• Nenhum resultado encontrado

2.7 O leitor de literatura

2.7.2 O efeito estético e a recepção

Desenvolvemos neste tópico uma discussão pautada nos conceitos fundantes da estética da recepção, que propõe um novo entendimento sobre a relação do leitor com o texto literário, bem como sugere que a obra literária não existe por si só, mas depende de um receptor, não devendo o foco incidir somente sobre a obra e o autor, mas também sobre o leitor e a recepção. Essa teoria “reflete sobre o leitor, a experiência estética, as possibilidades de interpretação e, paralelamente, suas repercussões no ensino e no meio talvez tenham o que transmitir ao estudioso, alargando o alcance de suas investigações” (ZILBERMAN, 2004, p. 6).

As discussões propostas terão como eixos basilares as teorizações dos principais expoentes alemães da Escola de Constança, Hans Robert Jauss, que se preocupa com a dimensão coletiva da leitura, e Wolfgang Iser, que traz uma visão voltada para o leitor individual. Sobre esses autores, Lima (2002, p. 52, grifo do autor) explica que

Jauss está interessado na recepção da obra, na maneira como ela é (ou deveria ser) recebida. Iser concentra-se no efeito (Wirkung) que causa, o que vale dizer, na ponte que se estabelece entre um texto possuidor de tais propriedades – o texto literário, com sua ênfase nos vazios, dotado pois de um horizonte aberto – e o leitor.

Essas teorias se complementam, pois indicam que o texto literário somente tem significação a partir da interação do leitor com a obra, de modo que este, ao entrar no texto, possibilita o diálogo, a interpretação e a construção de sentidos.

Para Jauss (1994), a obra literária tem um caráter dialógico, porque o leitor estabelece relações, interpretações e novas construções a partir do texto lido. A obra literária, por ser aberta, incompleta, propicia uma leitura inventiva, renovada, conferindo-lhe existência atual. O autor explica que

a história da literatura é um processo de recepção e produção estética que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles reflete (JAUSS, 1994, p.25).

As obras literárias escritas em tempos diferentes permitem ao leitor conhecer a sociedade e o conhecimento de mundo em um determinado período histórico. Essa leitura se renova à medida que o leitor conhece a realidade,os valores e os costumes dessa época e confronta com a atualidade, criando novos conceitos.

Jauss (1994) concebe o leitor como ser histórico que reconhece a história na estrutura textual, mas rompe com as leituras realizadas, fazendo suas interpretações e deixando suas marcas particulares no texto lido. O conceito de leitor paraZilberman (2004, p. 49),Jauss baseia-se em duas categorias:

A de horizonte de expectativa, misto dos códigos vigentes e da soma de experiências sociais acumuladas; e a de emancipação, entendida como a finalidade e efeito alcançado pela arte, que libera seu destinatário das percepções usuais e confere-lhe uma nova visão da realidade.

Segundo Jauss (1994), a literatura como acontecimento cumpre-se principalmente no horizonte de expectativa de leitores, críticos e autores, seus contemporâneos e pósteros, ao experienciarem a obra. A partir da experiência que o leitor tiver com a obra, terá condição de entender e apresentar a história da literatura em sua historicidade própria. O autor argumenta que existe uma relação de natureza dialógica entre o leitor e as obras que lê. O leitor dispõe de conhecimentos prévios, de referências de obras lidas, entretanto, ele pode romper com os esquemas formados, construir novos esquemas e ter uma nova percepção do universo a partir das novas leituras. Isso ocorre porque

a obra que surge não se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas, por intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas, predispõe seu público para recebê-la de uma maneira bastante definida. Ela desperta a lembrança do já lido, enseja logo de início expectativas quanto a “meio e fim”, conduz o leitor a determinada postura emocional e, com tudo isso, antecipa um horizonte geral da compreensão vinculado, ao qual se pode, então – e não antes disso –, colocar a questão acerca da subjetividade da interpretação e do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores (JAUSS, 1994, p. 28).

No decorrer de suas vivências e leituras, o leitor constrói conhecimentos, formula hipóteses e guarda para si esquemas que se formaram a partir dessas experiências, que é o horizonte de expectativas, responsável pela primeira reação que o leitor mantém com a obra. Após esse primeiro contato, o leitor evoca obras já lidas, criando expectativas e hipóteses do desenrolar e do desfecho da obra, que podem permanecer ou ser alteradas.

Desse modo, a função social da literatura é entendida a partir do encontro desta com o leitor, tendo em vista que o sentido da obra de arte deve ser visto como totalidade que se constrói historicamente. Sendo assim, a obra de arte literária é dependente da atividade perceptiva do leitor, que a transforma em objeto estético por meio da sua consciência, a qual tem a possibilidade de influenciar o destinatário ao veicular ou criar normas. A premissa de Jauss, segundo Zilberman (2004, p. 50), “é a de que a arte, não sendo meramente reprodução ou reflexo dos eventos sociais, desempenha um papel ativo: ela faz história, porque participa do processo de pré- formação e motivação do comportamento social”. Essa assertiva se concretiza porque a obra se comunica com o leitor, passando-lhe normas que são padrões de atuação. Nessa comunicação, o leitor se envolve intelectual, sensorial e emocionalmente com a obra, inclinando-se a se identificar com as normas transformadas em modelos de ação.

Jauss (2002) esclarece que a experiência estética não se inicia pela compreensão e interpretação do significado de uma obra, menos ainda pela reconstrução da intenção de seu autor, pois “a experiência primária de uma obra de arte realiza-se na sintonia com (Einstellungauf) seu efeito estético, isto é, na compreensão fruidora e na fruição compreensiva” (JAUSS, 2002, p.69). O leitor sentirá prazer no encontro com a arte se conseguir entendê-la (fruição

compreensiva) e somente entenderá o que aprecia (compreensão fruidora), ambos os processos concomitantes, que resgatam e valorizam a experiência estética e produzem um efeito.

Jauss (2002) explica que a experiência estética propicia a emancipação do sujeito, porque libera o ser humano dos constrangimentos e da rotina habitual e estabelece uma distância entre o sujeito e a realidade,que é convertida em espetáculo. Interpretar uma obra possibilita ao leitor sentir prazer e agir, preservar o passado, redescobrir acontecimentos enterrados e projetar o futuro.

A história da fruição estética, segundo Jauss (2002), materializa-se nos três conceitos da tradição estética: apoiesis, a aisthesis e a katharsis. A poiesis caracteriza-se pelo prazer que o indivíduo sente diante da obra, ao se sentir coautor. É uma experiência produtiva que oportuniza ao leitor satisfazer sua necessidade, alcançar outras dimensões ou permanecer no mundo real. A aisthesis é designada pelo efeito provocado pela obra, ou seja, o prazer adquirido através da experiência estética receptiva. A katharsisconsiste na experiência comunicativa da obra, visto que o indivíduo, além de sentir o prazer, sente a necessidade de ação e transformação das concepções que tem da sociedade, do mundo e da vida. Conforme Jauss (2002, p. 100-101),

apoiesisé o prazer ante a obra que nós mesmos realizamos; [...] a aisthesis designa o prazer estético da percepção reconhecedora e do reconhecimento perceptivo; [...] e a katharsis aquele prazer dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia, capaz de conduzir o ouvinte e o telespectador tanto a transformação de suas convicções, quanto à liberação de sua psique.

Essas três categorias básicas da experiência estética não precisam necessariamente ser vistas em uma hierarquia, porque elas estabelecem funções autônomas, podendo se relacionar entre si sem se subordinarem umas às outras. Entretanto, existe um movimento contínuo entre elas, em um processo que permite a recriação da obra de arte, interpretações sucessivas e a construção plural de significados que ultrapassam o horizonte de sua origem. É importante salientar que é um processo recíproco, no qual a obra é transformada pelo leitor e este, do mesmo modo, é transformado por ela.

O procedimento metodológico de Jauss é norteado pela hermenêutica literária, a qual propõe demonstrar a interação da obra com o leitor a partir da lógica

da pergunta e da resposta introduzida no texto, não no receptor. Para entender a hermenêutica literária, é preciso situar-se no quadro da experiência proporcionada pela obra de arte, quando ocorre o efeito estético que se compõe da compreensão fruidora e da fruição compreensiva. O prazer estético conta previamente com um componente intelectual, a ser descrito por uma abordagem de tipo hermenêutico, cabendo apontar

duas modalidades entre texto e leitor: de um lado, ao ser consumida, a obra provoca determinado efeito [wirkung] sobre o destinatário; de outro, ela passa por um processo histórico, sendo ao longo do tempo recebida e interpretada de maneiras diferentes – esta é sua recepção [rezeption] (ZILBERMAN, 2004, p.64, grifos da autora).

Desse modo, o texto literário produz um efeito no leitor, tendo em vista que sua recepção deve ser entendida como um efeito que se dá no espaço que medeia o texto e seu leitor, em um encontro estabelecido na construção de sentidos e na fusão de horizontes.

Iser (1996) defende que na leitura ocorre uma elaboração do texto, que se dá por meio de certo uso das faculdades humanas. Os efeitos do texto literário acontecem no processo de leitura, na comunicação proporcionada durante tal processo ao leitor. O texto literário apresenta um mundo imaginário de forma esquematizada, com espaços vazios, indeterminados, que requerem a presença de um leitor para preenchê-los. A intenção comunicativa é nitidamente evidenciada no texto literário, pois, “através dele, acontecem intervenções no mundo, nas estruturas sociais dominantes e na literatura existente” (ISER, 1996, p.15). Essas intervenções advêm das pistas e referências deixadas no text0o, que contribuem para sua compreensão. Nesse caso,

Iser tem condições de confirmar um dos principais postulados da estética da recepção: a obra literária é comunicativa desde sua estrutura; logo, depende do leitor para a constituição do seu sentido. Este não corresponde a nenhum conteúdo universal, perene e imutável a ser extraído por um leitor competente; pelo contrário, pode mudar, se o público, a sociedade e a época forem outros (ZILBERMAN, 2004, p.64).

Segundo Iser, o ato de leitura não se configura apenas como decodificação de códigos linguísticos, devendo ser considerado também o contexto de sua

produção e o modo como o leitor recebe o texto, a partir de um processo reflexivo que considera sua história, anseios, desejos, vivências e interdependências. Ao ser lido, o texto literário produz um efeito que se atualiza no processo de leitura. Esse efeito estético é causado pelo texto, mas requer do leitor atividades imaginativas e perceptivas.

Para Iser (1996), somente na leitura a obra, enquanto processo, adquire seu caráter próprio, ou seja, é o ser formado do texto na consciência do leitor. Os sentidos do texto são originados pelas diversas possibilidades de interação entre a obra e seus vários interlocutores. Esse autor esclarece que a obra literária tem dois polos: o polo artístico, que é o texto produzido pelo autor, e o polo estético, que é a realização efetuada pelo leitor. Este apreende diferentes pontos de vistas que o texto oferece e, em seguida, relaciona-os com os seus, ao passar por diversos pontos de vista e esquemas formados oferecidos pelo texto. Assim sendo,

segue dessa polaridade que a obra literária não se identifica nem com o texto, nem com sua concretização. Pois a obra é mais do que o texto, é só na concretização que ela se realiza. A concretização por sua vez não é livre das disposições do leitor, mesmo se tais disposições só se atualizam com as condições do texto. A obra literária se realiza então na convergência do texto com o leitor; a obra tem forçosamente um caráter virtual, pois não pode ser reduzida nem à realidade do texto, nem às disposições caracterizadoras do leitor (ISER, 1996, p. 50).

No entendimento deIser (1996), dentro do texto literário existem estruturas e composições que produzem efeitos e influenciam na recepção da obra pelo leitor, proporcionando, consequentemente, a interação entre texto e leitor. A interpretação dependerá da relação do efeito do texto a partir das estruturas oferecidas. O texto não tem sentido próprio, cabendo ao leitor construí-lo.

Iser (1999) explicita que o texto abriga um sistema de combinações linguísticas e, igualmente, é um lugar para aquele que deve realizar a combinação. Destaca que as lacunas deixadas no texto exigem que sejam preenchidas pelo leitor. Esses vazios condicionam a formação de representações do leitor a partir das condições instituídas pelo texto, tendo em vista que “os lugares vazios omitem as relações entre as perspectivas de apresentação, assim incorporando o leitor ao texto para que ele mesmo coordene as perspectivas” (ISER, 1999, p. 107), ou seja, o leitor é levado a agir dentro do texto, tendo sua atividade controlada pelo texto.

Existe também outro lugar sistêmico no qual o texto e o leitor se encontram, o qual representa os tipos de negação que aparecem no decorrer do texto. Essas potências de negação “evocam dados familiares ou em si determinados a fim de cancelá-los; todavia, o leitor não perde de vista o que é cancelado, e isso modifica sua posição em relação ao que é familiar ou determinado” (ISER, 1999, p. 107). Os lugares vazios e as negações regem de formas diferentes o processo de comunicação, mas são imprescindíveis para que ele aconteça, pois agem juntos como reguladores da interação entre o texto e o leitor.

Portanto, o texto literário é um processo de comunicação que requer a participação de um leitor ativo, posto que a leitura se constitui como uma interação entre texto e leitor, de modo que este preenche os vazios do texto e dá sentido ao que lê.