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3.7 Aprender e o não aprender para as crianças

3.7.4 A leitura das crianças

A dificuldade na leitura esteve presente em todas as fichas com a avaliação dos/as professores/as sobre as dificuldades de aprendizagem que consideram em relação às crianças sujeitos nessa pesquisa. Nesse sentido foram observadas as aulas de reforço em leitura com essas crianças. A escola, a partir do mês de agosto de 2013, conta com uma psicopedagoga, que realiza atividade de leitura com as crianças. É uma atividade de leitura e de interpretação de texto realizada no período da tarde, no refeitório (horário de lavar as vasilhas do lanche, momento de muito barulho), com a professora Mara.

Gabriele chegou e foi logo sentando-se.

Profa Mara: Vamos ler?

Gabriele realiza a leitura do texto Se esta rua fosse minha37

Professora: O que você entendeu do texto?

Gabriele: (Pega o texto e fica olhando para ele) Fala sobre… é… Se esse

mundo fosse meu… (risos)

Professora: O texto fala de quê? Gabriele: Do país, da mata… Professora: Mais alguma coisa? Gabriele: Não.

Professora: Então, pode voltar.

Gabriele realiza boa leitura, mas tem dificuldade em compreender, ou pelo menos demonstra dificuldade em falar sobre o que leu. (Essa atividade durou exatamente 2 min 32 seg!).

Giovana chegou para a atividade, pegou o texto e iniciou a leitura. Lê

silabicamente. A professora a ajudou a ler assílabas e formar as palavras.

Professora: Do que fala o texto?

Giovana: Aqui fala de um mundo cheio de animais… Professora: Se o mundo fosse seu, o que você faria?

Giovana: Não cortava as árvores, não jogava lixo no córrego, não jogava lixo

assim no campo… hum, é… não matava os passarinhos…

Professora: (aponta o título e as duas leem) Paraíso. O que que é paraíso? Giovana: É um lugar bom!

Professora: Que jeito é esse paraíso?

Giovana: Com muito animal, árvore, com muita pessoa boa, só! Professora: Você quer falar mais alguma coisa sobre o texto? Giovana: Não!

Giovana: (para a professora)Tchau tia!

Giovana: (para mim)Tchau tia! (Aproximou-se da câmara e jogou um

beijinho)

Giovana tem muita facilidade em se expressar, organiza suas ideias com coerência, compreende as ideias destacadas no texto, as qualidades, aquilo que a criança sabe, segundo Charlot (2001) é que devem ser consideradas ao avaliar o desempenho do sujeito, a análise deve focar e valorizar os pontos positivos e não o que é considerado como falta, ou seja, considerar somente que Giovana enfrenta grande dificuldade na leitura.

Segundo Oswald (2011),

Como a escola, comumente, está interessada em que a criança adquira o domínio da escrita padrão, ela sonega-lhe o fluir dos sentidos que se dá pela via das interpretações, das leituras. E com isso a escola transforma a escrita dos alunos em sepultura na qual suas histórias, suas culturas, suas linguagens, seus desejos serão encerrados para sempre, alienados de sua existência” (OSWALD, 2011, p. 62).

As práticas de leitura das crianças seguem as determinações pedagógicas do que deve ser lido e depois reproduzido em “produções de texto” sobre o texto lido. As crianças participam de outras atividades de leitura como forma de punição por comportamentos inadequados ao exigido pela escola, ou como treino. As crianças contam como a leitura é ensinada.

Pesquisadora: Vocês leem lá na sala dos professores? Fernanda: Lê!

Pesquisadora: Pra quem?

Valéria: Pra tia Meire, pro tí Heitor, tia Maria Lúcia, pra tia Alessandra (Faz

cara de medo). Pra aprender mais ainda.

Pesquisadora: Aí vocês leem…

Fernanda: Leem. Aí a tia manda nóis lê outro livrinho, manda nóis lê outro.

E quando nóis aprendê bem, num errá nada, aí ela manda nóis voltá e pegá outro livro.

Pesquisadora: Quando vocês leem ela fica escutando? Valéria: Ãn hãm!

Pesquisadora: E depois?

Fernanda: Depois ela passa mais pra vê se nóis miora mais. A tia Maria Lúcia

disse que eu sou boa pra, como é mesmo?

Valéria: Lê, escrevê?

Fernanda: Interpretá. Eu lê errado, mas depois a tia: Qual o nome do texto?

Eu nem lê, olha pra lá e falo.

Pesquisadora: Você entende com mais facilidade do que você lê? Fernanda: É.

Valéria: Melhor ler do que interpretar…

Pesquisadora: E como você faz pra aprender ler direito?

Fernanda: Lê um montão de livro em casa. Lê livro que você entendi. Quando

nóis num aprende a tia fala, manda mais livrinho pra nóis lê, Sacola da

Valéria: Aí tem interpretação do texto junto com o livro. Fernanda: Quantas folhas que tem no livro. Quantas… Valéria: Qual é o título do seu texto...

Fernanda: Qual desenho tem… qual é o autor? Aí, se você gostou do texto…

Depois da observação da atividade de leitura com a psicopedagoga e da conversa com as crianças sobre as atividades de leitura, foi organizada roda de leitura com as crianças com os livros na escola. Foram levados vários livros com texto só em imagens, livros com imagens e texto com frases simples e outros livros com imagens e textos mais complexos, mais extensos.

Os livros foram colocados sobre os colchenetes que ficam no fundo do refeitório. As crianças escolheram para fazerem a leitura em duplas, com o compromisso de contar do que se tratava o livro escolhido por elas. Os livros escolhidos pelas crianças foram: Ida e volta, de Juarez Machado; O gato Viriato, de Roger Mello; O pintinho do Lelé, de Silvana de Menezes; Banho, de Mariana Massarani e A pulga e a Daninha, de Pedro Mourão.

Durante a leitura, as crianças conversaram sobre a história que iam criando com a leitura das imagens. Quiseram conhecer a história das outras duplas e comentaram entre elas qual história estavam lendo. Depois, todas sentaram-se em círculo para narrar a história do livro. Paulo Guerra e Pablo contaram a história lida

Da esquerda para a direita - fotografias 24, 25, 26 e 27 - Rodas de leitura com as crianças.

por eles. Os encontros para leitura foram realizados em dois grupos: um grupo com as crianças do 2º ano e o outro com as crianças do 3º Ano.

A leitura aconteceu de forma livre, quando as crianças desejavam comentar sobre algo com a pesquisadora ou com algum colega, elas o fizeram com liberdade. Trocaram de livro entre os grupos, compararam as histórias. Os grupos não encerram a leitura simultaneamente, dessa forma foram orientados a conversarem sobre a leitura ou pegar outro livro, ou falar sobre o que desejassem, desde que não atrapalhassem a leitura dos outros grupos que não haviam terminado. Quando os grupos encerraram as leituras, a roda de conversa foi iniciada.

Pesquisadora: Qual a história que vocês leram? Qual o título? Paulo Guerra: O pa pastinho Lelé. O patinho Lelé.

Paulo Guerra: (Abre o livro e lê o título novamente) O pin-pintinho do-do Lelé.

O pintinho do Lelé.

Pesquisadora: Como é que você falou pra mim que não sabia lê. Você sabe

ler sim!!! (Paulo Guerra passa a página sorridente e inicia a leitura).

A leitura foi bastante proveitosa, Paulo Guerra narrava e o Pablo comentava ou completava. Paulo e Sirilo, vez ou outra, faziam algum comentário. As crianças compreenderam muito satisfatoriamente a história, apresentaram facilidade na compreensão de texto e na argumentação sobre algum questionamento.

Ana Beatriz: (Folheando o livro) Tia, esse livro aqui é sem letra, é chato. Pesquisadora: Pois é! Mas você num consegue lê?

Fernanda: Você quer trocar?

Ana Beatriz: Quero! Esse aqui eu já entendo. Pesquisadora: Fernanda, você consegue ler? Fernanda: Mais ou menos.

Pesquisadora: Então, lê o título pra mim.

Fernanda: Tá! O pintinho de Lelé. Eu entendo só assim (mostrando que o

livro não tem palavras).

Ana Beatriz realiza a leitura do livro. Depois da leitura, elas conversaram sobre as histórias.

Fernanda: A minha história não entendi. (O pintinho do Lelé é somente com

imagens).

Pesquisadora: Calma! Nós vamos conversar… Ana Beatriz, como é nome

da sua história?

Ana Beatriz: Banho!

Pesquisadora: Banho! A história passa em que lugar? Ana Beatriz: Banheiro.

Pesquisadora: Ana Beatriz, conte a história pra nós, sem ler, conte pra nós.

Como a história começa?

Ana Beatriz contou a história de forma clara e objetiva, demonstrando que compreendeu bem o texto que leu. Fernanda ficou atenta à história narrada pela colega. Depois de algumas páginas, Fernanda começou a participar da narrativa da história. Compreenderam que se trata de uma história de fantasia, de uma criança que lê um livro e que a história do livro ganha vida. Fernanda narrou a história fazendo as entonações, inventado diálogos a partir das ilustrações. Ana Beatriz tentou participar, mas Fernanda não deixou então ela ficou só ouvindo a colega.

Foucault, descreve com muita competência como os corpos são fabricados, como as atividades são programadas, vigiadas e examinadas. A escola aparece como uma das instituições que eficazmente exerce o controle sobre os corpos. A disciplina exercida na leitura controla desde o comportamento dos corpos, até o que deve ser compreendido por meio dessa atividade. Entretanto, o ato de ler é mais valorizado do que o que se compreende daquilo que foi lido.

[...] A modalidade, enfim: implica numa coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma condição que esquadrinha ao máximo o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas” (FOUCAULT, 2010, p. 133).

Ao experimentarem outra possibilidade de leitura, as crianças demonstraram inicialmente certa dificuldade em ler sob outra forma, em outro espaço. O que seria lido foi escolhido pelas crianças, o que fez com elas estranhassem também. Mesmo acostumadas a ler tendo alguém para avaliar, vigiar e conduzir a leitura, as crianças demonstraram interesse em conhecer as histórias, em conhecer as histórias dos outros, em contar as suas histórias.

3.8 A construção das dificuldades de aprendizagem: a escola e o