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Capítulo 1: Migrações, Diásporas e Diversidade Cultural

1.3. Lugares de Encontro, Identidade e Sentimentos de Pertença

No contexto das migrações internacionais, o país de destino constitui-se como lugar de encontro, por excelência - mas lugares de encontro temporário são, também, os locais de paragem ou descanso quando em trânsito, as etapas do trajecto migratório até alcançar o destino, ou o retorno pontual à origem, entremeado de reencontros. O lugar é um elemento central na definição do princípio de identidade (Augé, 2002) e, o próprio espaço, poderá ser definido como um lugar praticado e transformado pela acção dos sujeitos (De Certeau, 1999). A fulcral conexão entre contexto e formação de identidade depende dos valores culturais em diversos domínios (exº: no tipo de relação estabelecida com outras pessoas e grupos, no país de acolhimento). As relações sociais entre pessoas moldam a construção identitária, e a identidade colectiva desempenha um papel relevante, quando se trata de responder à questão: "Onde é que eu pertenço?" (Eder, 2009). A interacção "pessoa-contexto" determina, então, o papel essencial da cultura, incluindo a cultura associada ao grupo étnico, no desenvolvimento identitário (Ferrer-Werder et al., 2012: 64). Phinney e Baldelomar (2011) declaravam que "nenhuma identidade é livre de cultura": uma vez que a identidade pessoal, ou social, é preenchida pelo contexto cultural, a forma como essa identidade é construída e segmentada torna-se importante, para entender diversos aspectos do constructo (Phinney e Baldelomar, 2011: 163, cit. por Sulyman, 2014). Sabemos que todo o processo migratório é uma oportunidade de criação, reformulação, sustentação, mudança, transgressão ou (re)construção identitária. Os migrantes constroem as suas próprias identidades em relação a lugares, contextos, ambientes, grupos e países diferentes (Christiansen & Hedetoft, 2004; Sicakkan & Lithman, 2005). Sabemos, adicionalmente, pelo estudo dos diferenciais migratórios, que a migração está altamente relacionada com o estádio do ciclo de vida: adolescentes e jovens adultos são mais móveis do que outros grupos (Jansen, 1969). Contextos e discursos articulam-se de modos complexos e mutáveis com as dimensões formais, participatórias e identitárias da cidadania

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(Colombo, Domaneschi e Marchetti, 2011). Na sequência de processos migratórios, estão em jogo tanto as transformações da pertença, como aspectos relativos à pertença múltipla. Sendo que a pertença surge formada por diferentes camadas, sublinhando aspectos distintos: a recepção e aceitação, a identificação e o envolvimento24. Paralelamente à conjugação, e alterações, da pertença e da pertença múltipla, as migrações internacionais transportam riscos, desafios e conflitos, ligados a processos de segregação, discriminação ou exclusão25. Os migrantes aparecem, frequentemente, descritos como "fora do lugar" num novo ambiente, ou, como descreveu Simmel (1908), referindo-se ao "estrangeiro":

«Não se usa, destarte, a noção de estrangeiro no sentido habitual, em relação àquele que vem hoje e amanhã se vai, mas como aquele que vem hoje e amanhã pode permanecer - porque era possível mover-se e, embora não siga adiante, ainda não superou completamente o movimento do ir e do vir. Fixo dentro de um determinado raio espacial, onde a sua firmeza transfronteiriça poderia ser considerada análoga ao espaço, a sua posição neste [espaço] é determinada largamente pelo facto de não pertencer imediatamente a ele, e as suas qualidades não podem originar-se e vir dele, nem nele adentrar-se (...) o ser estrangeiro, ou o estranho, seria aquele que se encontra mais perto do [que é] distante.» (Simmel, 1908, trad. por Mauro P. Koury, 2005)

O estrangeiro é reconhecido, neste sentido, como uma parte integrante do tecido social - mas exterior a ele e, até certo ponto, contrária o suficiente, para nunca ser considerada como um "inimigo interno"26. Um processo que sintetiza proximidade e distância constitui, e estabelece, a posição formal do estrangeiro no grupo socialmente circunscrito. Continua o autor (Simmel, 1908):

«O estrangeiro é visto e sentido, de um lado, como alguém absolutamente móvel. (…) De outro lado, a expressão para esta constelação de significados encontra-se na objectividade do estrangeiro. Porque este não é determinado a partir de uma origem específica para os componentes singulares de um social, ou para as tendências unilaterais de um grupo. Vai além, faz frente a estes com uma atitude particular

24 A recepção e aceitação salientam o desejo universal de ser tomado como igual e não excluído, com

base em discriminação ou preconceito. A identificação conserva uma natureza essencialista, sublinhando a importância da "inevitabilidade" da diferença. E o envolvimento diz respeito aos estilos de vida e relações quotidianos, conferindo importância à possibilidade de participar em nome dum interesse específico, contribuindo para a vida e o futuro da comunidade (Marchetti et al., 2011).

25 As cidades de destino são lugares privilegiados para o teste de identidades, para a negociação da

pertença e para a reivindicação de direitos - mas elas "são igualmente marcadas por processos de segregação, exclusão e repressão" (Mitchell, 1995; Ruddick, 1996; Smith, 1997).

26 O estrangeiro surge descrito como um estranho, isto é, enquanto "um outro não-proprietário do solo":

nem do solo no sentido físico do termo, nem do solo como "substância da vida", que não se fixa num espaço determinado do perímetro social. Simmel nota como, ao longo da história da economia, aparecem os estrangeiros identificados como comerciantes, e os comerciantes como estrangeiros, sobejas vezes (com a actividade a fixar-se no estranho), por ser esse um sector indicado a "acolher sempre mais um homem do que a produção primária". E pelo facto de a intermediação dar o carácter simbólico da mobilidade do estrangeiro, encapsulando-o, frequentemente, numa espécie de sublimação que é "a pura arte da transacção monetária" - fornece, então, como exemplo, a história dos judeus europeus.

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"objectiva", que significa, não uma simples distância e indiferença, mas um facto especial da distância e da proximidade. Facto especial dado pela relação ambígua entre insensibilidade e envolvimento.» (Simmel, 1908, trad. por Mauro P. Koury, 2005)

Esta descrição do estrangeiro como "absolutamente móvel e objectivamente desafiante" sintetiza dois aspectos cruciais, que denotam bem a complexidade da posição do estrangeiro, aos olhos de Simmel: o carácter "móvel absoluto" do estrangeiro, desvinculado de pessoas e normas locais, mas também a "objectividade" da sua atitude, descrita como "permanentemente ambígua" (entre a distância insensível e o envolvimento próximo). Ressalta destas constatações, numa primeira instância, a instabilidade identitária e a volubilidade dos sentimentos de pertença do estrangeiro. Não obstante e curiosamente, Simmel deduz delas, de forma mais optimista, aquela característica que designa por "liberdade do estrangeiro":

«Esta liberdade dá ao estrangeiro uma relação próxima da perspectiva da experiência e do deleite do pássaro para com as folhas, e contém certamente uma espécie de potencialidade perigosa. Indica-se sempre, por exemplo, por meio de rebeliões de todos os tipos, que a facção atacada teria começado uma agitação a partir do exterior, por mobilização de estrangeiros. Do mesmo modo que isso pode verificar-se, não deixa também de ser um exagero referente ao papel específico do estrangeiro.» (Simmel, 1908, trad. por Mauro P. Koury, 2005)

O estrangeiro aparece descrito como "mais livre" do que os nativos, inclusive para "medir os ideais" de forma mais desapaixonada, não estando a sua acção condicionada por "costumes, piedade ou dependência" (Simmel, 1908). Pela cidadania, ou até pela profissão, o estrangeiro parece próximo, porque cria laços a outro; na medida em que não há, porém, laços de pertença mais profunda, mas somente uma relação de igualdade abstracta e geral com um outro, o estrangeiro aparenta encontrar-se mais distante. As proporções de distância e de proximidade são específicas a cada relação com esse ser "não-pertencente", embora sujeito aos mesmos condicionamentos sociais que os restantes indivíduos, e a tensão daí resultante solidificaria as relações formais com o estrangeiro. Os contactos com o estrangeiro são tidos por estreitos e remotos (descritos como "um não-relacionamento positivo"), baseados numa igualdade humana abstracta, que não o identifica como parte do grupo; sabendo-o, contudo, parte de outro grupo determinado.

Resumidamente, analisámos os modos de pertença - com transformações da pertença e pertença múltipla em jogo nos processos migratórios. Na senda de Marchetti et al. (2011), reconhecemos diferentes camadas na pertença: recepção, aceitação, identificação, envolvimento. No âmbito desta pesquisa e a propósito das idiossincrasias

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da pertença migrante, recordámos as enriquecedoras notas de Simmel (1908), a propósito das características identitárias do "estrangeiro".

1.3.2 Lugares de (Des)Encontro, Linguagem e Identidade Cultural

Os migrantes são frequentemente descritos como "fora do lugar", em parte devido às suas competências linguísticas particulares, as quais nem sempre encaixam nas normas ou expectativas dos espaços que esses migrantes vêm a habitar, mesmo que eles se aventurem na língua local (Cresswell, 1996). As suas identidades são, então, prescritas e (re)formuladas por outros, como as de alguém que "não pertence" ao lugar. Mas a escola ou o lar representam "lugares de encontro": a primeira é um espaço produzido através da língua, o segundo é um lugar estabelecido por meio das normas e regras linguísticas dos pais, amigos ou familiares (vindos de determinado país ou região, pertencentes a dado grupo étnico, classe social, religião, subcasta27 ou partido político). A linguagem, o espaço e as identidades constituem-se mutuamente e constantemente - a linguagem produz diferentes ordenações do espaço (Valentine, Sporton e Nielsen, 2008). A escolha linguística e o uso lúdico da linguagem desempenham um papel importante, no modo como os migrantes atribuem sentido à sua identidade e afiliações, no contexto situado dos encontros quotidianos em casa, na escola ou no trabalho (Valentine, Sporton e Nielsen, 2008). A língua surge como marcador de identidade; a linguagem e a fala são elementos de representação (Cameron, 1998; Delph-Janiurek, 1999). A linguagem é uma norma que estrutura os espaços quotidianos - os quais têm regras de comportamento comunicativo que afectam o que pode, ou não, dizer-se e legitimam formas determinadas de comportamento e identidades, todavia constrangendo outras formas (Valentine e Skelton, 2007). Ao chamar a atenção para a troca de códigos linguísticos entre bangladeshianos (exº: do Bengali para o Inglês), Wilce (2000) notou que essa troca surgia mais associada à negociação de identidades, do que ao atravessamento de fronteiras: constituía uma escolha mais ou menos neutra, perante a necessidade de articular múltiplas relações, e aquilo que o autor designou por "identidades laminadas". Stuart Hall (2003), ligando enunciação e modo de representação da identidade, disse-nos que não deveríamos pensar a identidade como um fenómeno realizado, mas sim como uma produção sempre inacabada: dentro da representação, não fora dela (Hall, 2003). A identidade aparecia, portanto, como construção social dinâmica, moderada pelo acto de enunciação, e marcada pela relação sujeito-espaço-tempo. Nos grupos imigrantes, tanto as relações subjectivas

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estabelecidas, como as condições materiais do espaço, definem um novo território. Aqui, a diferença pode ser pensada como experiência, relação social, subjectividade ou identidade. No entender de Brah (1996):

«As identidades colectivas são irredutíveis à soma de experiências dos indivíduos. A identidade colectiva é o processo de significação, através do qual comunalidades de experiência, em torno de um eixo específico de diferenciação, como a classe, casta ou religião, são investidas de significados particulares. Neste sentido, uma determinada identidade colectiva apaga parcialmente, mas também carrega, traços de outras identidades.» (Brah, 1996: 124)

A partir de um exercício de significação da experiência comum e do espaço-tempo, o grupo constrói identidade28. Hall (2003) distinguiu duas formas de encarar a identidade cultural: em termos de unidade de uma cultura subjacente, verdadeira e colectiva, experiência histórica comum e códigos compartilhados; ou a identidade cultural como "aquilo em que o sujeito se torna ou vem a ser", considerando rupturas e experiências diferentes, "posição" dinâmica permanente, nunca estática nem imutável (Hall, 2003). Este autor vê, por inerência, a identidade cultural enquanto relação dialógica, entre um eixo de semelhança (continuidade e ancoragem no passado) e um eixo de diferença (descontinuidades surgidas de processos, tais como a escravidão, a migração ou a colonização). A identidade é, igualmente, articulada pelas representações sociais das minorias imigrantes, em vigor na sociedade de acolhimento, e pelas informações veiculadas através dos mídia étnicos e transnacionais. Quer essas informações sejam referentes ao ambiente de origem, quer se reportem à sociedade de destino, quer sejam respeitantes a outras imigrações que partilhem a mesma herança cultural. Afastando-se de visões estáticas da identidade, Hall (2003) e Gilroy (1993) consideraram a produção e reprodução constantes, por via da transformação e diferença, como características fundamentais da hibridização e das chamadas identidades diaspóricas (assumindo, de acordo com os seus críticos, o termo diáspora quase como metáfora para identidade híbrida). A confrontação de dois tempos e dois lugares, a tensão entre estabelecimento e deslocalização (mais num sentido relacional do que transformativo), assumem particular importância no âmbito dos debates sobre identidades diaspóricas. Visando um aprofundamento deste tema e uma clarificação de teorizações, consideramos necessário e

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E se, durante a modernidade, dominou uma concepção do espaço como elemento fixo e estável face ao tempo, teorizações recentes consideram o espaço como criado pelo ser humano, e como uma realidade configurada pelo cultural (Férnandez, 2008). No contexto de um processo de globalização que comporta dimensões culturais e identitárias, a produção cultural afigura-se como fundamento de identidade: a identidade grupal nasce da relação entre a cultura passada e a cultura presente (Isaac, 1989).

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relevante detalhar, de seguida, as discussões relativas ao uso e características do conceito de diáspora.

1.4 Discussões Relativas ao Uso do Conceito de Diáspora