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I. O ESTADO

1.4 A PESSOA NO PROCESSO GLOBALIZANTE

Sempre importante e útil lembrar a diferença entre indivíduo e pessoa. Embora muitas vezes os termos sejam utilizados como sinônimos, inclusive neste trabalho, não o são se atentarmos que o termo ‘indivíduo’ serve para um membro de qualquer coletividade, não necessariamente humana; no entanto, se utilizarmos o termo ‘pessoa’ certo será que estará designando o humano dotado de sua única personalidade.

E quem é esse ser? É uma pessoa a caminho da plenitude, marchando para a felicidade a ser atingida em corpo e espírito, construindo a própria essência, afirmando a sua autonomia, originalidade, liberdade e personalidade; estando

incrustado na humanidade por sua origem, educação e vida corpórea, intelectual e sentimental.65

Assim o homem: sente, avalia, julga, governa-se, faz uso dos seres que considera inferiores a si para seus fins, decide diante das diferentes possibilidades, modifica-se, humaniza seu contorno, ... . Tendo a capacidade de controlar-se diante de seus desejos e instintos, por intermédio do raciocínio e da autosuperação, detém, assim e portanto, a responsabilidade66.

É de se observar ainda que vivemos num mundo neurotizado pelas guerras, doenças e o terror, a determinar: o padecimento a desejos de prazeres mundanos; da espiritualização das sensações fisiológicas, a desenvolver fetiches, angústias e tormentos67; da atitude individualista irresponsável; do materialismo exacerbado, dentre outros.

as obrigam a serem os primeiros a entrar e os últimos a sair.

65 VALLE, Agustín Basave F. Del. FILOSOFIA DO HOMEM – FUNDAMENTOS DE ANTROPOSOFIA METAFÍSICA, editora Convívio, tradução de Hugo di Primio Paz, 1975, São Paulo, páginas 53/56 e 79/81.

66 VALLE, obra citada, páginas 150/151:

A ação livre – observa Romano Guardini – acha-se estruturada de uma maneira especial. No princípio está a auto-unidade (eu) do ‘eu’. No curso da ação esta auto-unidade se desenvolve; surge um momento de iniciativa; o sujeito prescinde de todo o circunstante e de seu próprio ser; julga as diferentes possibilidades; decide-se por uma delas, imerge nela realizando- a, e recobra, mediante a consumação do fato, a unidade primeira, que, no entanto, comporta agora a tensão experimentada e além dela um novo conteúdo.

67 É de realçar o quanto se tem desenvolvido o mercado das drogas, da pornografia, da pedofilia, da busca ao enriquecimento fácil e desonesto, dentre tantas ações a indicar a alienação da necessidade de desenvolvimento espiritual que se dá, também, por intermédio das ações em superação aos instintos ou desejos contrários a atitude estritamente fraterna. Vale transcrever passagem de BASAVE DEL VALLE, obra citada página 142:

Tendo virado as costas aos evangelhos, é muito natural que os homens se sintam arremessados à vida e condenados a ser livres numa existência absurda. O ateísmo náufrago quis entronizar novos deuses; o dinheiro, a ambição, o poder, a fama, e os prazeres, que afinal de contas não o salvaram de seu naufrágio.

A preocupação centra-se, na mídia e na vida, no ‘ter’ muito mais do que no ‘ser’, contra-senso de fácil explicação fundada na segurança da qual todos sentimos falta a determinar a necessidade acumular bens materiais suficientes para suprir nossas necessidades materiais, o que é fundamental, a transbordar à obsessão das futilidades mercadológicas e irracionais.

É onde o Estado surgiu e se transformou como carência de um contexto da necessidade humana de segurança na conquista e preservação de seus bens jurídicos, materialmente necessários e espiritualmente essenciais.

Estamos abandonando a ideologia social democrática a reinar sobre o Estado e as relações econômicas - que determinou um Estado agigantado, intervencionista, concorrente, burocrático e paternalista, ainda que ineficiente e corrupto – à ideologia neoliberal, trazendo consigo o desejo de reduzir o Estado, fazendo-o apenas regular a economia por intermédio de vários instrumentos indiretos e, fundamentalmente, do Banco Central ao qual se requer autonomia plena para orientar-se de acordo com o mercado, não estando influenciado por posturas políticas.

Mas a ideologia neoliberal trouxe muito mais, a saber os mais importantes68:

...

mudança dos padrões de produção: os novos sistemas de especialização flexível e a ‘fábrica global’ tornaram mais fácil a produção local e outras

68 DEZALAY, Ives; TRUBEK, David M.. A REESTRUTURAÇÃO GLOBAL E O DIREITO, in ‘Direito e Globalização Econômica: implicações e perspectivas’, José Eduardo Faria (organizador), editora Malheiros, São Paulo, 1998, páginas 29 e 30.

atividades econômicas em muitas partes do mundo, facilitando o deslocamento de atividade econômica de um país para outro e contribuindo assim para o surgimento de uma nova divisão internacional do trabalho.

União dos mercados financeiros: a criação de mercados de capital unidos globalmente facilita o livre fluxo de investimento através das fronteiras.

Aumento da importância das empresas

multinacionais: devido ao fato de as grandes empresas multinacionais estarem agora capacitadas a expandir tanto a produção quanto outras operações por todo o mundo além de mudar fábricas de um país para outro, seu potencial de negociação tem-se fortalecido e sua importância na economia mundial tem aumentado.

Aumento da importância do intercâmbio e crescimento de blocos regionais de comércio: a transação internacional tem aumentado sua proporção no PNB em muitos países. As barreiras de comércio, em geral, têm diminuído; esse processo tem sido acelerado em certas regiões por causa de áreas regionais de livre comércio e mercados comuns. Os regimes de comércio têm sido estendidos a fim de abranger serviços e propriedade intelectual. As regras internacionais que promovem o livre comércio de mercadorias e serviços têm efeitos diretos e indiretos sobre muitos aspectos da regulamentação nacional.

Ajuste estrutural e privatização: todo o antigo bloco

soviético e grande parte do mundo em

a estabilidade de grandes macroeconomias e redução do envolvimento direto do Estado na economia. Para facilitar a interação econômica, é dada grande ênfase ao desenvolvimento de instituições de mercado, incluindo estruturas jurídicas.

Hegemonia de conceitos neo-liberais de relações econômicas: o ‘consenso de Washington’ (nomeado

posteriormente pelas instituições financeiras

internacionais estabelecidas na capital norte- americana) dá forte ênfase nos mercados privados, na desregulamentação da atividade econômica, na redução do papel do Governo e no livre comércio internacional. Esta visão influenciou a política nos Estados Unidos e na Inglaterra, sob a administração de Reagan e Thatcher, e tem começado a afetar a Europa Continental. Sob o amparo do FMI e do BIRD (assim como bancos regionais e do GATT), a visão neo-liberal tem sido expandida através do mundo em desenvolvimento, está influenciando a Europa Oriental e a antiga União Soviética e está tendo efeitos na China.

• E é no contexto intermediário, de transição, entre o Estado do Bem Estar Social e, mais próximo, do Estado Neoliberal que nos encontramos, diante de todas as críticas formuladas ao que se considera como único caminho69, exportado pelos Estados

69 BRZEZINSKI, Zbigniew. OUT OF CONTROL – GLOBAL TURMOIL ON THE EVE OF THE 21 ST. CENTURY, Nova Iorque, 1993, a apontar em sua obra os vinte problemas básicos da política econômica norte-americana, a exigirem solução, quais sejam:1. Endividamento; 2. Déficit comercial; 3. Poupança e investimentos insuficientes; 4. Deficiente capacidade de concorrência da indústria; 5. Baixas taxas de aumento da produtividade; 6. Insuficiente previdência de saúde; 7. Má qualidade das escolas secundárias; 8. Uma infra-estrutura social em deteriorização e o colapso das cidades; 9. Uma classe alta rica e gananciosa; 10. Uma parasitária preferência por disputas jurídicas; 11. um problema racial e de pobreza que se torna agudo; 12. Elevada criminalidade e violência; 13. Enorme difusão do

Unidos e Inglaterra sendo aplicado passo a passo no planeta sem a preocupação com a dimensão ética em favor da pessoa humana, sem desenvolvimento, apenas com vista ao crescimento econômico.

As pessoas embora o elemento fundamental ao qual está direcionada toda e qualquer decisão e respectiva realização - econômica, política, jurídica, religiosa, educacional, dentre todas as demais esferas de atuação humana – não é consultada nem participa de tais decisões, apenas de seus efeitos diretamente interventores no seu modo de vida.

A globalização, nascida no contexto da reestruturação econômica mundial para o neoliberalismo, decorreu de grande desenvolvimento tecnológico - pré-existente, pois contemporâneo à guerra-fria, que, com seu fim, passou a ter utilidade voltada à lucratividade – nasceu como uma nova e revolucionária mudança de paradigma econômico, com a derrubada das fronteiras nacionais para efeito do capital e de mercado, voltado para a produtividade e a rentabilidade; situação em que se teme a transformação em um mundo economizado, inóspito, antidemocrático, desumano70.

consumo de drogas; 14. Difusão da falta de perspectivas sociais; 15. Promiscuidade sexual; 16. Maciça difusão da decadência moral através dos meios de comunicação visual; 17. Declínio da consciência de cidadania; 18. Surgimento de uma variedade multicultural que pode provocar divisões; 19. Indícios de um bloqueio do sistema político por uma economia de grupelhos; 20. Um sentimento de vazio espiritual sempre mais intenso.

70 KÜNG, Hans. UMA ÉTICA GLOBAL PARA A POLÍTICA E A ECONOMIA MUNDIAIS, Editora Vozes, 1999, Petrópolis, páginas 277 e seguintes, apontando à fl. 279 a definição da Organização para o Desenvolvimento da Cooperação Economica - OECD:

... globalização da economia é aquele .processo através do qual, em conseqüência do dinamismo do comércio de bens e serviços e dos movimentos de capital e tecnologia, o mercado e a produção nos diferentes países se tornam sempre mais dependentes uns dos outros. ...

Sem dúvida que existem previsões otimistas e pessimistas a respeito da globalização, no entanto o que é consenso é a sua inevitabilidade e que traz efeitos danosos e vantajosos; no entanto, os prejuízos restam para a grande maioria, a acrescentar nas listagens já apresentadas que a globalização: é setorial; implica na exploração da mão de obra barata dos países subdesenvolvidos; permite o egoísmo e a ambição dos donos de capital a atuar no mercado internacional tendo como único controle de suas atividades em investimento o mercado financeiro, pagando pouco - quando pagam – a títulos de tributos e pondo em risco, em conjunto com outros fatores, o sistema de seguridade social; o desemprego aumentando em todos os países; aumento global dos problemas ecológicos e a internacionalização do crime organizado71.

Tudo isso, no entender de Hans Küng, a exigir um controle político fundado em um ethos global a regular a globalização econômica e tecnológica, fundados nos seguintes princípios: a. Não ao imperialismo econômico, b. Economia de mercado a serviço do homem, c. Primado do ethos em relação à

71 KÜNG, obra citada, páginas 283 a 285, interessante transcrever trecho da página 292:

Enquanto certos jornalistas e teólogos gostam de usar o discurso apocalíptico, certos economistas e homens de negócios preferem uma linguagem eufemística. Temos que ver com clareza o que, em termos de crescente pobreza e angústia, se oculta por trás de certas palavras que enchem a boca, como “outsourcing” (“redução de estoque”/ “Auslagerung”) e “downsizing” (“enxugamento”/ “Verschlankung”) – uma palavra que nos anos 70 era usada com referência a modelos de carros, e que só nos anos 80 passou a ser a aplicada também às pessoas. E se alguém ouve em 1980 “you are fired” (“você está despedido”), ou em 1985 “You are laid off”(“você está liberado”), ou em 1990 “You are downsized” (“você foi incluído no enxugamento”) ou em 1995, talvez, “You are righsized” (“Você caiu fora”), para o atingido tudo isto, em última análise, não faz diferença, é a mesma desgraça). (grifos no original)

economia e à política, d. estabelecimento de tarefas a serem cumpridas por uma economia global72 .

72 Obra citada, páginas 293 a 374, inclusive apontando as ‘tarefas econômicas globais como sendo: 1. A criação de uma ordem de concorrência internacional; 2. Vinculação intensa dos fluxos financeiros internacionais aos objetivos reais de crescimento e emprego; 3. Garantia social contra crescentes rejeições estruturais; 4. Equilíbrio das drásticas diferenças econômicas e sociais entre as várias regiões do mundo; 5. Internacionalização dos crescentes custos sociais e ecológicos decorrentes da globalização econômica; 6. Um direito da ordem internacional, que coíba o uso excessivo dos recursos não renováveis.