• Nenhum resultado encontrado

Lukasz Kaczmarek (2010): Modelo de Competência do Intérprete Comunitário

3 COMPETÊNCIA EM TRADUÇÃO E EM INTERPRETAÇÃO: REVISÃO DA

3.2 ABORDAGENS E MODELOS DE COMPETÊNCIA EM INTERPRETAÇÃO

3.2.3 Lukasz Kaczmarek (2010): Modelo de Competência do Intérprete Comunitário

A Tese de Doutorado intitulada “Modelling Competence in Community Interpreting: Expectancies, Impressions and Implications for Accreditation” [Modelando a Competência em Interpretação Comunitária: Expectativas, Impressões e Implicações para o Credenciamento], desenvolvida na University of Manchester pelo intérprete e pesquisador polonês radicado no Reino Unido, Lukasz Kaczmarek, é um estudo muito interessante e com um embasamento teórico bem definido e aprofundado. A Tese em si visa a apresentar um modelo de competência para o interprete comunitário e, conforme o título sugere, foca nas “expectativas, impressões e implicações” para o credenciamento de intérpretes comunitários no Reino Unido. O pesquisador aponta as lacunas nos Estudos da Interpretação no que diz respeito às pesquisas em interpretação comunitária, baseando o seu modelo tanto na literatura sobre competência em tradução/interpretação quanto nos estudos interculturais e na análise de nove entrevistas feitas com cada participante após três encontros mediados por intérpretes comunitários (IC), complementando esse corpus com a análise de trechos selecionados das entrevistas conduzidas após outros dois encontros mediados por um IC.

O primeiro capítulo inclui uma revisão de literatura acerca da competência em tradução/interpretação. Segundo o pesquisador, a maioria das abordagens sobre competência são mais prescritivas do que descritivas, isto é, focam naquilo que um tradutor ou intérprete ideal deveria fazer em uma situação ideal (KACZMAREK, 2010, p. 33). Contudo, ele argumenta que um modelo descritivo e empiricamente testado seria mais útil para enxergar as booth position - team strength, composition - working hours, event duration - language combinations - relay quantity/quality - availability of documents - information on proceedings. 3. In-process requirements: knowledge and presuppositions - conditions of ST presentation - target language requirements - interactional competence. 4. Post-process efforts: terminological follow-up – documentation - quality control - further training – specialization - adaptation to technical progress”.

relações entre todos os elementos do modelo (técnicas, estratégias, habilidades, qualidades pessoais etc.), considerando temerário apresentar um modelo de competência como uma mera lista de habilidades, uma vez que as expectativas dos clientes/usuários mudam continuamente e que tais habilidades dependem muito da perspectiva na qual um modelo se baseia (seria muito diferente se, por exemplo, o embasamento teórico viesse da Linguística de Texto ou das Ciências Cognitivas). No seu entendimento, outra possível “falha” de algumas abordagens sobre competência em tradução/interpretação seria acreditar que tais habilidades possam ser julgadas de forma objetiva e binária (possuí-las ou não). Concordamos com Kaczmarek (2010, p. 34) quando afirma que pensar na competência a partir da sua realização concreta pode fornecer dados empíricos sólidos, além de aumentar a validade e a credibilidade dos resultados.

Outro ponto importante da reflexão de Kaczmarek é levantar um debate que tem sido, às vezes, negligenciado em estudos anteriores sobre competência: a questão do desempenho (performance). De acordo com o autor, no passado, competência e desempenho foram considerados como sinônimos ou como noções completamente autônomas. O pesquisador afirma que as primeiras reflexões a propósito da relação entre os dois conceitos foram realizadas no âmbito dos estudos sobre compreensão e produção da linguagem, em especial com Chomsky (1965). A visão deste último – um desempenho ruim não corresponderia necessariamente a uma falta de competência – e o fato de que as suas reflexões estivessem limitadas ao âmbito gramatical de uma língua foram criticadas por vários estudiosos, levando Hymes a formular, nos anos 1970, a sua noção de “competência comunicativa”, a qual não apenas envolve o conhecimento de uma língua, mas também a habilidade de usá-la em uma situação social específica (HYMES, 1972 apud KACZMAREK, 2010, p. 51). Não ignorando a existência desse tipo de debate, Kaczmarek afirma que o seu modelo não considera esses conceitos como sendo equivalentes ou autônomos, pois se baseia na noção de competência comunicativa, defendendo que “a competência tende a ser uma questão de julgamento subjetivo desencadeado por uma percepção individual do desempenho ocorrido em uma situação específica” (KACZMAREK, 2010, p. 52, trad. nossa)59.

Além de propor novamente a discussão entre competência e desempenho, Kaczmarek se detém sobre os termos muito discutidos de skills e knowledge, sempre de forma crítica e relacionando-os ao conceito de competência. Ele aponta que alguns pesquisadores (conforme igualmente verificamos no decorrer da revisão apresentada neste capítulo) têm considerado o

59 Do inglês: “[…] competence tends to be a question of subjective judgement triggered by an individual

termo competência como sinônimo de habilidade, ao passo que outros desconsideram as habilidades e entendem a competência apenas em relação aos conhecimentos que alguém deveria possuir. Uma parte dos estudiosos também considera que “habilidade” se refere a um aspecto mais prático da competência (saber como) e os conhecimentos ao aspecto teórico (saber o quê) (KACZMAREK, 2010, p. 52-53). Kaczmarek acredita que a contribuição da Psicologia desempenhou um papel muito importante para o esclarecimento desses conceitos (por exemplo, ao estabelecer a discussão sobre conhecimento procedural e declarativo, ou sobre pensamento analítico e intuitivo, etc.). Afirma que o modelo proposto na sua Tese considera o conhecimento como um elemento ligado ao aspecto da cognição humana passível de ser acessado de forma consciente, enquanto a habilidade é algo que se realiza acessando conhecimento declarativo e que, ao longo do tempo, pode ser procedimentalizado (isto é, a capacidade de realizar uma tarefa sem precisar mais acessar o conhecimento declarativo) (KACZMAREK, 2010, p. 54).

Kaczmarek se detém, ainda, na diferença entre modelos que tratam da competência enquanto dividida em componentes relativos a conhecimentos e/ou habilidades (modelos que ele considera incompletos) e modelos estruturados em dimensões, nos quais conhecimentos e habilidades assumem a forma de construtos (que, ao contrário dos componentes, não são estáticos, mas dinâmicos).

Por essas razões, Kaczmarek propõe (figura 5 abaixo) um modelo de competência que, segundo ele, a) é descritivo (e não prescritivo, pois representa aquilo que um intérprete realmente faz e como ele é percebido pelos participantes), b) é testado empiricamente, c) está baseado no modelo da comunicação intercultural, uma vez que, conforme afirma o autor (2010, p. 35), o modelo dessa área de estudos está bem estabelecido e pesquisado60, assim como a disciplina teria muitas convergências com os Estudos da Interpretação, e d) recusa o objetivismo presente na maioria das abordagens à competência em tradução que listam componentes de forma prescritiva, afirmando que a competência pode ser vista em termos de julgamento subjetivo, representando um continuum e não uma dicotomia entre opostos (p. 55- 56).

60 Trata-se do modelo conhecido em língua portuguesa com a denominação “Competência de Comunicação

Intercultural”, tendo sido proposto por Spitzberg em 1994 (última revisão em 2009). Este modelo é analisado de forma aprofundada por Kaczmarek entre as páginas 65 a 80 da sua Tese. Kaczmarek se refere também aos componentes do modelo relacional elaborado por Spitzberg e Cupach em 1984 na obra Interpersonal

Figura 5 – Modelo de Competência do Intérprete Comunitário de Kaczmarek

Fonte: Kaczmarek, 2010, p. 92.

Legenda da Figura 5:

Service provider [Fornecedor do serviço] Service recipiente [Receptor do serviço] Motivation [Motivação] Skills [Habilidades] Knowledge [Conhecimentos] Episode [Episódio] Expectancies [Expectativas] Outcomes [Resultados] Appropriateness [Adequação] Effectiveness [Eficácia]

Community Interpreter [Intérprete Comunitário] Context [Contexto]

Culture [Cultura] Place [Local] Relation [Relação] Purpose [Objetivo]

Esse modelo, ao considerar a interação mediada por um intérprete como um evento funcional (o autor explica que a comunicação, neste caso, acontece por uma razão, e os participantes pretendem alcançar seus objetivos), adapta – com poucas modificações – o

modelo de Competência de Comunicação Intercultural de Spitzberg e Cupach (1984) e de Spitzberg (2009), apresentando três participantes: o fornecedor, o receptor do serviço e o intérprete comunitário, cada um levando suas habilidades, motivação e conhecimentos para dentro do “episódio”, o qual é um evento mediado pelo intérprete. A interação diádica do modelo de Spitzberg se torna, assim, uma interação triádica, em que cada parte tem expectativas sobre a própria competência e sobre a interação que vai acontecer. Tais expectativas são ditadas tanto pelas habilidades, motivação e conhecimentos de cada um quanto pelo contexto, formado pelos elementos listados na figura, isto é, cultura, local, relação e objetivo. Os resultados da interação, avaliados em termos de adequação e eficácia, passam pelas impressões e expectativas de cada parte, caracterizando-se por um julgamento subjetivo (para tanto, o autor realiza entrevistas com os participantes desses encontros, com o intuito de verificar exatamente as impressões individuais decorrentes dessa interação).

O modelo elaborado por Kaczmarek e a reflexão detalhada que ele realiza no seu doutoramento, aqui apresentados de maneira muito resumida, são coerentes com os pressupostos enunciados desde o início do seu trabalho. Eles preenchem uma grande lacuna na área dos Estudos da Interpretação, tanto em termos do enfoque no trabalho do intérprete comunitário quanto da elaboração de um modelo de competência que possa realmente descrever, mais do que “prescrever”, aquilo que acontece na realidade profissional. O próprio pesquisador admite que o sistema individual do intérprete (habilidades, motivação e conhecimentos) precisaria de maior pesquisa e aprofundamento, pois ele adota os elementos do modelo de competência de comunicação intercultural (elaborado para interações diádicas e monolíngues), adaptando-os para a comunicação mediada pelo intérprete, com o risco de que um falante bilíngue (sem formação e/ou experiência em interpretação) possa ser equiparado a um intérprete profissional. Exceto nessa parte, o modelo possui inúmeros pontos fortes, sobretudo porque, na nossa opinião, leva em consideração as exigências de todas as partes da interação e quebra o paradigma do objetivismo, trazendo para o interior do modelo as impressões subjetivas e o impacto do contexto.

Ao contrário do que será observado com as contribuições de Wladimir Kutz, analisadas a seguir, a formação de intérpretes não está entre os objetivos do modelo elaborado por Kaczmarek, pois almeja a descrição de um evento comunicativo mediado por um intérprete comunitário ao invés da formação desse profissional.