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I. O ESTADO

1.3 SOCIEDADE CIVIL E SOCIEDADE POLÍTICA

A ‘sociedade civil’ só pode ser compreendida a partir da dicotomia que conserva com a ‘sociedade política’, de fato, ‘é a esfera das relações sociais distintas da esfera de relações políticas’.

52 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL, editora Saraiva, 32ª. Edição, São Paulo, páginas 102 a 106, ensinando que a instrução para o cidadão a permitir-lhe capacidade política é necessariamente prática e experimental, além da alfabetização do ensino formal.

Tal concepção restou fortalecida pelo ideal Liberal moderno a afirmar a existência de direitos naturais pertencentes ao ser humano e aos grupos sociais, anterior e independentemente do Estado.

É a tese contratualista, de associação voluntária e pactuada, onde o homem teria vivido inicialmente em ‘estado de natureza’, onde não havia instituições políticas, optando por viver em sociedade política pela necessidade de proteção aos seus interesses – liberdade, vida e propriedade – com o fim, portanto, de dar cumprimento e atendimento à vontade geral, enquanto síntese das vontades individuais.

Por outro lado, há a tese que defende a origem natural da sociedade, onde o homem é, por natureza, um ser social e político, que só sendo vil ou muito elevado o ser humano viveria fora da sociedade, no primeiro caso porque não aceito e no segundo porque em contato com a sua divindade interior ou, ainda, por isolamento decorrente de acidente, como no caso do náufrago numa ilha deserta. Fundam-se seus seguidores ser da essência do ser humano a associação a outros, pois o único meio de satisfazer suas necessidades está na convivência e cooperação com seus semelhantes, que beneficiará a todos, pois permite que seja aproveitado e beneficiado, o homem, das energias, dos conhecimentos, da produção e da experiência dos outros, acumuladas

através gerações, obtendo assim os meios necessários para que possa atingir os fins de sua existência, desenvolvendo todo o seu potencial de aperfeiçoamento, no campo intelectual, moral ou técnico.

Ambas as teses têm grande valor na atualidade, pois se a última tem grande número de adeptos enquanto origem histórica da sociedade a primeira fundamenta e justifica a origem político democrática, sem, de qualquer forma, haver como excluir do ser humano a característica de ser social53.

Três acepções, a respeito da sociedade civil, acabam por sobressair das várias ideologias envolvendo o tema54:

1. a apontar a preexistência ao Estado de diversas formas de associações humanas formadas para a satisfação dos mais diversos interesses. Com o surgimento do Estado dá-se a regulamentação, não podendo, no entanto, impedir-lhes o posterior desenvolvimento e contínua renovação;

2. a sociedade civil é onde se manifestam as instâncias de modificação das relações de dominação, inclusive a originar grupos de contra-poder, a procurar emancipar-se do poder político;

3. onde há o ideal social da ausência estatal que predomina, pretendendo, assim, a dissolução do Estado com a sua reabsorção pela sociedade política.

De qualquer maneira, é na sociedade civil que surgem os conflitos econômicos, sociais, ideológicos, religiosos, dentre outros que justificam a existência do Estado com a função de dar-lhes solução pela mediação ou repressão.

É formada de indivíduos, classes sociais, grupos de interesse, associações, ideologias, valores, ação e reação, movimentos contínuos previsíveis, imprevisíveis e originais.

Com o surgimento do Estado social surgiu o debate se haveria razão em procurar distinguir o Estado da sociedade civil, pois a re-apropriação da sociedade por parte daquele, a regular as relações econômicas e no surgimento de grandes organizações de massas a exercer direta ou indiretamente poder político, donde deu- se a interpenetração entre Estado e sociedade55.

No entanto, em tal movimento, seja qual for o sentido, dá-se certa a contradição entre o Estado totalitário - com o Estado 54 BOBBIO, Norberto. ESTADO GOVERNO SOCIEDADE – PARA UMA TEORIA GERAL DA POLÍTICA, editora Paz e Terra, 3ª edição, tradução de Marco Aurélio Nogueira, páginas 34 e 35.

incorporando a sociedade -, e o desaparecimento estatal – quando a sociedade incorporasse o Estado. É contradição própria da dicotomia antes apontada e que reflete-se na postura individual enquanto na mesma pessoa não pode só existir a postura de cidadão protegido ou de cidadão ativo, participante do Estado, pois daí seria, apenas, servo ou senhor56.

A sociedade, portanto e de qualquer forma, implica na união de homens, pois só existe dentre seres humanos, pois destinada a objetivos permanentes pelos quais é estatuído o poder, donde estão seus elementos característicos57. Tais objetivos estariam contidos na expressão ‘bem comum’, a envolver um conjunto de condições, inclusive “... ordem jurídica e a garantia de possibilidades, que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana, onde está compreendido tudo, inclusive valores materiais e espirituais, que cada homem julgue necessário para a expansão de sua personalidade.”58.

55 BOBBIO, obra citada, páginas 51 e 52.

56 KANT, Immanuel. À PAZ PERPÉTUA, LPM editores, tradutor Marco A. Zingano, 1989, Brasil, páginas 36 a 38.

57 Para Dalmo Dallari, a saber: a finalidade ou valor social, manifestações de conjunto ordenadas e o poder social - obra citada, páginas 16/17; Celso Ribeiro Bastos – obra citada página 20 -, indica como características os elementos materiais (homens e base física), formais (normas jurídicas, organização e poder) e finalísticos (variados, a exemplo do bem comum, o progresso, a cultura).

58 Dalmo de Abreu Dallari – obra citada página 19 – explica logo após transcrever o conceito de bem comum, que considera universal, formulado pelo Papa João XXIII, conforme já mencionado neste trabalho.

Para Celso Ribeiro Bastos59: “Sociedade política é aquela que tem em mira a realização dos fins daquelas organizações mais amplas que o homem teve a necessidade de criar para enfrentar o desafio da natureza e das sociedades rivais.”

Dalmo de Abreu Dallari60 ensina que a diferença entre sociedade e sociedade política são seus objetivos, a saber, respectivamente:

- sociedades de fins particulares, escolhidos

voluntariamente por seus membros, com ações diretas e objetivas no sentido do objetivo conscientemente estabelecido.

- sociedades de fins gerais, indefinidos e genérico no sentido de criar condições necessárias para que os indivíduos e as demais sociedades que nela integram consigam atingir seus fins particulares, nestas a participação independe de ato de vontade, tem como exemplos: família, clã, tribo, Estado.

Assim, pois, são sociedades políticas todas aquelas que, visando a criar as condições para a consecução dos fins particulares de seus membros, ocupam-se da totalidade das ações humanas, coordenando-as em função de um fim comum. Isso não quer dizer, evidentemente, que a sociedade

59 Obra citada, página 25.

política determina as ações humanas, mas, tão só, que ela considera todas aquelas ações.

Eis que surge a sociedade política pela necessidade de coordenação das atividades especializadas na sociedade civil. A mesma especialização cria dependência, ampliada com a tecnologia, a gerar carência e a respectiva exclusão, quando não atendida, cada vez mais ampliada quanto mais complexo se dá esse processo, sempre impulsionado pela economia, a determinar a complexidade estatal a partir do momento que passa a ser responsável a dar solução a todas as demandas conflitivas existentes no meio social.

Assim, existem os partidos políticos, como intermediários entre a sociedade civil (povo) e a sociedade política (governo), com a função de selecionar as demandas sociais a serem objeto de decisão política em conformidade com a opinião pública61; numa visão sistêmica a sociedade civil forma as demandas a alimentarem o sistema político (inputs) a quem compete dar resposta adequada e tempestiva às mesmas (output); dessa forma dá-se a legitimação ou a crise institucional.

A chamada ‘ingovernabilidade’, daí, decorre do estágio de complexidade da sociedade contemporânea no contraste que se estabelece entre a qualidade e quantidade das

61 BOBBIO, obra citada, páginas 35 e seguintes. Na página 37, conceitua e ensina:

... opinião pública, entendida como a pública expressão de consenso e de dissenso com respeito às instituições, transmitida através da imprensa, do rádio, da televisão etc. De resto, opinião pública e movimentos sociais procedem de lado a lado e se condicionam reciprocamente. Sem opinião pública – o que significa mais concretamente sem canais de transmissão da opinião pública, que se torna “pública”

demandas sociais e na capacidade das instituições de dar resposta apropriada, ou seja, cada vez mais ingovernável quando o aumento das demandas sociais não encontrar o aumento da capacidade das instituições de dar-lhes resposta satisfatória. A resposta à demanda sempre estará na mesma sociedade civil, aonde cabe ao governo buscar legitimação em respostas condizentes com o anseio popular62.

Mas, ainda assim, a solução para as questões encontra outra dificuldade consubstanciada no paradoxo entre Direitos Individuais e Direitos Sociais fortalecido pela tensão entre autoridade e liberdade presentes na história, inclusive do pensamento político, desde os primórdios a encontrar classificações de sistemas de governo formuladas pela observação da realidade em contrapor governos respeitadores ou não da vontade popular.

A exemplo, em razão dos abusos absolutistas, da cobrança da existência de um Estado mínimo limitado pela divisão de funções em diferentes órgãos e do controle do ser humano a manipular a máquina estatal, também pelo mandato político eletivo e temporário; a seguir os ideais totalitários e assim, até nossos dias, sucessiva e contraditoriamente.

A primazia dos Direitos Individuais63, com uma maior dissociação entre estes e os Direitos Sociais, deu-se com o liberalismo em especial no Século XIX, é a perspectiva

exatamente enquanto transmitida ao público – a esfera da sociedade civil está destinada a perder a própria função e, finalmente, a desaparecer.

62 BOBBIO, obra citada, páginas 36/37.

63 LIMA, ALCEU AMOROSO. OS DIREITOS DO HOMEM E O HOMEM SEM DIREITOS, editora Vozes, 2ª edição, Rio de Janeiro, páginas 45 e seguintes.

individualista a impregnar toda a produção humana da época, vale realçar, aqui em especial, o do constitucionalismo.

No Século XX, foram as forças, no anterior recessivas, que impulsionaram o fortalecimento dos Direitos Sociais, da prevalência do todo sobre o individual, com o fortalecimento do Estado, da Igreja, dos sindicatos e das classes como forças sociais – num movimento contrário de importância relativamente aos séculos imediatamente anteriores64.

Mas se há o socialismo a propor uma completa igualitarização de todos, a sufocar a subjetividade, personalidade e a pessoa de cada um; noutro extremo há o liberalismo a dar tanta liberdade que a igualdade deixa de existir, exatamente pelas aspirações individuais não encontrarem limites nem na destruição ou exploração do outro.

64 A mudança de preferências não se dão ao acaso mas como fruto dos fatos e abusos de um sistema liberal (individualista) ou socialista (social), é de se observar relatos da época em que vigia o liberalismo na Europa, a exploração e os abusos de exploração do homem pelo homem – os mesmos a originar os ideais socialistas e a exigir o fortalecimento das corporações ou sindicatos, a cobrar a intervenção estatal – a exemplo da descrição de Disraeli, transcrito em obra de Alceu Amoroso Lima, obra citada páginas 39/40, do trabalho infantil nas minas inglesas de carvão:

A mina vomitava seus prisioneiros e o poço de seus escravos: multidões de jovens dos dois sexos, mas que infelizmente nem os vestuários nem a linguagem os diferenciavam. As meninas se vestem como homens, e blasfêmias, que fariam estremecer homens, maculam seus lábios, que só deveriam pronunciar palavras de doçura e de amor. E no entanto, aí estão algumas, e outras que já são, futuras mães inglesas. Mas como nos espantarmos da grosseria horrível de sua linguagem, quando pensamos na rudeza selvagem de suas vidas? Nuas até a cintura, as pernas cobertas com uma calça de estamenha, pressas por correntes de ferro segura a um cinto de cobre, essas meninas são condenadas a passar doze e às vezes dezesseis horas por dia a empurrar, puxar dirigir vagões pesados por caminhos subterrâneos, escuros, lamacentos e fortemente inclinados. Essas circunstâncias parecem Ter escapado à atenção da sociedade formada para a abolição da escravidão negra. Seus dignos membros parece também terem ignorado as cruéis torturas de pequenos trapers (crianças encarregadas de abrir e fechar porteiras), o que é tanto mas de estranhar quanto alguns desses próprios membros (da sociedade contra a escravidão negra) empregam eles próprios essas infelizes crianças. Vede-as saírem das entranhas da terra. São crianças de 4 a 5 anos (sic), algumas delas meninas

É onde a sociedade política ideal se estabelecerá em consonância com a sociedade civil e com as pessoas que a compõe, vale dizer, no equilíbrio entre liberdade e igualdade, fundados na fraternidade que, embora lema da Revolução francesa, foi esquecida politicamente.

Sociedade de homens que é, depende da subordinação de todos ao Direito que, consentâneo com o momento histórico cultural e com os direitos humanos, individuais e sociais, seja efetivo em controlar o poderoso, político ou não, e, assim, fortalecer o fraco, na proteção da esfera de liberdade de ambos dá-se a respectiva igualdade a estar garantida pela ação estatal, por intermédio de efetiva e eficaz prestação jurisdicional.