma resposta-padrão reducionista a esta questão que diz que estes estados físicos não são o que nós pensamos conscientemente quando atribuimos usualmente um significado, qualquer que ele seja, e, por isso, não parece que nós estejamos a tecer quaisquer considerações de ordem fisiológica, isto é, a elaborar sobre estados físicos ocultos, mas parece que para Goldfarb é isso que nós estamos a fazer, tal como nós falamos implicitamente sobre constituição molecular quando afirmamos que um copo qualquer está cheio com água.

Ao dar-nos a perspectiva fisicalista do facto, Kripke pode estar a querer dizer, segundo Goldfarb, que o arsenal conceptual não precisa ser utilizado na resposta a este problema e, considerando mais aturadamente esta questão, o arsenal conceptual explorado por Kripke é difícil de avaliar. Apesar disto, sempre segundo Goldfarb, o seu desafio céptico associa a ideia que as nossas práticas comuns do significado exibem qualidades conceptuais que devem ser preservadas (normatividade, transparência, etc.) com a ideia que dessas práticas não resultam justificações das nossas atribuições de significado.

Para este autor, Kripke defende que é permitido atribuir um significado ou aderir a uma regra se a pessoa responder da forma que ela estiver inclinada a responder – e a inclinação desempenha um papel importante em Goldfarb no que a seguir regras diz respeito. Esta questão também é trazida à colação para explicar o comentário de Wittgenstein que afirma que, em alguns casos desse tipo, pensar que alguém estava a

obedecer à regra seria a mesma coisa que obedecer à regra (IF, 202, referência de Goldfarb). Este é um claro apoio a um argumento de Wittgenstein, mas a inclinação, pensamos, não permite justificar que a regra está a ser cumprida porque ela não corresponde a um facto que garanta que a regra esteja a ser cumprida.

Kripke entende que a comunidade – tal como em Wittgenstein de certa forma – pode fornecer o que é necessário para distinguir entre aquilo que alguém está inclinado a dizer e aquilo que é exigido para uma atribuição permitida do significado. Nestes termos, a consequência extraída quando se afirma que qualquer coisa que alguém tome por correcta é correcta, numa eventual linguagem solitária, como a descreve Goldfarb, cai por terra. Levantar questões sobre as razões últimas que orientam a decisão entre possibilidades de significado é irrelevante porque a normatividade é abandonada no que respeita às justificações anteriores necessárias à correcção de respostas futuras no âmbito das atribuições de significado.

Goldfarb, na esteira de Wittgenstein, sublinha que, se nós começássemos, tal como Wittgenstein nos exortaria a fazer, do usual, então o desafio céptico nunca poderia surgir porque ninguém pode descrever tudo o que existe sobre uma pessoa salientando a linguagem que a pessoa fala.

Ainda neste artigo, é sublinhado que Wittgenstein não coloca o ónus da fundamentação do que é seguir uma regra sobre o acordo dentro de uma comunidade. O acordo, segundo Warren Goldfarb, está implícito e é exibido no seguir-regras, mas não o fundamenta: “ (…) Wittgenstein, however, puts no such onus on agreement, I believe. Agreement is exhibited in rule following, but does not ground it.” (p. 485). Este argumento, partilhado de certa forma por Wittgenstein, e o facto concomitante da impossibilidade de fundamentação do seguir-regras pelo acordo dentro da comunidade, não implica que o ponto de vista de Goldfarb, apoiado em Wittgenstein, não defenda que o perguntar pelas razões tenha de parar em algum lugar.

As preocupações de Wittgenstein são, no entanto, diferentes das de Kripke. Para começar a esclarecer estas divergências, podemos abordar com Goldfarb a passagem com a qual Wittgenstein começa a tratar a questão de seguir regras.

Nas Investigações Filosóficas, secção 185, Wittgenstein apresenta o cenário de uma criança refractária que escreve a sequência +2 correctamente até 1000, mas após esta sequência escreve erradamente 1004, 1008, … e torna-se, desta forma, resistente à correcção. O cenário por esta altura parece ter-se alterado substancialmente. Muitos comentadores, Kripke inclusive, interpretam Wittgenstein como estando a usar o

cenário para justificar que nada esclarece ou determina como continuar a sequência. Este cenário, segundo Goldfarb, porém, não é de molde a dar razão aos intérpretes de Wittgenstein porque o cenário apresenta um caso a partir do qual nós podemos pensar que a criança compreendeu, mas vemo-nos forçados a reconhecer que a criança não compreendeu o que estava em causa. A resistência da criança à correcção é de alguma forma bizarra, mas se nós não conseguimos que ela compreenda o que queremos dizer por continuar da mesma maneira, então a conclusão pode ser, naturalmente, que a criança não é capaz de compreender o que nós queremos dizer. Mais precisamente, para Warren Goldfarb, nada a obriga a continuar da forma que nós entendemos como correcta, no entanto, a questão da forma de continuação é, num certo sentido, determinada: no sentido em que se ela quer continuar a série que nós lhe pedimos para continuar, então ela deve continuar escrevendo 1002, 1004, 1006… Este cenário traçado por Wittgenstein e aproveitado por Goldfarb para fazer valer os seus pontos de vista é uma clara resposta à interpretação céptica que Kripke faz da questão de seguir uma

regra em Wittgenstein.

A resposta àquilo que seria seguir regras – nomeadamente através do exemplo – não funciona dirigindo a atenção para qualquer coisa que vá para lá da própria resposta. Wittgenstein é claro quando afirma que nós falamos e agimos e isto está implícito em tudo o que se diz. Esta é a única resposta às dúvidas cépticas, nota Goldfarb.

Goldfarb termina este seu artigo com uma clara contestação a uma tese defendida por Kripke: a tese que afirma que o argumento da linguagem privada estaria plasmado na secção 202 das Investigações Filosóficas. Para Goldfarb, o argumento da

linguagem privada não é dado na secção 202 e não surge imediatamente das ideias de

Wittgenstein, na mesma obra, sobre aquilo que se quer dizer com seguir uma regra. Este argumento só se pode associar ao argumento da linguagem privada através da ideia de verificação daquilo que pode fornecer uma noção de fixação da correcção em cada caso. Uma verificação deste tipo é a tarefa das catorze secções que se situam entre a proposta de Wittgenstein de uma linguagem privada na secção 243 e a secção que apresenta o argumento da linguagem privada propriamente dito, isto é, a secção 258: “(…) Such an examination, I take it, is the task of the fourteen sections between Wittgenstein´s proposal of the idea of a `private language´ in 243 and the section containing the private-language proper, 258.” (p. 488). Parece-nos que a Wittgenstein repugnaria menos esta tese de Goldfarb do que a menos ortodoxa advogada por Saul

Kripke, porque é em algumas das secções apontadas por Goldfarb que Wittgenstein ataca efectivamente a possibilidade de uma linguagem privada.

No documento Behaviourismo e Cepticismo em Wittgenstein (páginas 33-38)