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Mas quero falar de literatura especificamente. Em que se lê, sobretudo narrativas e expressão poética de povos e pessoas/personas em vidas vividas, sonhadas, desejadas, ensaio e criação. (Eliana Yunes)

Entendemos que a literatura é uma produção cultural que propicia desvelar o universo humano com suas peculiaridades. Por meio dela, podemos conhecer a história e a cultura das gerações anteriores, dos diferentes povos e de nós mesmos. A leitura literária nos leva a construir sentidos e a preencher lacunas deixadas pelo autor, posto que, ao lermos uma obra literária, entramos em contato com personagens e com esses vamos construindo um processo de identificação. Logo, o leitor interage com o texto a partir de seu contexto, de seus sonhos, de seus desejos.

De acordo com os registros históricos (FISCHER, 2006), desde sua origem, a literatura esteve vinculada aos interesses práticos da sociedade, distanciando-se da leitura por prazer, pois, “na maioria das vezes, a ‘literatura’ antiga expressava somente o que podia ser decorado. Leitura e escrita não existiam como domínios autônomos de atividade. Eram meros complementos ao discurso oral” (FISCHER, 2006, p. 13).

A literatura era utilizada por uma pequena minoria para satisfazer suas necessidades. Os nobres chamavam leitores e contadores para entretê-los durante as refeições como forma de socialização, bem como antes de dormir, utilizando-a

também para revelação do poder, manipulação religiosa e preservação dos preceitos morais da nobreza.

Para Manguel (1997), a história mostra que os monarcas, ditadores e governantes aspiravam contar com uma multidão analfabeta para dominá-la facilmente. Não podendo fazer desaprender a arte da leitura, utilizavam a limitação e a proibição como recursos para manter seu poder. O autor afirma que essa história é clareada por uma fileira permanente de fogueiras de censores, desde os primeiros rolos de papiros, códex, a livros de nossa época. Manguel (1997) traz à tona vários exemplos, como: 411 a.C., em Atenas, quando as obras de Protágoras foram queimadas; quando os nazistas queimam livros em Berlim, em 1933; a proibição da circulação de Dom Quixote no Chile, em 1981, liderada pelo general Pinochet; dentre outros acontecimentos que evidenciam a proibição da leitura, especialmente a literária, em virtude de seu discurso emancipatório, e a ameaça que esse potencial representa para os governos autoritários.

Esses fatos nos fazem lembrar do romance O Nome da Rosa (2016), de Umberto Eco. A obra apresenta uma série de acontecimentos ocorridos durante a Idade Média que caracterizam a passagem do feudalismo para um novo regime econômico, como o capitalismo da Europa Ocidental, o renascimento, dentre outros. A narrativa traz discussões acerca de várias temáticas, entretanto, situaremos o enfoque na proibição da leitura de livros na biblioteca de um mosteiro. Eco expõe o poder da igreja católica na época e o controle que ela mantém sobre as bibliotecas, impedindo ao homem comum ter acesso a livros. O acesso à antiga biblioteca de um convento beneditino era proibido, como vemos no fragmento a seguir:

[...] Ninguém deve. Ninguém pode. Ninguém, querendo, querendo, chegaria ali. A biblioteca defende-se por si, insondável como a verdade que abriga, enganadora como a mentira que guarda. Labirinto espiritual, é também labirinto terreno. Podereis entrar e podereis não sair (ECO, 2016, p. 76).

Na biblioteca, havia livros com saberes considerados profanos, especialmente o II livro da Poética de Aristóteles (o qual tinha suas páginas envenenadas e quem as tocasse morreria), que discorria sobre a comédia e o riso. Nessa visão, os livros poderiam ameaçar a fé cristã e corromper o homem comum.

Eco apresenta a proibição da leitura de literatura e o acesso ao livro como oposição ao conhecimento, visto que a biblioteca guardava um acervo de

conhecimentos materializados na obra de Aristóteles que simbolizava a abertura para o questionamento, para a ciência, para o raciocínio lógico e para a razão. Tais fatores ameaçariam a soberania exercida pela igreja.

Essas reflexões e fatos demonstram que a leitura de literatura tem relevante significado para a formação social, política, estética, emocional e intelectual do indivíduo, o que é reconhecido pelas classes dominantes e dominadas (MANGUEL, 1997). A literatura dá prazer, autoconhecimento e possibilidades para o ser humano interpretar a realidade e atuar sobre ela, sendo instrumento de libertação e criticidade.

É importante destacarmos que a disseminação da literatura se deu por meio da contação de histórias. Contadores antigos e mais experientes formavam rodas e, nesse contato direto com o público, chamavam a atenção para a apreciação das histórias. Manguel (1997) explica que ouvir o texto perdurou por muito tempo, antes do aparecimento da imprensa, considerando que a alfabetização era um fenômeno raro, como também raros eram os livros, que permaneciam nas mãos dos ricos e de poucos leitores. Por isso, uma das formas de familiarização com os livros era escutar os textos recitados ou lidos em voz alta. A leitura oral propiciava uma experiência diferente, pois, “ao mesmo tempo em que dependia também da capacidade de ‘desempenho’ do leitor, a leitura pública punha mais ênfase no texto do que no leitor” (MANGUEL,1997, p. 139). Os jograis recitados pareciam peças teatrais e o sucesso ou fracasso dependia do intérprete, das expressões e do tema.

No século XVI, os professores, seguindo o método escolástico, mostravam seus saberes às crianças e aos jovens, liam livros e depois os jovens repetiam em voz alta, aspirando, com isso, que os pupilos pudessem falar com eloquência e viver na virtude. De acordo com Manguel (1997, p. 97), o mérito desse tipo de leitura consistia em o indivíduo “ser capaz de recitar e comparar as interpretações de autoridades reconhecidas e, assim, tornar-se ‘um homem melhor’”.

A criança, inserida nas rodas de leitura dos adultos, quando aprendia a ler, era treinada para viver na sociedade conforme os padrões autoritários determinados. A literatura, dita infantil, atendia ao ensino de regras gramaticais e à memorização; a não assimilação desses textos implicava penalização, na qual os alunos liam e os professores seguravam uma vara de vidoeiro como forma de intimidá-los ou corrigi- los.

A literatura para a infância surgiu por meio de práticas voltadas para uma educação controladora e contraditória, não existindo lugar para o lúdico, para a imaginação nem para a beleza da poesia. Nessa lógica, Amarilha (2012, p. 46) explica:

É somente em fins do século XVIII que se consolida um conceito mais específico do que seja infância. A necessidade de educar essa nova geração e introduzi-la nos moldes civilizatórios que se impunham, com a Revolução Francesa e o processo de industrialização, em toda Europa, criavam também espaço para a produção cultural ao público emergente. Nasce, assim, uma literatura de cunho didático, em que o lúdico é apenas um recurso para a instrução. A partir de critérios pedagógicos, os livros que compunham as bibliotecas dos adultos foram adaptados para as crianças. As fontes foram diversas: os contos populares, lendas e fábulas se constituíram no primeiro repertório de literatura para as crianças. Essa literatura não tinha um objetivo puramente estético, mas nela predominava o tom instrucional e pedagógico, o que contribuiu para diminuir-lhe o status frente a outras manifestações artísticas.

Nesse contexto, percebemos que a literatura para a infância surgiu tardiamente e permaneceu por muito tempo a serviço dos ideais de uma sociedade que queria repassar seus preceitos e tradições. Mesmo depois de a infância ser vista como fase diferenciada, a literatura permaneceu a serviço da instrução dessas crianças nas escolas. Os livros foram adaptados para essa fase, com interesse didático.

De modo geral, temos uma história que efetiva o descaso com o texto literário como bem cultural, necessário aos seres humanos. Negar a literatura, ou utilizá-la somente com fins práticos, didáticos e instrutivos, tira do sujeito a oportunidade de crescimento pessoal.