• Nenhum resultado encontrado

1. O MUSÉE DE L’HOMME

1.1. Os Museus Franceses e a Etnologia

A história da Etnologia francesa está intimamente ligada à das instituições museológicas. As grandes coleções de artefatos de sociedades consideradas “exóticas” pelos franceses e conservadas em seus museus – as quais foram reunidas principalmente por meio dos processos imperialistas abordados anteriormente – possibilitaram, no século XIX, o desenvolvimento da Antropologia cultural e de metodologias que se baseavam na análise dos objetos para estudar as variadas culturas dos diferentes grupos humanos. Tendo se desenvolvido na França em contraposição à Antropometria, essa ciência passou a ser conhecida como Etnologia e tornou-se independente no país somente em inícios do século XX, com a criação do Instituto de Etnologia de Paris em 1925 e, principalmente, do Musée de l’Homme em 1937. Compreender a história dessa ciência em consonância com a dos museus franceses é fundamental para entender os contextos e as bases conceituais e institucionais que permitiram o surgimento do MH, objeto de análise desta tese.

Na França, as principais coleções nacionais reunidas após a revolução de 1789 por meio do confisco de artefatos pertencentes à Igreja e à burguesia foram destinadas ao Louvre ou a Versailles, mas uma grande quantidade de artefatos considerados menos importantes teve como destino outras regiões francesas. Com isso, quinze museus foram criados nas maiores cidades provinciais do país, o que levou ao desenvolvimento de um “desejo de museu” que perdurou em toda França até o fim do século XIX. Combinado às concepções científicas da época – segundo as quais os museus eram os principais locais onde o “verdadeiro conhecimento” era produzido – e às ações do Estado pela instrução popular, esse “desejo de museu” fez com que fossem criados na França ao longo desse século mais de quinhentos museus (LABOURDETTE, 2015, p. 12).

Napoleão Bonaparte exerceu papel fundamental em tal processo, pois em decorrência de suas campanhas e tratados de armistício – que envolviam a escolha, coleta e translado de artefatos – transferiu em larga escala para a França coleções de objetos artísticos e antiguidades, utilizando a justificativa de que, devido à sua singularidade e importância, esses artefatos deveriam ficar a cargo de nações livres e capazes de conservá-las. Nesse sentido, seus retornos a Paris eram sempre marcados por grandiosas festas e desfiles, sendo que as coleções mais significativas eram direcionadas ao Louvre. O restante era encaminhado a museus de

outras regiões, num processo que acabou centralizando em Paris essas deliberações e a coordenação geral dos museus (BRUNO, 1999, p. 14).

Nesse contexto, os incentivos estatais, os colecionadores particulares e a criação de diversas associações artísticas e científicas foram responsáveis pelo desenvolvimento de uma densa malha de museus na França do século XIX. Inseridas em um contexto científico no qual estudiosos, médicos e naturalistas procuravam inventariar e classificar os diferentes grupos humanos, essas instituições – não apenas as francesas, mas os museus de um modo geral – forneceram os meios para o desenvolvimento e a profissionalização de uma ciência que teria como objetivo o estudo do ser humano em seus aspectos físicos e socioculturais: a Antropologia.

A Antropologia foi uma das disciplinas resultantes dos movimentos de especialização da História Natural. No caso francês, ela surgiu intimamente ligada ao movimento naturalista impulsionado por pensadores como Montesquieu e Rousseau, no qual os indivíduos eram compreendidos, filosófica e cientificamente, submissos às leis da natureza e ao rigor dos determinismos dessa. Baseados na observação e no método indutivo, os primeiros estudos concentravam-se na influência do meio ambiente, da geografia e da sociedade sobre o ser humano, assim como na análise das diferenças mentais, físicas e culturais dos diferentes grupos étnicos recém contatados pelos europeus. Não havia uma separação entre o estudo dos aspectos físicos e dos culturais, já que os dois eram compreendidos como interdependentes e pertencentes à mesma realidade (BLANCKAERT, 1995, p. 45).

No país, sociedades científicas que se focavam na observação das diferentes culturas e aspectos físicos da humanidade existiam desde 1799, a exemplo da Société des

observateurs de l’homme (Sociedade dos observadores do Homem), mas esse campo de estudos

somente ganhou especificidade e autonomia no país a partir de 1832, quando o fisiologista Jean Pierre Flourens (1794-1867) reorientou o programa de estudos da “Cadeira de Anatomia do Homem”, pertencente ao Muséum National d’Histoire Naturelle de Paris, renomeando-a para “Cadeira de Anatomia e História Natural do Homem” e conferindo-lhe uma estrutura institucional e um projeto de pesquisa contínuo. Poucos anos depois, em 1839, o médico e linguista William Edwards (1777-1842) – um dos principais estudiosos da Antropologia francesa na época – levou ao país a ideia de estabelecer uma ciência que estudaria as diferentes raças humanas e utilizando-se de um termo que já estava em voga na Eslováquia, denominou esse campo de estudos de Etnologia, fundando a Société Ethnologique de Paris (Sociedade Etnológica de Paris). Em 1855, o naturalista Jean Louis Armand de Quatrefages de Bréau (1810-1892) rebatizou a “Cadeira de Anatomia e História Natural do Homem” do Muséum

National d’Histoire Naturelle para “Cadeira de Antropologia”, fazendo a síntese dos aspectos

culturais e biológicos dos seres humanos por acreditar que a anatomia não poderia ser separada dos fenômenos culturais. No mesmo contexto, o médico Paul Broca (1824-1880), célebre pioneiro da craniometria, criou em 1859 a Société d’Anthropologie de Paris (Sociedade de Antropologia de Paris), com o objetivo semelhante de Edwards de estudar cientificamente a diversidade das raças humanas. Segundo o historiador e filósofo Claude Blanckaert (1994), essas instituições foram consideradas por antropólogos do mundo inteiro modelos de organização exemplares e copiadas por eles, de modo que a institucionalização da Antropologia possuiria grande parte de suas bases em Paris.

No entanto, apesar das figuras pioneiras, da proliferação de instituições, de publicações e associações científicas que concentravam seus trabalhos em estudos antropológicos, a Antropologia, como disciplina específica, passou a ser oferecida nas universidades francesas somente a partir do século XX. Tal demora é justificada por alguns estudiosos devido a uma combinação de fatores, dentre os quais estariam a descontinuidade dos principais projetos de pesquisa com a morte de grandes nomes como o de William Edwards e Paul Broca; a falta de uma estrutura profissional que permitisse aos intelectuais uma dedicação exclusiva à pesquisa antropológica e as fortes divergências sobre como definir e organizar os vários campos de estudo que surgiam a partir de uma ciência do ser humano na época de Charles Darwin (BLANCKAERT, 1995; CONKLIN, 2013). Esses debates de cunho teórico sobre os diferentes ramos da ciência eram permeados pelo grande interesse dos estudiosos franceses na Antropologia Física, o que levou a uma imensa valorização das análises craniométricas e comparativas, ao mesmo tempo em que produziu uma lacuna relacionada aos estudos das línguas, costumes e crenças das outras culturas. Nesse sentido, a França do século XIX ficou caracterizada pelo desenvolvimento de uma Antropologia de cunho fundamentalmente biológico e dividida em dois ramos de atuação: o inventário, catalogação e seriação dos diferentes grupos humanos e o estudo das relações existentes entre crânio, cérebro e inteligência (BLANCKAERT, 1995, p. 47).

O grande representante dessa Antropologia francesa é sem dúvida Paul Broca. Ao fundar a Société d’Anthropologie suas ideias iam de encontro às de Edward Willians, criador da Société Ethnologique, pois ambas associações defendiam o estudo dos seres humanos por meio da observação das diversas facetas de sua existência, como a biológica, Linguística ou histórica (SOCIÉTÉ ETHNOLOGIQUE DE PARIS, 1841; WARTELLE, 2004). Nesse sentido, os objetivos específicos da segunda instituição se concentravam na análise desses

aspectos, e a leitura das primeiras frases de seu estatuto nos permite perceber como a Etnologia era então compreendida nos principais centros de estudo franceses:

“Os principais elementos que servem para distinguir as raças humanas são: a organização física, o caráter intelectual e moral, as línguas e as tradições históricas; esses diversos elementos ainda não foram estudados de maneira a constituir sobre suas verdadeiras bases a ciência da Etnologia” (Société Ethnologique de Paris, 1841:3)19.

Por meio da leitura desse trecho podemos perceber que os elementos distintivos entre as diversas raças humanas foram compreendidos como a base dos estudos etnológicos, e que o objetivo desses era encontrar traços que permitissem delimitar uma clara diferença entre elas. Além disso, também é possível visualizar que havia uma crença na ligação dos caracteres físicos e morais de um grupo, dando a entender que o intelecto dos indivíduos estava profundamente ligado a seu grupo racial. Sendo assim, as ideias da existência de diferentes raças humanas e da continuidade entre os aspectos intelectuais e físicos dos indivíduos foram fundamentais na constituição das bases da Etnologia e Antropologia francesas. Tais ideias estariam de certo modo presentes nos discursos expográficos articulados posteriormente pelo

Musée de l’Homme e na produção de um conceito sobre humanismo.

Apesar de partir da mesma concepção de Antropologia que sustentava o estudo dos grupos humanos por meio de seus múltiplos aspectos biológicos e culturais, Paul Broca voltou seus trabalhos quase que exclusivamente para as análises biológicas e para a crença de que os aspectos culturais dos diferentes grupos humanos poderiam ser explicados unicamente por suas características físicas, já que, inserido na crença de uma história natural do gênero humano, acreditava que os comportamentos deste eram instintivos. Assim, a Société d’Anthropologie, fundada por ele, possuía uma inclinação medical. Em cinquenta anos de trabalho, mais de cinquenta por cento de seus membros titulares – divididos nos diversos laboratórios e institutos – eram médicos (WARTELLE, 2004, p. 134), de modo que outros profissionais, como linguistas ou sociólogos, não encontraram muito espaço na instituição, fazendo com que a Antropologia francesa se desenvolve-se com um forte caráter biológico que reprimia os estudos culturais.

Os trabalhos antropológicos levados a cabo por Broca e pela sociedade criada por ele são característicos dessa ciência na França do século XIX. Com a voga do positivismo e a

19 Traduzido do original: “Les principaux éléments qui servent à distinguer les races humaines sont : l’organisation

physique, le caractère intellectuel et moral, les langues et les traditions historiques ; ces éléments divers n’ont pas

fascinação pelos números – que levou os antropólogos a realizar uma infinidade de medições rigorosas com o objetivo de fornecer o que consideravam provas irrefutáveis para consolidar a Antropologia como ciência e afastá-la da especulação – a craniometria e outros métodos quantitativos foram valorizados em detrimento do estudo da língua, das manifestações e modos de pensar dos povos considerados “primitivos”. A formulação do conhecimento sobre estes acabou ficando concentrada nas mãos de viajantes, missionários e agentes coloniais, que possuíam mais oportunidades de entrar em contato com esses povos, recolher os objetos produzidos por eles e levá-los às metrópoles, onde o estudo desses grupos por meio de sua cultura material ficou conhecido como Etnografia.

Sendo assim, os primeiros artefatos utilizados para estudar os costumes e culturas dos povos distantes eram, em sua maioria, objetos que haviam despertado a curiosidade dos viajantes, fosse por sua singularidade, suas características estéticas ou pelos materiais utilizados em sua fabricação, como metais preciosos. No entanto, como a coleta dos objetos era feita sem qualquer metodologia, o critério para essa ficava a cargo dos interesses e curiosidades dos coletores, de modo que as coleções formadas por estes muitas vezes não permitiam o desenvolvimento de estudos consistentes a respeito dos costumes e modos de vida das sociedades produtoras. É apenas em 1931, com a realização da missão etnológica Dakar- Djibouti, que as primeiras instruções para a coleta de objetos etnográficos são publicadas pelo pessoal do Musée d’Ethnographie du Trocadéro, o qual foi reformulado seis anos depois para dar origem ao Musée de l’Homme.

Nesse sentido, a maior parte do acervo do MH, na época de sua inauguração (1938), era formado por coleções etnográficas reunidas de modo amador, ou seja, por objetos que haviam sido selecionados por sua beleza e exotismo. Desse modo, ao apresentar a cultura de diferentes grupos humanos por meio da exibição majoritária de objetos considerados exóticos, produziu-se uma forma fantasiosa de percepcionar muitos desses grupos, cuja cultura foi entendida como maravilhosa, mas inferior. Tal noção era construída por meio da subjetivação do conceito de civilização, no qual o exótico era compreendido com contornos de barbárie e irracionalidade, ou seja, algo que necessitava ser civilizado (SAID, 1990).

Ao produzir um discurso expográfico sobre diversas sociedades não-europeias baseando-o majoritariamente em objetos recolhidos por suas características exóticas e não por seu valor cultural, o museu reproduzia a ideia de que essas eram incivilizadas e, por contraposição, de que aqueles que possuíam uma cultura que se afastasse desses objetos maravilhosos, mas irracionalmente produzidos, eram civilizados. Desse modo, o discurso sobre humanidade produzido pelas primeiras exposições permanentes do MH hierarquizava os seres

humanos, pois colocava os europeus como superiores e civilizadores ao produzir, por contraposição, um discurso a respeito da racionalidade de seus costumes e modos de vida.

Objetos pertencentes a outras sociedades que atraíam os europeus devido a sua estética ou singularidade chegaram em grande número à Europa a partir do período das Grandes Navegações. No entanto, com os processos de neocolonização e o desenvolvimento da Antropologia e Etnologia, grandes levas de objetos etnográficos de outras regiões passaram a ser transportados para esse continente, e, inclusive, sua coleta e estudo foram o objetivo principal de diversas expedições naturalistas à América, Ásia, Oceania e África20. Para grande

parte desses naturalistas e outros estudiosos, a importância em estudar esses objetos e posteriormente expô-los ao conhecimento público se sobrepunha a qualquer outra relevância cultural, de modo que não foram raros os casos de saque, violência e violação de túmulos advindos dos processos de coleta de artefatos e esqueletos. O próprio criador e primeiro diretor do Musée de l’Homme, o médico e etnólogo Paul Rivet, descreveu no artigo Le Huicho des

Indiens Colorados (1904a), escrito trinta anos antes da inauguração do museu, como escavou

o túmulo de uma família de índios Colorados em 1903 com o objetivo de recolher seus crânios. Em sua grande maioria, esses artefatos eram direcionados às associações científicas e museológicas, as quais desempenharam um papel essencial na construção e caracterização da Antropologia, ao lado de associações e publicações, auxiliando na formação de um corpo científico e na organização de um campo de debates sólido (BLANCKAERT, 1995). Os museus, sobretudo, funcionaram como meio de afirmação da Antropologia francesa frente ao grande público. Compreendidos no século XIX como os grandes templos do saber e os principais instrumentos de instrução popular, eles recebiam uma grande quantidade de artefatos e esqueletos, os quais eram estudados em seus laboratórios e, posteriormente, articulados nas salas de exposição às concepções evolucionistas de modo a fornecer o que seriam as provas de uma suposta linha de evolução cultural de toda a humanidade.

As ideias que estavam por trás da concepção dessas exposições resultaram numa verdadeira inovação do campo museológico no mundo ocidental. Já que a relevância do objeto etnográfico estava relacionada à sua possível comparação e disposição com os outros objetos – o que permitiria comparar e hierarquizar os diferentes grupos humanos a que pertenciam esses artefatos –, este perdeu sua importância individual, rompendo com as antigas tradições dos

20 Como exemplo podem-se citar as diversas expedições organizadas por ingleses, alemães, franceses, italianos e russos, entre outros, às florestas amazônicas, e que possivelmente impulsionaram a criação do Museu Paraense Emílio Goeldi. Informações retiradas do site da instituição, disponível em: http://www.museu- goeldi.br/portal/historia. Acesso em 13 out. 2015.

gabinetes de curiosidades e das galerias de arte, onde era organizado de acordo com critérios de beleza e singularidade próprios. As novas concepções antropológicas demandaram outro sistema de organização, inovando a museologia etnográfica ao adotar um sistema de classificação baseado na utilização dos objetos, e não mais em sua raridade (DIAS, 1988) .

Esse sistema baseou-se na metodologia naturalista e na divisão dos seres vivos estabelecida por essa, a saber, em classes, ordens e espécies. Seguindo esse modelo, as necessidades humanas foram compreendidas como gradativas, e os objetos etnográficos dispostos na ordem em que essas supostamente se desenvolveriam. Desse modo, os objetos que representavam a necessidade de alimentação vinham primeiro, seguidos por aqueles correspondentes às vestimentas, ao alojamento e à religião, sem deter-se necessariamente nessa última (BLANCKAERT, 1994, p. 288). Esse tipo de organização privilegiava a função dos artefatos em detrimento de sua localização geográfica ou do material utilizado em sua produção, permitindo que objetos produzidos por grupos humanos distantes fossem colocados lado a lado e utilizados no desenvolvimento de estudos comparativos entre suas culturas.

Esse sistema de classificação foi largamente utilizado por toda a Europa, principalmente nos países germânicos, onde foi popularizado pelo antropólogo alemão Gustav Klemm (1802-1867). Na França, foi adotado pelo médico e antropólogo Ernest-Théodore Hamy (1842-1908), na organização do primeiro museu francês de Etnografia, o Musée

d’Ethnographie du Trocadéro, antecessor do Musée de l’Homme.