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II. A DEMOCRACIA

2.3 LEGITIMIDADE E AUTORIDADE: PROCEDIMENTO E

O ser humano, por mais evoluído técnica e cientificamente, no fundo continua sendo o mesmo ser das comunidades tribais e primitivas, com o agravante que essa evolução nos tornou mais perigosos pelo acréscimo à nossa capacidade destrutiva. E é frente a essa capacidade inerente à face animal do ser humano que sempre se procurou resolver os conflitos entre membros comunitários sem confronto, mas mediante decisões de determinados membros do grupo com essa atribuição, o que está radicado na idéia de autoridade, onde: ‘... a comunidade delega a um indivíduo ou um grupo de indivíduos a possibilidade de por fim a um conflito mediante a correspondente decisão, que será normativa quando tendente a estabelecer critérios para a solução de conflitos.”133

No entanto a autoridade existe se há a aceitação ou submissão por parte dos governados, do contrário dá-se a impossibilidade de que haja respeito ou concordância com suas decisões e comandos. Só há comando se houver submissão, só há autoridade se houver consenso, assim haverá governo se houver concordância e aceitação no reconhecimento da envergadura em qualidades de governante ou, simplesmente, de uma legitimação formal e respectiva submissão134.

133 MORCHON, Gregório Robles. TEORIA DEL DERECHO, Editora Civitas, Madrid-Espanha, volume I, 1998, página 41.

134 LA BOETIE, Etienne de. DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA, Edições Antígona, tradutor Manuel J. Gomes, 1986, páginas 19/69, Lisboa:

Ora o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso defendermo-nos dele.

De qualquer forma, a autoridade é necessidade decorrente da vida em grupo e em sociedade, decorrendo do motivo pelo qual se dá o agrupamento de seres humanos, objetivando o bem comum, para a obtenção de vantagens mediante a colaboração dos que convivem; contrariamente, sozinho, o indivíduo não conquistaria. Assim, a finalidade da autoridade, a originar o governo, é o bem comum da sociedade e de cada um de todos os indivíduos que a compõe135. A autoridade deve se estabelecer, frente a todo o dito mediante o consenso de que proporcionará o bem comum e, para isso, faz o uso do monopólio da força.

A força pura e simples gera violência, para que se possa estabelecer o Direito, a bem de eliminar a violência, é indispensável o poder que é proveniente da capacidade humana de agir em conjunto a fim de, inclusive, criar e manter norma jurídica garantidora e heterônoma, pelo que indispensável o consenso e a conquista e manutenção do poder legitimado por ele136, por outra perspectiva, só o consenso é capaz de transformar violência em poder (autoridade) legalmente instituído de forma duradoura, instituindo-o pela legitimidade da norma jurídica que, com a coerção, obriga aos eventuais dissidentes137, dependente, ainda, pela ação da autoridade no exercício de suas atribuições delimitadas pelo ordenamento jurídico.

Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo.(página 25) 135 MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. A LEGITIMIDADE DO DIREITO POSITIVO, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1992, páginas 144 e seguintes.

136 FARIA, José Eduardo. PODER E LEGITIMIDADE, Editora Perspectiva, 1978, São Paulo, páginas 79/80.

137 PIRES, Wagner Ginotti. O PRINCÍPIO DA LEGITIMIDADE, in Cadernos de Teoria Geral do Direito, sob coordenação de Renan Lotufo, Juruá Editora, 2.000, São Paulo, página 177.

Mas é suficiente um consenso estabelecido e a coerção para a legitimidade da norma jurídica? Não, pois a legitimidade é pressuposto fundamental da democracia e ambas têm como pressuposto a liberdade-participação, sendo o povo quem governa, não é ele sempre o mesmo nas diversas e mutáveis vontades que se formam138. De fato, a participação do povo em todo o processo político, e não apenas eleitoral, é fator de grande diferenciação entre Estados mais ou menos desenvolvidos política, democrática e economicamente, em especial a dirimir as maiores chagas da desigualdade econômica, decorrente, também, da exclusão na formação cidadã e, por decorrência, no seu exercício apropriado, qual seja, participação ativa e responsável na vida pública, o que só se faz possível com supressão das necessidades naturais ao ser humano em sociedade139.

Daí porque Konrad Hesse140 analisa a diferenciação funcional das expressões ‘sociedade’ e ‘comunidade’ frente ao Estado, pois, como expõe, a primeira seria em boa parte, excluída da determinação e conformação política do Estado, a quem apenas cabe garantir os pressupostos de um processo

138 BURDEAU, Georges. A DEMOCRACIA, Publicações Europa-América, 3ª Edição, tradução de Paulo António dos Anjos, páginas 15/16.

139 ARENDT, Hannah. DA REVOLUÇÃO, Editora Universidade de Brasília, omitido o tradutor, 1990, páginas48/50:

... Pobreza é mais que privação, é um estado de constante carência e aguda miséria, cuja ignomínia consiste em sua força desumanizadora;a pobreza é abjeta, porque submete os homens ao império absoluto de seus corpos, isto é, ao império absoluto da necessidade, como os homens a conhecem a partir de sua experiência mais íntima independente de todas as especulações. ...

Pois se a condição de miséria – que, por definição, nunca pode produzir “gente de espírito livre”, porque é a condição de sujeição à necessidade – era para gerar revoluções, ao invés de levá-las à ruína, seria necessário traduzir condições econômicas em fatores políticos, e explicá-las em termos políticos.

140 ESCRITOS DE DERECHO CONSTITUCIONAL, Centro de Estudios Constitucionales, 1983, páginas 12 e seguintes.

submetido a suas próprias leis e intervir em caso de perturbações. Comunidade, por sua vez, designaria a colaboração humana dentro do território do Estado, conformadora do mesmo numa perspectiva democrática e social contemporânea, decorrente de sua organização

responsável e planificadora da cooperação social,

determinadora de sua participação no Estado e do respectivo processo político, posto que o Estado não pode trabalhar sem que seja no interesse social, já que está sob o Direito, a condicionar a conduta humana em conformidade com a aceitação do acordo básico a respeito do cumprimento e dos conteúdos da ordem jurídica.

De fato, o mais importante é o significado que os autores dão aos termos no sentido de expressar a necessidade de participação do povo de todo o processo político, de toda a vida pública, muito além do mero ‘cumprimento de um ritualismo eleitoral’141.

E é frente ao grau de complexidade crescente e carecedor de estruturas, de competências e de procedimentos capazes de reduzir essa complexidade assegurando ordem social vinculada e materialmente consensual ao povo, que torna indispensável o procedimento para, por exemplo, viabilizar a manifestação dos interesses sociais diante do, e no, poder.

141 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Revista de Direito Administrativo no. 183, ano 1.991, páginas 66/74: deixando claro existir controvérsia no que respeito ao conceito de ‘comunidade’, afirma existir ‘...certo consenso em considerá-la uma agregação instintiva, que se desenvolve em torno de interesses vitais compartilhados em razão da consangüinidade ou da convivência no mesmo local.’, ao passo que ‘... à sociedade, aceita-se como elemento caracterizador a consciência, no grupo, de interesses derivados comuns que não poderiam ser satisfeitos individualmente.’, acrescentando além, que só nesta ‘... começa a transcender da concentração em pessoas para uma concentração em instituições. ...’.

Em que pese não seja o único elemento para a legitimação das normas jurídicas e das decisões judiciais, o procedimento traz importantes elementos à legitimação para a sociedade contemporânea, quais sejam, o procedimento constituinte legitima o poder que cria a constituição em seu aspecto formal, a sua justa atuação contribui para a legitimidade material da constituição (aspecto material).

E é no aspecto material – primordialmente frente à liberdade e igualdade de todos diante da lei e frente ao princípio da soberania popular142 - que reside a legitimação, enquanto valor democrático, a revelar o fundamento do poder constituinte, a elaborar e revisar a Constituição formal do Estado, enquanto:

- O poder do domínio público depende da legitimidade como base justificadora.

- A legitimação deriva do povo

- É o povo quem tem o poder de disposição e conformação da ordenação político-social.

Assim, cada norma e decisão deve ser individual e

concretamente fundamentada, pelo que, com o

desenvolvimento social, se deve procurar outras formas de legitimação, diferente de uma moral apresentada naturalmente sem antes ser aprofundada no próprio sistema político e social, onde o poder aceita ou orienta o processo de legitimação, inclusive criando a obrigatoriedade de decisões, em abstrato,

capazes de determinar a igualdade de probabilidades de obter decisões satisfatórias143.

Assim, a legitimidade deve estar presente nas decisões, originando o Direito, e nas respectivas premissas, no seu processo que deve ser legitimador, a determinar o reconhecimento da obrigatoriedade das leis, decisões judiciais, atos administrativos, etc.; a fim de que o grupo social minoritário ou o indivíduo contrariados, com fundamento em auto responsabilidade e na crença na forma de emissão das decisões e no seu conteúdo, enquanto legítimas, mude dentro de um contexto de expectativas conformando-se à decisão, não sozinho como indivíduo ou grupo, mas com o apoio social.

Implica, portanto, quando for o caso, na necessidade de um estudo verdadeiro dentro do sistema social que permite descobrir como o sistema parcial político (Executivo, Legislativo e Judiciário) através de suas decisões pode alterar as perspectivas integrando novas expectativas em outros sistemas, dentre os quais o social. Estabelecendo sem causar considerável transtorno de funções144 e, ao mesmo tempo, determinando a atuação da força de ruptura, do movimento, da inovação, do revolucionário.

Dessa forma, ‘o trabalho político-jurídico, o cuidado na votação dos programas isolados de decisão e, do mesmo modo, a retórica jurídica e o talento dos magistrados administrativos na aplicação do direito, ou do juiz, constituem momentos do processo de legitimação’, num processo efetivo

143 LUHMANN, obra citada, página 31, realista que é, reconhece a postura autoritária em que o poder político institui seu próprio sistema de legitimação, o que, em termos democráticos, é questionável . 144 LUHMANN, obra citada, páginas 32 e seguintes.

de comunicação145 onde o procedimento não é um fim em si mesmo, mas desempenha um papel de abrir caminho para soluções intrinsecamente justas146.

Cabe ao Estado o poder de decidir em última instância, nesse procedimento, positivando o Direito na consecução do bem comum, tornando-o efetivo em conformidade com os respectivos deveres integrados no ordenamento jurídico, segundo o estabelecimento da extensão de sua competência, os modos de exercício e os fins objetivados, sem o que não haveria legitimidade147.

Há o entendimento de que a legitimidade se estabelece na crença na legalidade da prescrição normativa apoiada não em conteúdos jurídicos, mas no procedimento legislativo adotado que transmita a impressão do debate e superação das idéias, ainda que de resultado não legítimo, sobrevivendo, no entanto, o pensamento de que a justiça se formou contrário senso148. Canotilho, por sua vez, rejeita aquele entendimento ensinando que a Constituição além da resultante de relações de poder é a ordenação justa dos interesses e da pressão das forças sociais149.

De outra forma, não haveria como falar-se racional o procedimento, que só pode sê-lo se estabelecido coerentemente com um determinado fim; se destinasse à legitimidade, a ela deve ater-se o procedimento enquanto

145 LUHMANN, obra citada, página 35.

146 CANOTILHO, obra citada, páginas 113/114.

147 REALE, Teoria ..., 5ª. edição, obra citada, página 341.

148 FERRAZ JÚNIOR, Constituinte..., obra citada, páginas 64/65. No mesmo sentido Max Weber in ECONOMIA E SOCIEDADE, na doutrina de legitimação legal-racional, apud Luhmann, obra citada página 30.

objetivo a ser alcançado, nenhum outro que não tenha sido previamente projetado no procedimento poderá ser eficiente ou legítimo, menos ainda racional150.

De fato, o direito se reproduz no fluxo do poder regulado pelo Estado de Direito que se alimenta das comunicações de uma esfera pública política enraizada nos núcleos privados do mundo da vida, através de instituições da sociedade civil.

Dessa forma, o fardo das expectativas normativas se desloca do nível das qualidades, competências e espaços da ação de atores, para o nível das formas de comunicação, onde se desenvolve informalmente e não institucionalizadamente a formação da opinião e da vontade. É a dialética entre sujeitos de ação privados e estatais substituída pelas formas de comunicação entre as esferas privadas e públicas do mundo da vida e pelo sistema político. São as formas e os modos de comunicação que podem fazer nascer o direito legítimo da mesma forma que faz emergir o poder político, a partir das autonomias privada e cidadã dos membros da comunidade151.

Pois a comunicação, como modo e meio de obter a prestação de contas de todo membro do poder público, assim como modo de imprimir em sua atuação a expressão da vontade popular, é o único procedimento que permitirá, inclusive, a gestão (no mais amplo senso) pública da coisa 149 Obra citada, página 111.

150 ELSTER, Jon. ULISES Y LAS SIRENAS’, Fondo de Cultura Económica, 1989, México, página 75: ensina o procedimento racional – partindo do pressuposto que não somos perfeitos nem inteiramente racionais – depende de ‘atar-se a si mesmo’, ou seja, atar-se a seus objetivos determinadores do procedimento que adaptado ao atingimento de tais fins, se posto o procedimento em prática de outra qualquer forma, muda-se os objetivos, deixa-se a racionalidade do procedimento de lado a favor de qualquer outro interesse neles representados.

pública e em favor do público, não do particular; deve haver, daquele que ocupa qualquer cargo estatal - assim como se exige do ser social - comprometimento, não omissão, para que toda e qualquer decisão seja capaz de desencadear processo causal legitimador dela própria e do poder exercido pelo homem público152; pelo consenso racionalmente apurado em esforço coeso a fins colimados e não pela força arbitrariamente exercida ou ardil que ilude, aliena e esvai o esforço e a coesão no decorrer do processo, sem o esclarecimento dos agentes.

2.3.A LEGITIMIDADE DA NORMA JURÍDICA: