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Capítulo 1: Migrações, Diásporas e Diversidade Cultural

1.1 Migração, Fronteira, Casa, Territorialidade e Localidade

1.1.2 Fronteira, Casa, Territorialidade e Localidade

1.1.2.1 Quebra de Localidade e Desespacialização

Aprofundaremos, em seguida, a análise das relações entre a noção de fronteira e os conceitos de casa, ou localidade. Pode não ser fácil a invenção de formas alternativas, deslocalizadas e desterritorializadas de comunidade, num mundo contemporâneo que assiste a uma acelerada circulação de pessoas, objectos e signos, entre pontos cada vez mais distantes (Lash e Urry, 1994). Para muitos trabalhadores migrantes, o lugar de origem, os papéis no trabalho, ou as relações ocupacionais, fornecem bases bastante

12 Este autor argumentava que as fronteiras sociais se tornavam, frequentemente, salientes em torno de

linhas, como as que são delineadas pelo género, classe, raça, grupo étnico, nacionalidade, preferência política, gosto, idade, comida ou orientação sexual.

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limitadas, e não necessariamente portáteis, de identificação pessoal e cultural. A noção de casa (ou de não a ter) está conectada a variações identitárias; sendo que, estas, não flutuam livremente: são delimitadas por fronteiras e limites (além de haver limites, é claro, ao imaginário social). Essas fronteiras não estão necessariamente ligadas a lugares específicos, nacionalidades ou grupo étnicos: também podem demarcar campos de troca, movimento e interacção, transnacionais e multiétnicos (Sarup, 1994; Amit- Talai, 1998). As velhas formas de pertença mostram-se, hoje, cada vez mais irrealistas e ineficazes, o que pode conduzir a uma busca de bases alternativas de identificação colectiva. Mas tal facto não significa que a homelessness seja uma condição suficiente, tão-pouco automática, gerando novas formas de afiliação (Amit-Talai, 1998)13.

Descreveu o clássico Simmel (1889):

«A partir de indivíduos vivendo lado a lado, isto é, separados uns dos outros, forma-se uma unidade social. (…) No caso de pessoas separadas espacialmente, esta unidade é efectivada pela reciprocidade mantida entre elas, através da distância que as divide. (…) No caso de pessoas separadas temporalmente, contudo, a unidade não pode ser efectivada desta maneira, porque há ausência de reciprocidade (a primeira pode influenciar a segunda, mas a segunda não pode influenciar a primeira). Assim, a persistência de unidade social, apesar de uma pertença que muda, representa um problema peculiar, não resolvido ao explicarmos como o grupo surgiu, num dado momento. O primeiro e mais óbvio elemento de continuidade da unidade de grupo é a continuidade de localidade, lugar, sítio, ou solo, no qual o grupo vive. O Estado, e ainda mais a cidade, e inúmeras outras formas de associação, devem a sua unidade, antes de mais, ao território.» (Simmel, 1889: 667, cit. por K. Wolff, 1950, 1964).

Poderemos, a partir desta análise com mais de um século, deduzir aquilo que se torna óbvio, ou está implícito, em todos os movimentos migratórios, sobretudo nos internacionais: há quebra da continuidade de localidade, com consequências ao nível da continuidade da unidade de grupos na origem. Por outro lado, cidades de destino e formas de associação das comunidades na diáspora devem a sua unidade, antes de mais, ao território. Quando falamos de território, deveremos ter em consideração não apenas questões fixas de concentração ou dispersão espacial, conceitos relativamente estáveis de unidade e interconexão (de curta ou longa distância) ou, mais problematicamente, guetização e exclusão no ambiente de chegada; mas, igualmente, a noção mais complexa, maleável e matizada de "ambiente, ou paisagem étnico-cultural". Esta noção

13 De facto, há também um contexto coercivo no qual se constrói uma casa (não restringido àqueles

contextos que são fornecidos pelo Estado), decorrente da materialização de certos recursos sociais disponíveis e da construção de uma identidade de "casa", enquanto pilar para a formação de redes de vizinhos alargadas, que funcionam como uma espécie de super-ego colectivo (Bourdieu, 1994; Miller, 1998). Sob este ponto de vista, quaisquer diferenças reais entre as pessoas aparecem como, nada mais, do que marcadores de identidade potenciais, que serão unicamente mobilizados onde e quando essa diferença particular sirva o objectivo, e encaixe no contexto, da ocasião (Wallman, 1998).

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implica distorções na estabilidade das ligações, das comunidades e das redes sociais, familiares ou de negócio (trata-se de uma "paisagem mutável"), que decorrem em função de processos de mobilidade humana ou, mesmo, somente em função da "fantasia/desejo" de querer mover-se. O novo mundo globalizado foi, aptamente, descrito por Appadurai (1990) através da sua noção de scapes14:

«Por ethnoscape, eu entendo a paisagem de pessoas que constituem o mundo mutável em que vivemos: turistas, imigrantes, refugiados, exilados, trabalhadores convidados, e outros grupos e pessoas em movimento, constituem a característica essencial do nosso mundo, e parecem afectar as políticas de, ou entre, nações a um nível sem precedentes. Não quero afirmar que não existem, em nenhuma parte, redes e comunidades relativamente estáveis, de afinidade, amizade, trabalho e lazer, assim como de nascimento, residência, e outras formas de afiliação. Mas pretendo dizer que a distorção dessas estabilidades está por toda a parte, em decorrência do movimento humano, à medida que mais pessoas e grupos lidam com a sua realidade, ou com fantasias de quererem mover-se. Tanto as realidades como as fantasias funcionam em escala alargada (...), e à medida que o capital internacional muda as suas necessidades, à medida que a produção e a tecnologia geram necessidades novas, à medida que os Estados-Nação modificam as suas políticas de refugiados, estes grupos em movimento nunca podem dar- se ao luxo de deixar a sua imaginação descansar por demasiado tempo, mesmo que assim o desejassem.» (Appadurai, 1990: 297)

Sob condições globalizadas, a localidade já não se encontra necessariamente ancorada a lugares específicos, e tornou-se problemática. Noutro sentido, o Estado- Nação encontra-se sob cerco: por um lado, pela desespacialização das relações sociais (ou melhor: subjectividade, relações sociais e território já não necessitam de coincidir de forma directa) e, por outro, pela separação dos chamados "bairros espaciais e visuais" (Appadurai, 1995; Kennedy e Roudometof, 2006). Reflectindo sobre territorialidade e localidade com um enfoque contemporâneo, não poderemos, assim, deixar de verificar senão que a desespacialização15 emerge como consequência inevitável de uma mobilidade global aumentada, e de numerosas migrações. Migrações essas que dispersaram, deslocaram, misturaram e colocaram em contacto culturas e povos muito distintos, através das fronteiras de cidades, regiões, países e continentes (Bauman, 1998).

Em síntese, a rigidez, permeabilidade e delineamento de fronteiras são questões centrais nos estudos das migrações. Se os antropólogos privilegiaram tendencialmente as fronteiras simbólicas, outros autores centraram-se nas fronteiras económicas, políticas ou culturais-identitárias, bem como na maior ou menor permeabilidade das

14 Appadurai, 1990; cit. por Castles e Davidson, 2000: 145. 15

Deveremos igualmente ponderar, juntamente com aspectos concernentes ao espaço, aqueles relacionados com o tempo e a questão da temporalidade nas migrações.

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fronteiras, e nas formas como os Estados definem e mantêm essas fronteiras. Sob uma perspectiva geopolítica, vimos que diferenças na disponibilização de condições universalmente desejadas pelos sujeitos migrantes (económicas e não-económicas: políticas, sociais, de saúde, educacionais e culturais) levariam à transferência de populações, com determinadas aspirações, de uns países para outros. A médio prazo, os países do núcleo do sistema mundial moderno procuram preservar os seus privilégios e restringir entradas, com algumas excepções feitas à entrada de mão-de-obra barata; por vezes, funcionando sob sistemas internacionais de exploração laboral (trabalhadores migrantes vindos de países periféricos e semi-periféricos). No contexto desta tese, seguimos de perto as considerações clássicas de Zolberg a respeito da importância dos aspectos políticos (além de económicos) no equilíbrio do sistema internacional, bem como na predição dos fluxos migratórios. Isto torna-se, para nós, tanto mais importante, quanto teremos como objecto de análise uma imigração resultante de um fluxo crescente de indivíduos sul-asiáticos, com destino a um país que esteve, até recentemente, em crise económica, no quadro do sistema capitalista europeu e mundial. O que apela, à partida, à consideração de variáveis outras, que não as meramente económicas, na base das motivações desses migrantes. Nos movimentos migratórios internacionais existe uma desespacialização patente: há quebra na continuidade da localidade e dos grupos sociais na origem; em contrapartida, o território e a "paisagem étnico-cultural" mutável engendram grupos e associações, no ambiente de chegada. Mas as relações sociais e o território não necessitam de coincidir: essa desespacialização ocasiona contactos e movimentos migratórios inéditos na história, como é o caso do movimento de sul- asiáticos com destino à Europa mediterrânica.

1.2. Raça, Etnicidade e Construção da Identidade Imigrante