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[...] o tema da literatura sempre foi o homem no mundo (Sartre).

A literatura tem se constituído como uma criação artística indispensável para a sociedade, dada a sua essencialidade no tratamento das características humanas e as suas diversas relações entre o homem, a linguagem e seus contextos social, político e cultural.

A história revela que a literatura, em sua abrangência, tem sido intrínseca à vida do homem desde os povos primitivos, que expressavam suas experiências por meio de narrativas, passando pelas civilizações antigas até a contemporaneidade. Não podemos negar o valor da literatura para os seres humanos, contudo, sabemos que esta ora é vista como um bem necessário à vida, ora é culpada por incentivar o mal entre as nações.

Diríamos que a literatura é um legado que as gerações herdam de seus antepassados, pois narra a vida dos povos, as vivências, os medos, as lutas, as vitórias, os costumes e a cultura. Desse modo, é justificável a nossa identificação com personagens na construção de nossa própria história. Zilberman (2008) evidencia esse aspecto ao destacar a importância dos poemas Ilíada e Odisseia, explicando que

[...] os dois poemas épicos passaram a representar para os gregos o que a Bíblia significava para os hebreus: contava as origens da nação helênica, explicava a diferença entre os homens e os deuses, justificava o modelo político adotado, elencava, para a população, as normas de comportamento privilegiadas pela sociedade (ZILBERMAN, 2008, p. 17).

A literatura propicia o conhecimento e o processo de identificação com os personagens, ambos indispensáveis para nos reconhecermos integrantes de uma

comunidade. Por meio do texto literário, percorremos outros mundos, entramos nas histórias e construímos outras, visto que a literatura tem relação com nossa vida.

Essa afirmativa nos fez mergulhar em dois romances, Senhora (ALENCAR, 2009)e Olhai os Lírios do Campo (VERISSIMO, 2005), que, mesmo escritos com a diferença de mais de cinquenta anos entre um e outro, trazem questões relativas à predominância do capitalismo e seu efeito na vida humana, às diferenças sociais, ao casamento e seus interesses e à relação do homem consigo mesmo e com a sociedade.

Em Senhora (1875), de José de Alencar, a figura feminina assume características de uma mulher à frente de seu tempo. A personagem Aurélia Camargo, bela, inteligente e pobre, não perdoa seu amado Seixas por deixá-la por uma mulher rica. Ao receber uma inesperada herança, Aurélia, dividida entre o orgulho e amor ferido, planeja vingar-se do seu antigo noivo e propõe, através de seu tutor, um casamento por dinheiro sem que seja revelada sua identidade até as vésperas do casamento. O plano de Aurélia é concluído na noite de núpcias. Ela humilha o marido comprado, impondo-lhe regras de convivência conjugal, entre elas a de que, quando estivessem em casa, seriam dois estranhos, mas para a sociedade seriam vistos como um casal perfeito. Aurélia segue com seus planos de vingança e usa Seixas para satisfazer todas as suas vontades, deixando claro o seu direito de compradora:

[...] – Aurélia! Que significa isto?

- Representamos uma comédia, na qual ambos desempenhamos o nosso papel com perícia consumada. Podemos ter esse orgulho, que os melhores atores não nos excederiam. Mas é tempo de pôr termo a esta cruel mistificação, com que nos estamos escarnecendo mutuamente, senhor. Entretemos na realidade por mais triste que ela seja; e resigne-se cada um ao que é, eu, uma mulher traída; o senhor, um homem vendido.

- Vendido! Exclamou Seixas ferido dentro d'alma.

- Vendido sim; não tem outro nome. Sou rica, muito rica, sou milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado; comprei-o. Custou-me cem mil cruzeiros, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a minha riqueza por este momento (ALENCAR, 2009, p.93).

O marido comprado, subordinado à sua dona, atende aos seus caprichos, assumindo o lugar de homem objeto, sujeito a todas as vontades de sua compradora devido à dívida contraída para com esta. Aurélia mantém-se altiva, perspicaz,

soberana e dominadora, incentivada por sua imensa riqueza e pelo seu desejo de vingança.

É pertinente a afirmativa de Candido (2014) quando menciona que a integridade da obra somente pode ser entendida fundindo texto e contexto em uma interpretação dialeticamente íntegra. É preciso situar a obra, o autor e a influência da organização social, política e econômica.

As relações entre Aurélia e Seixas não podem ser vistas fora da realidade histórica na qual eles se encontram. Essas personagens representam a sociedade burguesa do Brasil no século XIX, aportada no dinheiro, moeda de troca das relações afetivas, bem utilizada pela protagonista para realizar seu plano e comprar um jovem ambicioso que pretende elevar-se dentro da sociedade por meio de um casamento bem-sucedido.

Candido (2014) nos mostra que o externo, o social trazido em Senhora, importa como elemento que desempenha uma função estruturante na obra, tornando-se interno. As condições sociais precisam ser entendidas dentro de um contexto para compreendermos o seu significado, conforme explica:

[...] Trata-se da compra de um marido; e teremos dado um passo adiante se refletirmos que essa compra tem um sentido social simbólico, pois é ao mesmo tempo representação e desmascaramento de costumes vigentes da época, como o casamento por dinheiro. Ao inventar uma situação crua do esposo que se vende em contrato, mediante pagamento estipulado, o romancista desnuda as raízes da relação, isto é, faz uma análise socialmente radical, reduzindo o ato ao seu aspecto essencial de compra e venda [...] Vemos que o comportamento do protagonista exprime, em cada episódio, uma obsessão com o ato da compra a que se submeteu, e que as relações humanas se deterioram por causa dos motivos econômicos. A heroína, endurecida no desejo de vingança, possibilitada pela posse do dinheiro, inteiriça a alma como por meio do capital, que o reduz à coisa possuída. E as próprias imagens do estilo manifestam a mineralização da personalidade, tocada pela desumanização capitalista, até que a dialética romântica do amor recupere a sua normalidade convencional. No conjunto, como no pormenor de cada parte, os mesmos princípios estruturais enformam a matéria (CANDIDO, 2014, p. 15-16).

As análises feitas por Candido indicam que o romance representa a estrutura da sociedade burguesa da segunda metade do século XIX: os casamentos arranjados, por conveniência, em uma espécie de mercado matrimonial, no qual se estabelecia um contrato social para a manutenção do status econômico das famílias.

O casamento de Aurélia com Seixas denota claramente uma relação desigual, marcada, por um lado, pelo poder pessoal da mulher ofendida, que usa sua riqueza para dominar e impor padrões de convivência social, e,por outro, por Seixas, comprado, humilhado e subordinado a uma situação de servidão à sua dona. Essa relação demonstra o poder coercitivo de uma sociedade mercantil, exploradora, sustentada pela mão de obra escrava para gerar riqueza dos latifúndios. As vontades de Aurélia são realizadas por causa de sua riqueza, que lhe dá o poder de escravizar. O desejo do jovem burguês de ascender socialmente e de ter uma estabilidade econômica o leva a aceitar um casamento por interesse e servir de escravo para a esposa. Os interesses sociais e econômicos se sobrepõem aos interesses humanos, reduzindoos sujeitos ao amesquinhamento, ao processo de despersonalização e à perda de sua própria identidade.

Acompanhamos uma história semelhante no romance Olhai os Lírios do Campo, de Erico Verissimo, escrito em 1938. A obra temcomo pano de fundo o Brasil pós-Revolução de 1930, que foi seguida pelo golpe que instituiu o Estado Novo. Nesse contexto, o país aderiu à economia capitalista e sofreu as consequências de conviver com a tradição rural, a burguesia rural, o intenso processo de industrialização, a modernização das cidades e o surgimento da burguesia industrial, que acentuaram as diferenças entre campo e cidade. Nesse cenário, prevaleciam o acúmulo do capital, a ostentação, a vaidade, o luxo e a supervalorização social, os quais se sobrepunham aos conceitos de moral e respeito ao outro, inclusive à família.

Nesse âmbito, o personagem Eugênio, com uma infância marcada pelas dificuldades financeiras, torna-se um homem pessimista e complexado. Seu desejo ambicioso de adquirir fortuna e fama leva-o a deixar seu amor, Olívia, mulher simples, humilde e determinada, para casar com Eunice, mulher rica e influente. Escolhendo o casamento como o caminho para contrair riqueza e reconhecimento social, Eugênio, que acreditava no dinheiro como solução para sua vida e suas angústias, passa a viver de aparências, adultérios, conflitos interiores e eternas contradições.

Aprendemos com Olívia outra forma de enxergar a vida e a sociedade, a superar a dor da traição ao ser trocada por outra. Ao contrário de Aurélia Camargo, que alimenta a vingança como forma de superar a dor, Olívia mostrou-se, através das cartas que escreveu para Eugênio, uma mulher controlada, humilde e que

criticava a sociedade capitalista fútil e vazia, o acúmulo de riquezas e a consequente hipocrisia das relações sociais, que leva o ser humano a se moldar e a se tornar máquina. Ela é apaixonada pela vida e defensora de valores humanos, como podemos observar no fragmento abaixo:

Mas o que procuro, o que desejo, é segurar a vida pelos ombros e estreitá-la contra o peito, beijá-la na face. Vida, entretanto, não é o ambiente em que te achas. As maneiras estudadas, as frases convencionais, excesso de conforto, os perfumes caros e a preocupação com dinheiro são apenas uma péssima contrafação da vida. Buscar a poesia da vida fora da vida será coisa que tenha nexo? (VERISSIMO, 2005, p.171).

A personagem feminina de Verissimo transparece doçura, sensibilidade e demonstra ser conhecedora das inquietudes masculinas, ao mesmo tempo que se revela forte e determinada ao seguir sua carreira profissional e criar, sozinha, a filha que tem com Eugênio.

As narrativas expostas apresentam situações que elucidam as relações humanas com o outro e com a sociedade. Trazem reflexões sobre as diferentes atitudes das personagens, em circunstâncias semelhantes, evidenciando a importância da literatura para a construção da identidade do homem, pois ela expressa em suas obras as nossas vivências, os conflitos que enfrentamos no cotidiano, os desejos que sentimos, as relações que construímos com o outro e a relação com a sociedade na qual vivemos. O poder imaterial da literatura não pode ser medido, avaliado, pesado, mas serve para a alma humana, para o encontro dos sujeitos com seu interior e exterior, visto que dá prazer; guarda e revela, simultaneamente, os segredos da mente humana; alarga os horizontes da vida.

Segundo Eco (2003), estamos cercados de poderes imateriais que influenciam nossa vida e têm algum significado. Dentre vários deles, o autor cita a literatura e a designa como um conjunto de textos que a humanidade produziu e produz para fins não práticos, não utilitários para as tarefas cotidianas (anotações, registros). São textos que se leem por prazer, elevação espiritual, ampliação dos próprios conhecimentos e até por passatempo.

Eco é bastante enfático ao destacar a literatura como um poder imaterial e defende que somente o fato de esta servir para deleite já seria suficiente para a formação do homem. Ele traz para nós algumas funções que a literatura assume para a nossa vida individual e social, pois

[...] a literatura mantém em exercício, antes de tudo, a língua como patrimônio coletivo; a língua vai para onde ela quer, mas é sensível às sugestões da literatura; a literatura, contribuindo para formar a língua, cria identidade e comunidade (ECO, 2003, p.10-11).

O autor explica a influência da literatura na formação da língua individual e coletiva, uma vez que diversas obras e seus autores foram fundamentais para o desenvolvimento da linguagem de diversos povos.

Segundo Eco (2003), a língua é mutável e percorre vários caminhos. O autor nos convida a pensar o que teria sido da civilização grega sem Homero e da identidade alemã sem a tradução da Bíblia feita por Lutero. Destacamos outra função da literatura citada pelo autor, a de que “a leitura literária nos obriga a um exercício de fidelidade e de respeito na liberdade de interpretação” (ECO, 2003, p.12). Nessa perspectiva, ele nos adverte que devemos propiciar ao leitor a liberdade de interpretação, o confronto com os conhecimentos das experiências que o leitor tem e a produção de novos, visto que o texto literário proporciona essa liberdade.A esse respeito, Eco (2003, p. 12) acrescenta:

As obras literárias nos convidam à liberdade de interpretação, pois propõem um discurso com muitos planos de leitura e nos colocam diante das ambiguidades e da linguagem da vida. Mas para poder seguir neste jogo, no qual cada geração lê obras literárias de modo diverso, é preciso ser movido por um profundo respeito para com aquela que eu, alhures, chamei de intenção do texto.

O autor esclarece que o texto literário abre um leque de possibilidades, de interpretações e de inferências. É respeitável que o leitor seja conduzido a formular suas interpretações e juízos de valor, entretanto, convém ressaltar que isso não significa que todos os entendimentos sejam aceitos, pois o texto traz proposições que não podem ser colocadas em dúvida ou interpretadas livremente.

A leitura do texto literário coloca o leitor em contato com diversas sensações, provocando reações e experiências múltiplas. Essa leitura é uma troca de impressões e de comentários acerca do texto, já que proporciona as lembranças e as vivências de acontecimentos cotidianos. Por essa razão, é importante a formação do leitor literário no sentido de proporcionar ao ser humano a fantasia, a liberdade, a espontaneidade e a inventividade, que são inerentes aos indivíduos. Para Pound (2013, p. 35), “a literatura é linguagem carregada de significado”. O leitor interage

com o texto e dá sentido ao que está escrito, não apreendendo somente o que é exposto pelo texto, o que está previamente definido. O leitor constrói novas significações, novos sentidos, que podem ser acrescentados à linguagem.

Portanto, as qualidades comunicativas da literatura trabalham as questões sociais e promovem o questionamento e a criticidade. A literatura apresenta, refuta, indaga e confirma crenças e valores preconcebidos por diferentes gerações. É um evento da fala e do texto que exige uma leitura envolvente, o que conduz o leitor a dar sentido ao que lê a partir de seu contexto, sendo indispensável para a formação humana.