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CAPITULO 1: AUTOGESTÃO: (TRANS)FORMAÇÃO DE IDEAIS E EXPERIÊNCIAS

3. A CRÍTICA MARXISTA

3.3 Limites de uma Produção “Não-Capitalista”

O que vem sendo considerado como “autogestão” pelas vertentes que estimulam a formação de organizações coletivas de produção, é a forma de produção em que um coletivo de trabalhadores é proprietário dos meios de produção e realiza a gestão, de forma que todos participem das decisões, a denominada gestão democrática.

Por ter a propriedade dos meios de produção, diferencia-se do processo de produção de capital, visto que a propriedade dos meios de produção por um capitalista é condição necessária para o processo de produção capitalista.

Contudo, a principal característica que distingue a natureza da relação social capitalista da natureza da relação social estabelecida em organizações com características autogestionárias é o fato de não existir venda da força de trabalho. Sendo a força de trabalho a única mercadoria capaz de produzir valor além do seu próprio valor, ou seja, de quanto ela vale, na produção autogestionária não existe produção de mais-valia diretamente apropriada por um capitalista14.

O processo de trabalho também é distinto, pois é processo apenas de formação de valor: a organização com características autogestionárias produz mercadoria para trocar por outra mercadoria, a mercadoria dinheiro.

Apesar da “autogestão” se caracterizar como uma outra natureza de relação social que não a capitalista, por estar inserida no modo de produção capitalista, a produção de capital torna-se determinante e as outras relações acabam subordinadas a

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Existe uma polêmica quanto ao processo de extração de mais-valia em organizações autogestionárias, que não vamos nos aprofundar neste estudo. Entretanto, é importante colocar que, embora consideremos que não exista extração direta de mais-valia em organizações onde os trabalhadores administram seu próprio empreendimento, existe um sobretrabalho, ou seja, o trabalho não pago, excedente, que é apropriado pela lógica do capital.

essa relação. Vemos então a importância de entender a relação social estabelecida na produção autogestionária a partir da relação determinante.

No modo de produção capitalista, o trabalhador é expropriado dos meios de produção pelo capitalista, que lhe toma seus meios de trabalho (propriedade, instrumentos), restando-lhe apenas sua força de trabalho. O trabalhador é obrigado a vender sua força de trabalho ao capitalista, a fim de garantir a sua sobrevivência. Sua força de trabalho torna-se mercadoria, trocada pela mercadoria salário.

Na relação estabelecida na organização com características autogestionárias, não existe propriedade privada por apenas um capitalista e, por conseguinte, não existe a venda da força de trabalho.

Na forma capitalista de produção, a cooperação aparece como forma específica do processo de produção capitalista e o comando do capital converte-se numa exigência para execução do próprio processo de trabalho, em uma verdadeira condição da produção. Com o desenvolvimento da cooperação em maior escala e a conseqüente elevação da produção, o capitalista transfere a função de supervisão a um trabalhador específico, o gerente, que se torna o representante do capital na administração do empreendimento (Braverman, 1987). Como forma de aumentar o processo de acumulação de capital e conseqüência dos problemas gerados pela ampliação dos trabalhadores na produção, os métodos de controle do trabalho são aperfeiçoados e surge o que Braverman (1987) chama de “gerência científica”, com o intuito de adaptar o trabalho em função das necessidades do capital.

Já na produção autogestionária, a partir do momento que o trabalhador se associa, deixa de ser assalariado e passa a ser responsável pela administração da organização coletiva de produção. Ou seja, o processo de trabalho é organizado pelos próprios trabalhadores, não existe o comando por um gerente ou por um dono.

O valor das mercadorias no capitalismo é definido pelo tempo de trabalho mínimo necessário para a sua produção. Nesse tempo de trabalho, está incluído o tempo de trabalho da mercadoria utilizada como insumo, manufatura, que pertence a outro portador e deve ser trocado pelo seu valor. Isso implica que o valor real do produto depende das despesas.

No modo de produção capitalista, quanto mais as forças produtivas são desenvolvidas a partir do trabalho morto, pela maquinaria e tecnologia, aumenta-se a produtividade e o valor do produto cai. Diminuindo o valor do produto, o valor do tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção também cai, ou seja, o tempo do trabalhador. Assim, o tempo do trabalhador está subsumido ao tempo mínimo de

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trabalho imposto pela concorrência. “O que determina o valor não é o tempo que se gastou na produção de uma coisa, mas o mínimo de tempo no qual ela é suscetível de ser produzida, e esse mínimo é verificado pela concorrência” (Marx, 2004, p.59)

Luxemburgo (1999) analisa esta forma de organização do trabalho que ela caracteriza como cooperativas de produção, como “uma pequena produção socializada dentro de uma troca capitalista”. Para a autora, se na economia capitalista é a troca que domina a produção, a completa dominação do processo de produção pelos interesses do capital, em face da concorrência, se torna uma condição de existência da organização coletiva de produção.

Sendo assim, o trabalhador das organizações coletivas de produção acaba por se “auto-explorar” no momento da produção, pois para conseguir chegar ao valor da mercadoria imposto pela concorrência, é obrigado a trabalhar mais horas, uma vez que dificilmente utilizam tecnologia de ponta. Dessa forma, surge a necessidade de intensificar o trabalho o máximo possível, definir as horas de trabalho conforme a situação do mercado, empregar a força de trabalho conforme a necessidade do mercado ou colocá-la na rua, utilizando os mesmos métodos que permitem uma empresa capitalista concorrer com outra (LUXEMBURGO, 1999).

Para Marx, as cooperativas inseridas dentro do sistema capitalista superam o antagonismo entre capital e trabalho de forma que os trabalhadores acabam por se tornar capitalistas de si próprios, ou seja, utilizam os meios de produção para valorizar o próprio trabalho.

Assim, os operários encontram-se na

necessidade contraditória de governar-se a sim mesmos com todo o absolutismo necessário e desempenhar entre eles mesmos o papel de patrão capitalista. É desta contradição que morre a cooperativa de produção, quer pela volta à empresa capitalista, quer, no caso de serem mais fortes os interesses dos operários, pela dissolução (Luxemburgo, 1999, p. 81).

As organizações autogestionárias correm o risco, ainda, de tornar pior as condições de trabalho por meio do trabalho intensificado no sentido de se chegar ao valor da mercadoria imposto pela concorrência. A precarização característica das organizações de produção autogestionária é também de caráter específico, já que não está relacionada à exploração da mais-valia pelo capitalista da força de trabalho. Porém, consideramos a precarização nas condições de trabalho e vida existente aos trabalhadores envolvidos de tais organizações relaciona-se com o fato de estarem submetidos às condições impostas pelo capital.

Algumas correntes que defendem a produção autogestionária como forma de melhoria das condições do trabalhador, também acreditam na possibilidade de transformação da ordem capitalista a partir da proliferação destas organizações. Entretanto, como inserida no sistema, na medida em que a relação capitalista se amplia, destrói outras possibilidades de relações de produção.

No Manifesto de Lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx se refere ao movimento cooperativo, especialmente às fábricas cooperativas, como uma “vitória ilusória” da economia política do operariado sobre a economia política dos proprietários. Assim, Marx reconhece que as cooperativas têm valor demonstrativo para a classe operária ao provar que a produção pode se dar em outros marcos, que não o capitalista; e demonstra a crença de que o trabalho assalariado tenderia a desaparecer diante do trabalho associado, como uma forma transitória e inferior.

Porém, apesar deste valor, o cooperativismo sempre enfrentará grandes dificuldades se quiser expandir-se a ponto de oferecer risco à produção capitalista hegemônica. Neste texto, Marx mostra que a reação dos proprietários a qualquer tentativa de acabar com seu monopólio econômico, se dá a partir de privilégios políticos. Cabe aqui citar a crítica de Marx quanto à impossibilidade da proliferação do sistema cooperativista dentro do modo de produção capitalista a partir da análise da experiência de Robert Owen:

[...] a experiência do período decorrido entre 1848 e 1864 provou acima de qualquer dúvida que, por melhor que seja em princípio, e por mais útil que seja na prática, o trabalho cooperativo, se mantido dentro do estreito círculo dos esforços casuais de operários isolados, jamais conseguirá deter o desenvolvimento em progressão geométrica do monopólio, libertar as massas, ou sequer aliviar de maneira perceptível o peso de sua miséria. (Marx, 1984b, p. 319).

Podemos entender a impossibilidade material de superação da sociedade capitalista a partir das organizações de produção autogestionária por meio da análise feita por Luxemburgo (1999) sobre as cooperativas de trabalho. Para a autora, a cooperativa de produção só pode assegurar sua existência no seio da economia capitalista tendo um circulo constante de consumidores, por meio da cooperativa de consumo. Dessa maneira, as cooperativas de produção têm de limitar-se a um pequeno mercado local de forma reduzida, e de preferência de produtos alimentícios. Os ramos mais importantes da produção capitalista, estão previamente excluídos das cooperativas de consumo, e portanto, das cooperativas de produção. Assim, as cooperativas de produção não podem ser consideradas uma reforma social geral, pressupondo-se que

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para isso, seja necessária a supressão do mercado mundial e a dissolução da economia mundial atual em pequenos grupos locais de produção e de troca.

Nos limites de sua possível realização, as cooperativas de produção acabam por se reduzir em simples anexos das cooperativas de consumo, reduzindo toda reforma socialista por meio de cooperativas em luta contra o capital comercial, e não contra o capital de produção, e assim como luta contra o pequeno e médio capital comercial, ou seja, “contra pequenos ramos do tronco capitalista” (Luxemburgo, 1999, p. 83). Assim, evidencia-se sua incapacidade de transformar o modo de produção capitalista, se tornando apenas meio de reduzir o lucro capitalista.

Marx faz referência ao cooperativismo em sua Crítica ao Programa do Partido Operário Alemão, quando este expõe:

A fim de preparar o caminho para a solução do problema social, o Partido Alemão exige que sejam criadas cooperativas de produção com a ajuda do Estado e sob o controle democrático do povo trabalhador. Na indústria e na agricultura, as cooperativas de produção deverão ser criadas em proporções tais que delas surja a organização socialista de todo o trabalho (Programa do Partido Operário Alemão in Marx, 1984c).

Numa clara alusão ao fourierismo, owenismo e proudhonianismo, esta proposta do programa recebe dura crítica de Marx primeiro no que se refere à “ajuda do Estado”, ou seja, o Estado deve criar as cooperativas, e não os trabalhadores, o que significa a construção de uma nova sociedade por meio de empréstimos do Governo. Para Marx, as sociedades cooperativas “só têm valor na medida em que são criações independentes dos próprios operários, não protegidas pelos governos nem pelos burgueses” (1984c, p. 220). Como única solução para a expansão e o desenvolvimento cooperativo, Marx coloca a conquista do poder político (Marx, 1984b).

CAPÍTULO 2 – O DEBATE ATUAL SOBRE A AUTOGESTÃO NAS TESES E