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Sylvia Kalina (2000; 2002): Competências e qualidade em interpretação

3 COMPETÊNCIA EM TRADUÇÃO E EM INTERPRETAÇÃO: REVISÃO DA

3.2 ABORDAGENS E MODELOS DE COMPETÊNCIA EM INTERPRETAÇÃO

3.2.2 Sylvia Kalina (2000; 2002): Competências e qualidade em interpretação

Sylvia Kalina, renomada intérprete e professora aposentada da Universidade de Colônia, na Alemanha, mencionou as competências em interpretação em dois trabalhos muito citados pelos pesquisadores da área dos Estudos da Interpretação: o artigo de 2000, “Interpreting competences as a basis and a goal for teaching”, publicado na revista The Interpreters' Newsletter da universidade italiana de Trieste, e o artigo de 2002, “Quality in interpreting and its prerequisites: A framework for a comprehensive view”, publicado na coletânea Interpreting in the 21st Century organizada por Giuliana Garzone e Maurizio Viezzi após o congresso de Forlì (Universidade de Bolonha) sobre Estudos da Interpretação, ocorrido no ano de 2000.

É interessante observar que o ano de 2000 é o momento da publicação do livro de Pöchhacker comentado anteriormente, no qual o autor apresenta o seu modelo de competência em interpretação. Parece, então, que naquela época, há quase vinte anos, o assunto da competência em interpretação estava entre os focos principais de pesquisa, pelo menos no norte da Europa (também as publicações de Gile sobre esse tema remontam aos anos 1995-

2000). Posteriormente, por volta de 2010, outros estudos voltaram a enfocar o assunto (a dissertação já citada de Kermis é de 2008 e a de Abi Abboud foi apresentada em 2010, assim como a maioria dos trabalhos que comentaremos a seguir). Talvez essa retomada do tema tenha acontecido em virtude de os pesquisadores considerarem que um assunto tão importante precisasse ser aprofundado de forma satisfatória e/ou aplicado na didática da interpretação, ou ainda porque os novos âmbitos da interpretação (comunitária, judicial, etc.) evoluíram tanto no mundo globalizado que a necessidade de um modelo abrangente passou a ser percebida com mais força.

No seu primeiro trabalho de 2000, Sylvia Kalina se pergunta quais seriam as habilidades (ou pré-requisitos) importantes para um intérprete realizar de forma satisfatória o seu trabalho. Além do conhecimento das línguas, seriam fundamentais o conhecimento de mundo e das culturas envolvidas, bem como algumas características de ordem cognitiva, entre as quais a capacidade de memorização e a alta tolerância ao estresse. No entanto, para Kalina, as habilidades e os conhecimentos acima citados, embora necessários, não permitem, por si só, que o intérprete realize o seu trabalho de forma satisfatória. Ao se questionar sobre a existência de uma interpreting competence, a pesquisadora afirma que ela:

[...] se refere à habilidade de realizar tarefas cognitivas de mediação dentro de uma situação de comunicação bi-/multilíngue em um nível extremamente elevado de expectativas e qualidade, muitas vezes em uma equipe de vários intérpretes. Inclui a habilidade de interpretar na modalidade consecutiva e simultânea, bem como em qualquer outra, como a sussurrada ou a dialógica (KALINA, 2000, p. 4, trad. nossa)56.

Kalina acrescenta que os diferentes contextos nos quais o intérprete trabalha requerem um conhecimento específico da cultura, da comunicação e do assunto tratado, bem como a habilidade de aprimorar rapidamente tal conhecimento. Os intérpretes deveriam usar o seu conhecimento procedimental para resolver problemas linguísticos, culturais e situacionais no processo interpretativo, bem como para agir de forma profissional e adequada frente às dificuldades.

Além disso, continua a autora (2000, p. 5), a competência não é apenas necessária durante o processo de interpretação em si, mas envolveria tanto a preparação que antecede a atividade de interpretação quanto a fase sucessiva ao trabalho, incluindo também flexibilidade

56 Do inglês: “it refers to the ability to perform cognitive tasks of mediation within a bi-/multilingual

communication situation at an extremely high level of expectations and quality, often in a team of several interpreters. It includes the ability to interpret in the consecutive as well as simultaneous and any other mode such as whispering or dialogue interpreting.”

e capacidade de adaptação frente aos vários desafios que se apresentam ao intérprete, desde os técnicos até os éticos. Com base nessas considerações, Kalina reformula a definição de competência oferecida no início do artigo:

A competência de um intérprete profissional pode, então, ser definida como a competência de processar textos dentro do escopo de uma situação de comunicação bi- ou multilíngue, visando à mediação interlinguística. É também a capacidade de agir e atuar em uma situação caracterizada por restrições de ordem externa, tais como a pressão do tempo, a falta de autonomia semântica e a potencial interferência entre os processos intimamente conectados de produção e de compreensão (KALINA, 2000, p. 5, trad. nossa)57.

Percebe-se que, da mesma forma que Pöchhacker, também Kalina fala de competence of a professional interpreter [competência do intérprete profissional], embora no início do artigo citado (assim como no título e em outras seções do texto) conste interpreting competence [competência interpretativa ou em/de interpretação]. Um motivo para essa variação poderia ser que, ao chamá-la assim, os autores estariam ressaltando que a competência do intéprete pertence ao intérprete já atuante no mercado profissional, tratando- se de reflexões referentes à interpretação profissional e não ao processo de aquisição de tal competência. Além disso, falar de competência do intérprete (e não de “competência em interpretação”, sendo que, para alguns pesquisadores, essa denominação apontaria o processo de transferência em si) tem a vantagem de referir-se, de forma explícita e abrangente, à competência que o ser humano precisa adquirir.

A definição fornecida por Kalina é muito interessante, pois integra tanto uma competência mais “interna” e relativa ao processo de compreensão e produção de textos orais quanto uma competência que diz respeito à capacidade de lidar com fatores externos, como tempo, falta de autonomia semântica (isto é, não poder decidir aquilo que será dito) e interferência entre os processos de compreensão e produção (por exemplo, a falta de trechos de informação ouvidos por causa de problemas técnicos).

Ainda no estudo publicado em 2000, Kalina aborda a formação de intérpretes e de professores, bem como a falta de uma base comum para estabelecer uma metodologia de ensino com fundamentos científicos, o estado então atual (referente a 2000) da pesquisa em interpretação e a necessidade de identificar as habilidades e sub-habilidades específicas que o intérprete deveria possuir, sempre almejando um método de ensino completamente

57 Do inglês: “The competence of a professional interpreter can thus be defined as the competence to process

texts within the scope of a bi- or multilingual communication situation with the aim of interlingual mediation. It is also the capability of acting and performing in a situation characterised by externally determined constraints, such as the pressure of time, lack of semantic autonomy and the potential interference between closely connected processes of production and comprehension.”

abrangente. A pesquisadora também afirma que as relações entre tradução e interpretação necessitariam de uma investigação mais aprofundada, pois adotar uma “abordagem integrada” – como a que Pöchhacker empregou ao testar a teoria tradutória de Reiss e Vermeer para a interpretação simultânea (KALINA, 2000, p. 17) – seria enriquecedor para a identificação de problemas comuns e a busca de soluções. Kalina parece ter interesse neste tipo de abordagem, sobretudo no que tange ao processamento estratégico de textos e à identificação de habilidades básicas e outras específicas para a tradução e para a interpretação, apontando que uma base comum de formação seria possível.

Por sua vez, no segundo trabalho já citado, o qual foi publicado em 2002, Kalina foca na questão da qualidade em interpretação, mencionando pesquisas realizadas para poder “medir” a qualidade do texto oral produzido pelo intérprete e para avaliar as perspectivas e as expectativas dos usuários. Segundo Kalina (2002, p. 124), inúmeros fatores impactam na qualidade da interpretação e, com o intuito de fornecer um quadro amplo, ela os divide em quatro grupos: pré-requisitos anteriores ao processo, condições envolvendo o processo, requisitos internos ao processo e esforços posteriores ao processo (KALINA, 2002, p. 126):

1. Pré-requisitos anteriores ao processo:

Habilidades e competências Especificações do encargo Definição da tarefa Preparação

2. Condições envolvendo o processo:

Número de participantes Línguas de trabalho Equipamento técnico Posição da cabine Composição da equipe

Horas de trabalho, duração do evento Combinações linguísticas

Quantidade/qualidade do relé Disponibilidade dos documentos Informação sobre procedimentos

3. Requisitos internos ao processo:

Conhecimento e pressuposições

Condições da apresentação do texto de partida Requisitos da língua-alvo

Competência interacional

4. Esforços posteriores ao processo:

Follow-up terminológico

Documentação Controle da qualidade Formação continuada Especialização

Adaptação ao progresso técnico (KALINA, 2002, p. 126, trad. nossa)58.

58 Do inglês: “1. Pre-process prerequisites: skills and competences - contract specifications - task definition –

Embora não se trate de um modelo de competência em interpretação, mas dos fatores que impactam a qualidade da interpretação, o ponto forte da síntese feita por Kalina pode ser resumido em dois aspectos: a) a sua abrangência e a proximidade em relação à realidade profissional e b) a diferenciação entre as quatro etapas do processo de trabalho. Ao mesmo tempo, o artigo também apresenta problemas em dois ângulos: a) não é suficientemente esclarecedor ao distinguir as habilidades das competências e b) não realiza uma diferenciação teórica entre o que seria pré-requisito, condição, requisito e esforço.

3.2.3 Lukasz Kaczmarek (2010): Modelo de Competência do Intérprete Comunitário