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Percurso e construção da ideia de infância

Apesar das críticas aos escritos de Rousseau, esse autor representa importante contribuição nos estudos sobre as crianças e a infância, dessa forma considera-se importante destacar as principais reflexões desse autor em relação à educação da criança e ao sentimento de infância, já que esse autor, além de apresentar críticas contundentes à "educação moderna”, apresenta um projeto de educação, uma outra concepção de criança, de infância e de educação.

Rousseau evidencia a necessidade de compreender a infância como condição de criança, com necessidades, características e raciocínio específicos. Para tanto, Rousseau conclama: “Amai a infância; favorecei suas brincadeiras, seus prazeres, seu amável instinto” (ROUSSEAU, 1999, p. 68). A humanidade tem seu lugar na ordem das coisas, e a infância tem o seu na ordem da vida humana: é preciso considerar o homem no homem e a criança na criança (Ibidem, p. 69).

Segundo Rousseau, a educação que as crianças recebiam estava na contramão do que a natureza deseja, pois,

A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens. Se quisermos perverter esta ordem, produziremos frutos temporões que não

estarão maduros e nem terão sabor, e não tardarão em se corromper; teremos jovens doutos e velhas crianças. (ROUSSEAU, 1999, p. 86).

Respeitai a infância e não vos apressei em julgá-la quer para bem, quer para mal (ROUSSEAU, 1999, p. 112). [...] a infância é o sono da razão (Ibidem, p. 113 e 147). Sono, no pensamento rousseauniano, significa o período de fortalecimento, repouso, revigoramento das potencialidades desse ser humano.

Criticando a educação que considera as crianças como adultos em miniaturas, Rousseau afirma que,

Se o homem nascesse grande e forte, seu porte e sua força seriam inúteis até que ele tivesse aprendido a deles servir-se. Ser-lhe-iam prejudiciais, impedindo os outros de pensar em assisti-lo e, abandonando a si mesmo, ele morreria de miséria antes de ter conhecido suas necessidades. Deplora-se o estado da infância; não se vê que a criança humana teria perecido se o homem não começasse sendo criança. (ROUSSEAU, 1999, p. 10).

Rousseau denuncia os maus tratos que a infância vinha sofrendo tanto nas relações socais familiares quanto nas educacionais. Em sua obra clássica, Emílio (1762), Rousseau, como já foi dito, propõe também importante mudança de concepção de educação. O ser humano nasce filho do homem e é pelo processo de aprendizagem que ele vai aprendendo a ser homem. Ele ainda afirma que: “Tudo o que não temos ao nascer, e de que precisamos adultos, é-nos dado pela educação” (ROUSSEAU, 1999, p. 10). Nesse sentido, Rousseau defende que a educação do nascimento até a idade de 12 anos seja diferente da atual, seja adequada à fase de seu desenvolvimento natural (ROUSSEAU, 1999, p. 91) de acordo com sua idade e condições físicas (Ibdem, p. 111).

Rousseau apresenta uma outra concepção de educação como sendo um processo bastante amplo, como um ato social e que não deve ser negligenciado por ninguém (PAIVA, 2007) e que não se restringe à ação de um preceptor, mas à ação, desde o nascimento, de três mestres: a natureza, os homens e as coisas.

A educação da natureza é aquela referente ao desenvolvimento interno das faculdades e dos órgãos e não depende da ação do homem. A educação dos homens resulta do uso que ensinam a fazer do desenvolvimento proporcionado pela natureza; é a única educação da qual somos realmente senhores (por suposição). E a educação

das coisas, que ocorre a partir do ganho das experiências sobre os objetos que o afetam.

Segundo Rousseau, as aprendizagens acontecem por meio dos sentidos, pois, o homem é um ser sensível desde seu nascimento, sendo molestado pelos objetos que o cercam. Com o desenvolvimento de sua consciência, a criança vai realizando avaliações das sensações (agradáveis ou desagradáveis) que os objetos exercem sobre ela, procurando ou fugindo desses objetos. Com o desenvolvimento de sua maturidade, o homem procura, ou não, esses objetos a partir de sua conveniência. Posteriormente, essa avaliação é realizada por meio dos juízos que fazemos desses objetos por meio da razão.

Segundo Paiva,

Ao contrário da imposição pedagógica dos jesuítas e de outros métodos educacionais, a obra rousseauniana sugere que uma educação interativa, espontânea, divertida, prática e contextualizada aperfeiçoa a natureza humana e promove a felicidade. (PAIVA, 2007, p. 329).

Outra crítica de Rousseau é direcionada aos conteúdos ensinados pelos pedagogos que muitas vezes, segundo ele, não fazem sentido para as crianças, não lhes são úteis, ou seja as crianças não sabem aplicá-los em outras situações, não despertam o interesse das crianças e são distantes de suas experiências e dos fatos históricos (ROUSSEAU, 1999, p. 115). Os conteúdos devem fazer sentido para as crianças, que elas possam raciocinar sobre o que lhe é ensinado. Uma vez que “As crianças raciocinam muito bem em tudo o que conhecem e que se relacione com seu interesse presente e sensível”. (Ibdem, p. 114). É um equívoco fazê-las raciocinar sobre o que não são capazes de compreender e que estejam atentas a considerações que não lhes dizem respeito de maneira nenhuma [...]. (Ibdem, p.114). Se não devemos exigir nada das crianças por obediência, segue-se que elas não podem aprender nada de que não sintam a vantagem atual e presente, tanto para a diversão quanto para a utilidade; caso contrário, que motivo as levaria a aprender? (Ibdem, p. 97). E, ainda, Rousseau alerta os governantes de que nem toda participação do aluno durante as aulas é evidência de compreensão. (Ibdem, p. 118).

Toda a aprendizagem está na sensação, as crianças retêm as imagens, mas não alcançam o entendimento. O que não significa que este autor considere que as crianças não tenham raciocínio, pelo contrário. Rousseau afirma que elas têm

raciocínio, mas ressalta que é sobre o que elas têm interesse presente e sensível e que tem significado a elas (Ibdem, p. 113).

Uma forma de realizar uma educação que proponha o pleno desenvolvimento das crianças, segundo Rousseau, é observando a natureza, que exercita constantemente as crianças por meio de diversas experiências para que obtenham força. Pois a criança passa sua primeira infância (até os oito anos) sem compreender seus erros, sendo tirana (tendo todos os seus desejos satisfeitos) ou serva (tendo o seu corpo e desejos controlados e domesticados).

Nesse sentido, Rousseau orienta com quatro máximas como deve ser a educação das crianças para conceder às crianças mais liberdade verdadeira e menos voluntariedade, uma vez que a criança será levada desde cedo a subordinar seus desejos às suas forças e não à ação de outra pessoa.

A primeira máxima é a de deixar as crianças usar suas próprias forças para delas tomar conhecimento; a segunda máxima está relacionada à primeira, que o governante ajude a criança a satisfazer suas necessidades relacionadas à inteligência, à força física; terceira máxima: ao satisfazer estas necessidades o governante deverá observar se é útil e real ou se se trata de algum capricho, fantasia ou desejo sem razão porque reforçar as fantasias é alimentar o nascimento de algo que não é da natureza e que irá atormentar a criança desejando vê-la satisfeita; a quarta máxima é relacionada à linguagem e aos sinais da criança e a necessidade de distinguir nessa fase (quando ainda não sabe dissimular) o que é da natureza e o que é da opinião e desejos da criança. Segundo Rousseau, a observação destas máximas irá contribuir para que as crianças tenham mais liberdade verdadeira e que sejam menos voluntariosas, que façam mais por elas próprias e que exijam menos das outras pessoas (ROUSSEAU, 1999, p. 49s). É possível afirmar que o objetivo é o de formar pessoas mais autônomas, mais livres e conscientes de suas possibilidades em relação ao que desejam e às suas forças em satisfazê-las.

Em relação à linguagem da criança, Rousseau (Ibidem, p. 53) critica a correção dos dos adultos forçando as crianças a se adequarem à gramática padrão, pois as crianças têm uma gramática própria da idade e forçá-la a utilizar-se da norma padrão para se comunicar, além de ser pedantismo seria um cuidado desnecessário; bastando ao adulto falar corretamente, deixando que a criança se comunicasse (que é o mais importante), pois com o passar do tempo as crianças terão sua linguagem,

sua gramática nos mesmos padrões que os dos adultos com os quais se relaciona sem que tenha sofrido correções desnecessárias.

Rousseau aplica severas críticas também em relação à leitura ensinada pela educação jesuítica afirmando que “A leitura é o flagelo da infância, e é quase a única ocupação que lhes sabem dar” (ROUSSEAU, 1999, p. 127). A leitura, que é instrumento utilizado para o que não representa nenhum significado para a criança, se transformará em instrumento que estimula a curiosidade e o interesse desta se este instrumento for utilizado para os prazeres das crianças.

Nessa perspectiva, Rousseau considera que a educação inicial deve pautar- se em atividades e conteúdos que afetem os sentidos das crianças, seus interesses, caso contrário será esforço inútil, pois as crianças não têm capacidade ainda de usar da imaginação e da memória para refletir sobre assuntos que não compreendem. E é pela sensação que a criança vai tomando consciência de extensão. “É somente pelo movimento que sabemos que há coisas além de nós; e é somente pelo nosso próprio movimento que adquirimos a idéia de extensão” (ROUSSEAU, 1973, p. 45). A criança tenta tocar o tempo todo nos objetos que estão à sua volta sem ter consciência da distância que a separa desses objetos; quando a criança leva a mão e não consegue tocar um objeto ela se queixa, grita ou chora ao estender a mão ordenando ao objeto para que este se aproxime dela ou que quem estiver próximo dela traga o objeto às suas mãos (ROUSSEAU, 1999, p. 47).

Nessa situação, Rousseau alerta que é mais aconselhável que a criança seja levada até o objeto, para que compreenda que é pela sua ação que consegue tocar o objeto desejado e não porque todos estão à sua volta para servi-la, evitando a formação de uma criança tirânica. Pois,

Sabeis qual é o meio mais seguro de tornar miserável vosso filho? É acostumá-lo a obter tudo, pois crescendo seus desejos sem cessar pela facilidade de satisfazê-los, mais cedo ou mais tarde a impotência vos forçará, ainda que contra a vontade, a usar a recusa. (ROUSSEAU, 1999, p. 81).

Além de ensinar a criança a usar a recusa e compreender que não terá tudo que deseja e nem que as pessoas devem satisfazer seus desejos, Rousseau salienta que uma criança deve conseguir as coisas por si mesmas, pois segundo esse autor,

Podendo mais por si mesmas, precisam com menos freqüência recorrer aos outros. Junto com a força, desenvolve-se o conhecimento, que as põe em condição de dirigi-la. É nesse segundo grau que propriamente começa a vida

do indivíduo; é então que ele toma consciência de si mesmo. (ROUSSEAU, 1999, p. 67).

Por meio de experiências (ROUSSEAU, 1999, p. 89) a criança vai construindo sua consciência. Dessa forma, a criança, até os doze anos, deve receber lições somente por meio de experiências com os objetos (Ibdem, p. 97). Medir distâncias, ver em diferentes perspectivas por meio de experiências para desenvolver a capacidade de desenhar (Ibdem, p.161).

Rousseau vislumbra a infância como um momento em que se vê, se pensa e se sente o mundo de um modo próprio. Para ele, a ação do educador, neste momento, deve ser uma ação natural, que considere as peculiaridades da infância, que marcam a diferença em relação à ‘razão adulta’ (NARADOWSKI, 1994 apud ROCHA, 1999, p. 36).

Segundo Rocha (1999), a pedagogia considera ainda como sua principal tarefa social de educar, por meio da qual transforme os novos seres em futuros cidadãos. "A infância, como depositária das esperanças da sociedade futura, permanece no horizonte, como veremos, de uma forma ou de outra, seja pela preservação desta infância, seja pela disciplinação” (Ibdem, p. 37).

Certamente que o tempo que separa Rousseau da atualidade deve ser considerado ao ler sua obra, as complexidades do mundo contemporâneo. Bem como as críticas ao seu trabalho. Entretanto, Emílio ou da Educação é obra importante para a leitura e reflexão sobre a formação do homem, homem que tenha experenciado a infância como tempo de prazeres, alegrias, como uma construção social ou cultural, e que considere as diferenças entre os adultos e crianças muito além das diferenças biológicas, tais como tamanho físico ou maturidade (PROUT, 2000 apud FINCO, 2011, p. 160).