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1. O MUSÉE DE L’HOMME

1.4. O Musée de l’Homme, um marco para a Etnologia Francesa (1938-1980)

1.4.2. A Longa Relação entre Vallois e o Musée de l’Homme

Apesar de haver assumido definitivamente a direção do Musée de l’Homme apenas em 1950, Victor Henri Vallois já estava envolvido com a instituição desde 1928. Tendo disputado nesse ano a direção do antigo MET e ocupado temporariamente o cargo de diretor do MH em 1941, a vida profissional desse antropólogo físico foi marcada por uma densa história de diálogos com a Etnografia e por uma rivalidade intensa com Paul Rivet.

Reconhecido pelos seus trabalhos em Anatomia comparada e pela direção de instituições e periódicos ligados à Antropologia – como a revista L’Anthropologie, dirigida por ele durante quarenta anos –, Vallois assumiu o MH valorizando sobretudo a ciência antropológica na instituição. Nascido em 1889 e formado em medicina pela Faculdade de

Medicina de Montpellier em 1914, ele se aprofundou nos estudos de anatomia e começava a travar contatos com especialistas parisienses quando houve a eclosão da Primeira Guerra Mundial, de modo que o então médico foi designado Major Ajudante de 2ª classe e enviado ao front, onde ficou conhecido pelo “sangue frio” ao operar o chefe de seu próprio batalhão em meio a um tiroteio (DELMAS, 1982).

Após passar dois anos como prisioneiro na Baviera e perder um irmão no conflito, Vallois retornou a Montpellier, onde se casou e assumiu o cargo de chefe de trabalhos práticos de anatomia na Faculdade de Medicina. Posteriormente, ele foi designado para a Faculdade de Toulouse, onde, com apenas trinta anos, assumiu a cadeira de Anatomia após a morte do antigo titular, o professor Soulié (DELMAS, 1982).

A partir de então, dedicou-se à renovação do Museu de História Natural de Toulouse e a desenvolver seu antigo interesse no estudo da anatomia comparada, travando novamente contado com os especialistas de Paris, dentre os quais o médico Raoul Anthony, na época titular da cadeira de Anatomia Comparada do MNHN. Anthony foi um dos principais responsáveis por despertar em Vallois o interesse pela Antropologia Física e pela sua introdução em uma corrente acadêmica de pesquisa, a qual defendia uma definição estritamente naturalista da Antropologia e opunha-se à rede à qual pertencia Rivet (LAURIÈRE, 2015, p. 76), defensor de uma definição mais ampla que compreendia o estudo dos grupos humanos não apenas com base em seus aspectos biológicos, mas principalmente nos culturais.

Como já mencionado, ambos iriam disputar em 1928 a titularidade da cadeira de Antropologia do MNHN e, consequentemente, a direção do Musée du Trocadéro, antecessor do Musée de l’Homme. Nesse sentido, tal disputa representava não somente a eleição de um novo intelectual para esses cargos, mas, principalmente, a definição e os futuros caminhos da Antropologia nas duas instituições, já que o vencedor iria conduzir os desenvolvimentos dessa ciência em direção aos estudos físicos ou sociais. Levando em conta tais fatores, a disputa entre as duas correntes foi violenta, causando a ruptura entre a Antropologia Social e a Antropologia Física dentro da Universidade de Paris. O processo eleitoral, do qual Rivet saiu vencedor, acabou criando uma inimizade entre este e Vallois, a qual seria agravada futuramente quando o primeiro foi obrigado a exilar-se na Colômbia e foi substituído na direção do MH em 1941 pelo segundo.

Após a eleição de 1928 Vallois deu continuidade a seus estudos e assumiu, quatro anos depois, o cargo de editor chefe da revista l’Anthropologie (A Antropologia), tornando-se posteriormente diretor dessa. Na edição de 1932 dessa revista, ele e o paleontólogo Raymond Vaufrey (1890-1967) dedicaram doze páginas à descrição e à análise da Exposição Colonial de

1931, o que demonstra que Vallois já possuía um profundo interesse pelas temáticas ligadas à museologia. A explicação de tal interesse pode ser encontrada na própria história da Antropologia, que esteve intrinsecamente ligada no século XIX ao sentido da visão e à lógica da exibição (dos esqueletos, dos artefatos etnográficos e das fotografias, entre diversos outros recursos) (L’ESTOILE, 2003).

Em sua parte da análise, Vallois descreveu os pavilhões da exposição e teceu elogios à arquitetura e às estratégias de construção adotadas, as quais procuravam reproduzir os estilos dos países representados e até mesmo reconstituir alguns edifícios destes. O caráter da exposição, que se centrava numa tentativa de reconstrução realística da vida nas colônias e em proporcionar ao visitante a ilusão de realmente estar nelas, foi apreciado por Vallois, que inclusive criticou a arquitetura dos edifícios administrativos e dos restaurantes da exposição que, por possuírem um estilo francês da época, destoavam do “estilo colonial tão fantasioso” e rompiam a “belíssima impressão dada pelas construções oficiais” (VALLOIS, 1932, p. 56).

Apesar de o realismo haver sido evitado ao máximo na concepção das galerias do

Musée de l’Homme70 ele foi uma estratégia de exibição largamente adotada pela curadoria etnográfica francesa (L’ESTOILE, 2003), de tal modo que sua utilização ocorreria posteriormente no MH na década de 1970, durante a reestruturação da instituição. Nesse sentido, apesar de não haver realizado muitas mudanças durante sua direção, Vallois fez parte de uma linha sucessória de diretores que permitiram o repensar da concepção expográfica em direção ao estilo realista, o qual permaneceria no MH até seu fechamento temporário em 2009. Ainda sobre a Exposição Colonial de 1931, Vallois dedicou a maior parte de sua análise aos aspectos etnográficos dessa, tecendo uma crítica à falta de metodologia científica na articulação destes. No fim do artigo analisa, um pouco ressentido, o modo como a Antropologia Física havia sido tratada no evento:

[...] Certamente a Exposição havia reunido um número de indígenas muito maior do que jamais visto, e quando nos recordamos dos belos estudos feitos por Deniker e Laloy sobre os indivíduos vindos para a Exposição de 1889, nós poderíamos esperar que, aqui, seria possível conseguir muito mais. Essa esperança foi vã: nenhuma facilidade para trabalhar foi dada aos especialistas que desejavam abordar essas questões (o mesmo ocorreu com aqueles que estudavam a Linguística), as preocupações do momento não permitiram que os indígenas fossem distraídos das funções que eles exerciam. Algumas fotografias, tiradas aqui e acolá por diversos antropólogos, foram o

70 No documento “Quelques considérations sur l’exposition des objets ethnographiques” Anatole Lewitsky elaborou instruções claras que solicitavam o afastamento do estilo realista na organização dos objetos das galerias etnográficas. AMQB/DA000280/15309. LEWITSKY, Anatole. Quelques considérations sur l’exposition des objets ethnographiques. Paris, 1935.

único resultado prático que a Antropologia Física pôde retirar dessa vasta manifestação. Devemos convir que é pouco71 (VALLOIS, 1932, p. 60).

As falas de Vallois constituem importantes demonstrativos das relações que Antropologia e Etnografia travaram com a Exposição Colonial de 1931, permitindo observar como a ciência, a política e a cultura caminharam juntas na produção de um discurso humanista colonial. Este sustentava a suposta benevolência de um império que se concentraria em promover o desenvolvimento de suas colônias e em valorizar a diversidade cultural dessas por meio da exposição de suas produções técnicas e artísticas, objetivando com isso reestabelecer o senso de individualidade dos colonos e impedir o surgimento de movimentos nacionalistas (L’ESTOILE, 2003).

Para a produção de tal discurso, a Antropologia Física deixava de ser interessante, pois focava-se apenas na análise e catalogação dos aspectos biológicos dos indivíduos. Por outro lado, a Etnografia, ciência que despontava com força na França do século XX, trabalhava com a análise cultural dos seres humanos por meio dos objetos produzidos por estes, o que possibilitava a valorização da diversidade cultural das colônias por meio da exibição e do estudo das diferentes técnicas utilizadas na produção de seus artefatos. Nesse sentido, ao objetivar a construção e disseminação desse discurso humanista colonial, a exposição de 1931 favoreceu as exibições e estudos etnográficos em detrimento dos relacionados à Antropologia Física, já que os primeiros iam de encontro aos novos objetivos da política colonialista. De sua parte, a Etnografia se favoreceu do apoio governamental e das exposições para despontar como o principal ramo da Antropologia francesa no século XX, procurando estabelecer um novo tipo de compreensão dos seres humanos por meio do estudo de sua cultura e de suas técnicas, e estimulando, ao mesmo tempo, um movimento científico que passava a diminuir a importância dos caracteres físicos e do determinismo biológico na compreensão da espécie humana.

É por meio de tal análise que podemos observar como ciência (Etnografia), empreendimentos culturais (Exposição Colonial) e política (projeto imperial) se entrelaçaram para a produção do discurso humanista colonial, ao mesmo tempo em que se favoreciam (eram

71 Traduzido do original : [...] Certes, l'Exposition avait réuni un nombre d'indigènes beaucoup plus grand que ce n'avait jamais été le cas, et quand on se souvient des belles études faites par Deniker et Laloy sur les sujets venus pour l'Exposition de 1889, on pouvait espérer, qu'ici, il serait possible de réaliser beaucoup plus. Cet espoir a été vain: aucune facilité de travail n'a été accordée aux spécialistes qui désiraient s'intéresser à ces questions (il en a été de même pour ceux qui étudiaient la linguistique), les préoccupations du moment n'ayant pas permis de distraire les indigènes des emplois qu'ils occupaient. Quelques photographies, prises çà et là par divers anthropologistes, ont été le seul résultat pratique que l'anthropologie plrysique a pu retirer de cette vaste manifestation. On conviendra que c'est peu.

produzidos) por ele. Essa rede de relações aponta como os discursos se relacionam com as práticas sociais, definindo os saberes, as formas de comportamento e as funções de uma época. Como sugeriu Foucault (2008), essa reflexão demonstra como o discurso, neste caso o do humanismo colonial, excluía outros tipos de enunciado – como por exemplo, aqueles ligados à Antropologia Física –, ocupando em meio a todos os outros um lugar que nenhum outro poderia ocupar, já que era um produto daquela rede de relações específica, ao mesmo tempo em que também era um produtor dela.

Esse contexto também nos permite compreender parte da desvalorização da Antropologia Física na França e a derrota de Vallois para Rivet na eleição de 1928, pois, ao defender o estudo dos grupos humanos por meio de suas técnicas, línguas e costumes, além de pregar a necessidade da tutela francesa das colônias, este último alinhava-se ao discurso supracitado e ajudava a reproduzi-lo. O resultado de tal alinhamento foi tão eficaz que Rivet ficou conhecido como um dos maiores etnólogos franceses, ao passo que o Musée de l’Homme, idealizado por ele com base nesse humanismo colonial, foi um dos grandes expoentes da Etnologia mundial até meados de 1950.

Ao perder essa eleição, Vallois passou a representar uma corrente da Antropologia francesa que se enfraquecia frente aos avanços da Etnografia e seu apoio governamental, mas que continuava a reunir um grande número de estudiosos e a sustentar teorias amplamente apoiadas pela sociedade, as quais relacionavam o estudo e a compreensão dos seres humanos principalmente ao estudo de seus caracteres físicos. Desse modo, assim como aconteceu com a Antropologia Física, a carreira de Vallois não ficou estagnada, mas voltou-se a outros pontos de interesse, de modo que ele passou a desenvolver importantes estudos em anatomia comparada, biométrica e paleoantropologia (Vallois, 1935, 1940, 1943, entre diversos outros) e a ocupar diversos cargos acadêmicos que o levariam a ser reconhecido como uma das referências da Antropologia na França.

Em 1937 Vallois assumiu a direção do laboratório de Antropologia da École

Pratique des Hautes Études (Escola Prática de Estudos Avançados) e no ano seguinte foi

nomeado professor de Antropologia Pré-Histórica no Institut de Paléontologie Humaine (Instituto de Paleontologia Humana). No mesmo ano, assumiu a secretaria geral da Sociedade de Antropologia de Paris, cargo que ocuparia até 1969.

O ano de 1941 seria marcado por grandes mudanças para o antropólogo. Com a ida de Rivet para o exílio devido à sua perseguição pela Gestapo, os cargos deste, que compreendiam a cadeira de Ethnologie des hommes actuels et des hommes fossiles (antiga cadeira de Antropologia) do MNHN e de diretor do Musée de l’Homme, necessitavam ser

preenchidos, os quais foram delegados num momento de urgência ao etnógrafo Marcel Griaule. Este propôs o desmembramento do museu com o objetivo de reorganizar a Etnologia francesa, sugerindo que o MH abandonasse seu caráter interdisciplinar para dedicar-se exclusivamente ao trabalho etnográfico, o que deslocaria o museu do papel protagonista que ocupava até então e concentraria seus esforços de pesquisa em direção ao meio universitário (LAURIÈRE, 2015). Alguns meses depois, um novo processo eleitoral foi organizado no MNHN com três candidatos aos cargos: Paul Lester, Jacques Millot e Vallois. Os três estudiosos dedicavam- se à Antropologia Física, mas os dois primeiros eram próximos à rede de Rivet, enquanto o último era seu antigo adversário. Apesar da eleição haver sido vencida por Millot, Vallois assumiu os cargos em janeiro de 1942, levantando sérias suspeitas quanto à sua associação ao governo Vichy. No entanto, a historiadora da Antropologia Christine Laurière (2015, p. 72) defende que tal movimentação constituiu apenas uma estratégia para que a direção do MH não caísse nas mãos de George Montandon, antropólogo racista e influente que havia declarado sua intenção em assumir o lugar de Rivet. Nesse sentido, a delegação dos cargos a Vallois haveria ocorrido como um modo de agradar os apoiadores de Montandon, mas de impedir a sua eleição (LAURIÈRE, 2015).

Ao mesmo tempo em que Vallois assumiu a direção do museu, seu antigo cargo de diretor do laboratório de Antropologia na École foi transferido para Griaule, que o rebatizou para laboratório de Etnografia. Com tal manobra, o primeiro permitiu que Griaule ocupasse um lugar de influência no meio acadêmico e enterrou o programa de reformulação do MH proposto por ele, conservando o projeto interdisciplinar de Rivet e principalmente a ideia de um museu de síntese, a qual ele defendeu veemente durante esses primeiros três anos que esteve à frente da instituição. Nesse período, o antropólogo realizou diversas contribuições ao museu, dentre as quais encontram-se importantes trabalhos de conservação, organização e classificação das coleções. Mais do que isso, Vallois impingiu um ritmo de trabalho firme no museu, impedindo que este caísse numa letargia devido à guerra e as perdas de pessoal sofridas. Desse modo, por meio da reorganização do MH e da promoção da exposição Collections de l’Aurès (Coleções do Aurès), o público do museu foi mantido durante o período da ocupação alemã a Paris, e a quantidade de visitantes alcançada em 1943 chegou a ser maior do que aquela referente aos anos de 1939 e 1940 (LAURIÈRE, 2015).

Apesar do importante trabalho realizado por Vallois durante a ausência de Rivet, o retorno deste último em outubro de 1944 acirrou a inimizade entre ambos. Ao retomar seu cargo de diretor do MH, Rivet não deu qualquer satisfação ao primeiro e tampouco lhe ofereceu um cargo no museu em reconhecimento pelo seu trabalho, de modo que Vallois passou a nutrir um

intenso rancor pelo etnólogo (DUARTE, 1960, p. 41). Nos anos seguintes, ele concentrou seus trabalhos em estudos paleontropológicos sobre as variações dos caracteres morfológicos da espécie humana, tendo publicado importantes obras como Les Races Humaines (As Raças Humanas) (1947) e Les Hommes Fossiles (Os Homens Fósseis) (1946), este último escrito com o paleontólogo Marcellin Boule. Devido à aposentadoria compulsória de Rivet em 1950, Vallois assumiu de forma definitiva o cargo de diretor do MH, posição que ocupou até 1960.

1.4.2.1. O Período Vallois (1950 – 1960)

Durante o período em que dirigiu o Musée de l’Homme Vallois deu especial atenção ao departamento de Antropologia da instituição, sendo um dos grandes responsáveis pela sistematização e estudo das coleções osteológicas. Na primeira vez em que havia ocupado o cargo, o antropólogo inventariou detalhadamente tais coleções e, quando reassumiu o cargo em 1950, atualizou esses dados, transcrevendo-os em uma nota interna na qual classificou em diversas categorias e subcategorias os mais de doze mil crânios e seiscentos e vinte sete esqueletos conservados no museu72.

Nos dez anos subsequentes, Vallois enriqueceu significativamente essas coleções, fosse por meio da aquisição financeira de séries de crânios e fragmentos ósseos ou do recebimento destes por meio de doações que eram articuladas por ele73. Além disso, durante a sua direção o departamento de Antropologia do MH classificou e examinou diversas séries osteológicas, como foi o caso da coleção de Paul Broca, composta por quatro mil quatrocentos e noventa e seis crânios e cinquenta e cinco mandíbulas, as quais foram definitivamente catalogadas e divididas de acordo com o continente de proveniência e o país, caso este fosse a França74.

Ao mesmo tempo, a década de 1950 foi marcada na Europa pelo acirramento dos debates científicos sobre as raças humanas e a luta contra o racismo. A Segunda Guerra Mundial, encerrada cinco anos antes do antropólogo assumir a direção da instituição, deixou profundas marcas sociais e econômicas, além de um estarrecimento geral com o

72 MASMNHN/ 2 AM 1 I1d. VALLOIS, Henri. COMUNICATIONS – Inventaire des Collections Osteologiques du Département d’Anthropologie du Musée de l’Homme. 1950.

73 Essas informações foram levantadas a partir da análise dos relatórios trimestrais produzidos de 1950 a 1959 pelo Laboratório de Antropologia do Musée de l’Homme, os quais podem ser consultados em MASMNHN/ 2 AM 1 I1d.

74 MASMNHN/ 2 AM 1 I1d. LABORATOIRE DE ANTHROPOLOGIE. Activité du laboratoire pendant le 3ème trimestre 1954.

reconhecimento de que as atrocidades cometias pelo Terceiro Reich haviam sido realizadas com base no conceito de raça e de um suposto bem maior.

Nesse contexto, um amplo movimento de rejeição ao racismo começou a formar-se em diversos setores da sociedade, sobretudo no meio acadêmico, onde eram questionadas principalmente a teoria da degeneração racial e a existência da desigualdade intelectual entre as diferentes raças humanas. É em tal conjuntura que a Unesco, criada em 1945 com o objetivo de defender a paz por meio da “solidariedade intelectual e moral da humanidade” (UNESCO, 1945), inicia a publicação de diversos artigos que defendiam a igual capacidade intelectual para todos os seres humanos, a inexistência de raças inferiores ou superiores e chegavam até mesmo a questionar as classificações raciais (LEIRIS, 1951; UNESCO, 1969).

Produzida em 1950, a primeira dessas publicações foi redigida por intelectuais pertencentes aos mais diversos países, como Ashley Montagu (Estados Unidos), Ernest Beaglehole (Nova Zelândia), Claude Lévi-Strauss (França), L. A. Costa Pinto (Brasil) e Humayun Kabir (Índia), o que demonstra a existência de uma movimentação acadêmica a nível internacional que buscava refutar os fundamentos conceituais das teorias racistas. Um ano depois, o etnólogo Michel Leiris, responsável pelo departamento de África Negra do Musée de

l’Homme e conhecedor das metodologias de classificação antropológicas que, nessa época,

sustentavam o pensamento racista dentro das instituições museológicas francesas, escreveu o artigo “A Questão Racial diante da Ciência Moderna”. Nessa publicação, Leiris refutou a existência de uma conexão obrigatória entre os caracteres físicos e psicológicos dos grupos humanos, tecendo também uma crítica ao sistema de “classificação racial” ao sustentar que este era muitas vezes arbitrário, pois, devido às diversas mestiçagens pelas quais poderiam passar os indivíduos, a maioria destes seria simplesmente inclassificável. Por fim, o autor ressalta seu posicionamento contrário não apenas ao racismo científico, mas também ao colonialismo, articulando violentas críticas ao egocentrismo dos ocidentais e à crença de que a sua cultura seria o único modelo de civilização válido (LEIRIS, 1951, p. 18).

As críticas de Leiris ao colonialismo atingiram duramente o MH na década seguinte (1960), no contexto dos movimentos de descolonização. Por outro lado, as diversas observações quanto ao sistema classificatório racial e sua íntima relação com o racismo surtiram efeito muito mais rápido nas galerias etnográficas da exposição permanente, como pode ser observado nas duas imagens abaixo:

Figura 11 e Figura 12. Vitrine: “Finno-Ougriens”. As duas fotografias, retiradas da mesma vitrine em 1947 (imagem à esquerda) e 1951 (imagem à direita), representam as mudanças sofridas nas vitrines do Musée de

l’Homme com a popularização das críticas ao sistema classificatório racial, o que levou à retirada de todos as

referências ósseas das galerias etnográficas. (Fonte: Musée du Quai Branly, 1947; 1951.) 75

As duas fotografias correspondem à vitrine “Finno-Ougriens” (Fino-Úgricos), mas enquanto a imagem da esquerda foi produzida em 1947, a da direita é de 1951. Comparando as duas, observa-se que no período de quatro anos transcorrido entre a produção de ambas uma mudança significativa foi realizada na vitrine: a supressão dos crânios que se encontravam na prateleira superior, com o consequente remanejamento de dois objetos etnográficos que se encontravam na prateleira inferior para ocupar o lugar dessas referências ósseas.

O conjunto de imagens acima representa a principal transformação ocorrida nas vitrines do museu nesse contexto, a saber, a retirada de todas as referências ósseas das galerias