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O modelo concentrador de propriedade de terra no Brasil, herança dos tempos coloniais; a repressão à resistência de trabalhadores rurais após o golpe civil-militar de 1964; e os incipientes e falidos programas de colonização e reforma agrária fazem parte do contexto que fez novamente efervescer as mobilizações no campo brasileiro no início da década de 1980 e, posteriormente, a aglutinação dessas ações localizadas em um movimento de massas nacional, com o surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1984.

Esse contexto de ascensão do debate sobre reforma agrária no Brasil se diferenciava do que ocorria no mundo. Miguel Carter (2010) aponta que ao longo do século XX, as políticas de redistribuição fundiária foram adotadas em diversos países. Mas, ao final da década de 1980, uma série de fatores freou essas iniciativas em nível mundial diminuindo o peso da reforma agrária nos debates em torno da promoção do desenvolvimento.

A crescente urbanização do Terceiro Mundo, o aumento da produção agrícola com a introdução de tecnologias modernas, a queda do comunismo, a ascensão do neoliberalismo e a expansão dos conglomerados do agribusiness global contribuíram para a formação desse novo clima de opinião com respeito à redistribuição fundiária. Nesse contexto, uma curiosa contratendência começou a se desenvolver no Brasil. Na década de 1980, surgiram diversas mobilizações populares pressionando o Estado a promover reforma agrária, criando no processo um dos movimentos sociais mais duradouros da história: o MST (CARTER, 2010, p.37).

No Brasil, o embrião do MST, como mostram Sue Branford e Jan Rocha (2004), são as ocupações ocorridas no Rio Grande do Sul decorrentes de ações de despejos de pequenos agricultores que ocupavam terras indígenas no estado. Segundo as autoras, na década de 1970, mais de 8 mil famílias estavam dentro de áreas indígenas nos três estados sulistas. As ocupações dessas áreas, na década de 1960, ocorreram com a anuência velada do governo militar.

No final dos anos 1950, havia por volta de 270 mil famílias sem terra em busca de sobrevivência no Rio Grande do Sul. No início da década de 1960, o governo Leonel Brizola, de esquerda, começou a desapropriar alguns latifúndios gaúchos para distribuir àquelas famílias. O golpe militar acabou com esse incipiente programa de reforma agrária. O novo governo do estado, apoiado pelo militares, doou muitas das áreas desapropriadas a amigos e a aliados políticos, deixando às famílias sem terra tristes opções: migrar para a Amazônia; cruzar a fronteira do vizinho Paraguai, onde as terras eram baratas; ou invadir áreas nas reservas indígenas. Isso, claro, era ilegal. Mas o governo deu a entender que fecharia os olhos (BRANFORD E ROCHA, 2004, p.27).

Em maio de 1978, conforme relatam as autoras, os índios caingangues “declaram guerra” e expulsam as cerca de 2 mil famílias sem terra que estavam nas terras indígenas em Nonoai. A proposta do governo estadual foi que as famílias mudassem para a Amazônia. Parte das famílias, aproximadamente 500, foi para o Norte do país, outras 128 receberam terras no Sul, mas cerca de 350 ainda não tinham uma solução. A causa foi abraçada pelo padre Arnildo Fritzen, que integrava a Comissão Pastoral da Terra (CPT) , entidade que 4

desempenha importante papel da fundação do MST.

Branford e Rocha apontam que o despejo de Nonoai foi crucial para a questão da terra na região Sul. Após a ação, as famílias passaram a se reunir semanalmente. A culpa pela

4 Criada em 1975 pelos bispos da Igreja Católica da bacia Amazônica, a CPT tinha como objetivo chamar

atenção para os violentos conflitos fundiários da região. Como o quadro de violência não se restringia à região Norte, a comissão foi ampliando sua atuação pelo resto do país. Conforme apresentação no site na entidade, a comissão nasce à Igreja Católica e, por meio do vínculo com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), foi possível o seu trabalho mesmo durante o período de repressão da ditadura militar, que atingia também agentes pastorais, além das lideranças populares. Em seguida, a CPT assume caráter ecumênico por incorporar apoiadores de outras religiões, como a incorporação de outras igrejas cristãs, como a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil.

situação que enfrentavam inicialmente foi depositada nos índios, mas, aos poucos, a responsabilidade se voltou para o Estado. Naquele momento, as famílias passaram a contar com a ajuda clandestina de um funcionário da Secretaria de Agricultura do Estado, o jovem economista era João Pedro Stédile, que se tornaria, até hoje, uma das principais lideranças do movimento. Foi ele que informou as famílias de duas fazendas públicas, Macali e Brilhante, que estavam arrendadas para fazendeiros particulares. O prazo de arrendamento da Fazenda Macali, no entanto, já havia expirado. Este seria o primeiro alvo das famílias sem terra.

A decisão de ocupar a área, contudo, não era fácil para pequenos agricultores. “[...] educados para demonstrar grande respeito pela lei, bem como olhar os proprietários de terra como seus superiores” (BRANFORD E ROCHA, 2004, p.30). É o que José de Souza Martins (2009) chama de desenraizamento. “Porque, de fato, o assentado é beneficiário de uma transgressão, coisa que ele próprio reconhece. O processo social da reforma acaba sendo um processo de afastamento em relação à sociedade de que o assentado deseja ser membro (MARTINS, 2009, p.48).

A ocupação da Macali ocorreu em 7 de setembro de 1979 com a participação de 110 famílias.

Uma das primeiras providências, relembra Adelino, um dos assentados, foi fincar uma pequena cruz no terreiro, “porque o crucifixo representa o sofrimento do trabalhador sem terra”. Levantaram barracos, dividiram a comida que trouxeram e, às 10 horas, padre Arnildo rezou a missa, à sombra das árvores. Como era dia da Independência, hastearam a bandeira brasileira e cantaram o Hino Nacional. A polícia chegou no mesmo dia, mais tarde, contudo não tomou qualquer medida para despejá-los. Apesar das duras condições, lembra Inês, todos estavam felizes. “Todo mundo era pobre. Levamos tudo que deu – arroz, um pouco de feijão, um pedaço de gordura de porco. Tudo foi dividido, até a comida levada pelos parentes (BRANFORD E ROCHA, 2004, p.31).

O cenário trazido pelas autoras no dia da ocupação em Macali nos remete aos valores absorvidos como princípios pelo MST a partir da sua fundação, entre eles a solidariedade e o uso de símbolos como elementos agregadores. Começa a se definir também modelo de luta por meio das ocupações de formação de acampamentos. A modalidade não era novidade entre os movimentos campesinos, mas o MST o incorporou com métodos próprios.

Martins (2009) toma os acampamentos como um espaço de ruptura. “[...] um

processo de socialização que é, ao mesmo tempo, um processo de dessocialização, de anulação de referências culturais, valores e normas, peneiramento do que não parece ter sentido na adversidade da transição. Um passar a limpo a escritura do tempo. Enfim, ruptura” (MARTINS, 2009, p. 43). Ele aponta que o acampamento é uma etapa decisiva de como poderá ser o assentamento e “constitui hoje uma indiscutível medição da luta e da própria reforma agrária” ( idem, ibidem , p.42).

A principal novidade na organização das famílias no acampamento em Macali era a retomada dos movimentos campesinos que estavam reprimidos desde o golpe de 1964. O governo militar já pressionado pelo movimento pela redemocratização não enviou tropas para retirar as famílias à força, mas pressionavam o governo estadual para uma solução. Após 78 dias, policiais militares foram enviados, mas as famílias sem terra resistiram com uma barreira montada por mulheres e crianças. Após um ano de acampamento e novas incursões da polícia para intimidar os sem-terra, em setembro de 1980, o governo estadual comunicou que as famílias tinham permissão para ficar. A vitória em Macali encorajou outros a se juntarem à luta. As terras disponíveis em Macali não eram suficientes para todos que tinham resistido por lá, então nova ocupação, no mesmo mês, foi feita na Fazenda Brilhante com cerca de 170 famílias. Em dezembro daquele ano, 70 famílias, que não tinham para onde ir ergueram barracas no gramado de um cruzamento rodoviário, o local que passou a atrair centenas de famílias passou a ser chamado de Encruzilhada Natalino, que era o nome do dono de um bar nas proximidades do acampamento. “Em abril de 1981, uma pesquisa do Incra registrou a presença de 469 famílias no acampamento. Elas haviam erguido suas barracas com o que tinham à mão: plástico preto, tábuas, paus, até grama usaram, para servir de cobertura” (BRANFORD E ROCHA, 2004, p. 33).

As autoras destacam que o acampamento enfrentou forte pressão dos militares, que utilizavam técnicas de sufocamento, impedindo acesso de apoiadores e de familiares ao local. A área passou a atrair manifestações de solidariedade vindas de diferentes partes do país. O papel da Igreja, por meio da CPT e de manifestação formal de bispos em apoio aos sem-terra, foi fundamental para a resistência das famílias frente o governo militar. Após quase dois anos de acampamento, as famílias aceitaram a oferta dos bispos que tinham, por meio de uma campanha, comprado um pedaço de terra de 108 hectares, a cerca de 30 km do

acampamento, como solução temporária.

As mobilizações no campo sinalizavam mudanças conjunturais no Brasil com o enfranquecimento do governo militar. A tentativa frustrada de impor as forças repressivas contra a Encruzilhada Natalino apontavam mudanças no clima político do país. Branford e Rocha destacam que, com o apoio da CPT, as famílias sem terra começaram a organizar reuniões nos salões das igrejas em diversas do Sul. O trabalho de base resultou na fundação do MST em janeiro de 1984 na cidade de Cascavel, após a realização de um encontro que durou quatro dias com um grupo de cerca de 100 trabalhadores sem terra.

João Pedro Stedile, dirigente histórico da organização, explica no livro “Brava Gente – Trajetória do MST e luta pela terra no Brasil” (1999), ao ser entrevistado por Bernardo Mançano Fernandes, que o MST nasceu como movimento camponês com três reivindicações prioritárias: terra, reforma agrária e mudanças gerais na sociedade. Ele aponta três características fundamentais, a primeira delas é se tratar de um movimento popular amplo. Esse aspecto se subdivide pela perspectiva de que, por um lado, refere-se ao fato de que toda a família participa, homens, mulheres, crianças, idosos. O outro lado refere-se à negação ao sectarismo, incorporando militantes das mais diferentes facetas, como intelectuais, técnicos, religiosos, desde que defensores da reforma agrária, assim, argumenta que o movimento “soube se abrir ao que existia na sociedade. Simplesmente não se fechava e não se fecha em um movimento camponês típico, no qual só entra quem pega na enxada” (FERNANDES E STEDILE, 1999, p.32-33). Na avaliação de Stedile, foi essa abertura que conferiu ao MST uma organicidade e uma compreensão mais ampla para uma interpretação política da sociedade. Para ele, essa característica, no entanto, não significou a desfiguração do MST como movimento camponês, mas, apesar de não ser exclusiva para trabalhadores do campo, a direção política da organização é ocupada majoritariamente por eles.

Outra característica destacada por Stedile é o componente sindical, no “sentido corporativo”. Ele explica que se trata do atendimento de demandas específicas dos trabalhadores rurais, seja a luta por terra ou reivindicações de acesso ao crédito. O MST incorpora essa característica à prática do movimento, segundo Stedile, por aprendizado com outras lutas camponesas que antecederam a organização. Por outro lado, avança na compreensão de que não se deve manter restrita aos interesses corporativos, agregando o

componente político à luta pela terra. Esta é a terceira característica elencada por Stedile. “Tivemos a compreensão de que a luta pela terra, pela reforma agrária, apesar de ter uma base social camponesa, somente seria levada adiante se fizesse parte da luta de classes. Desde o começo sabíamos que não estávamos lutando contra o grileiro, mas contra uma classe, a dos latifundiários” (FERNANDES E STEDILE, 1999, p.36).

Os autores destacam, também, os princípios organizativos do movimento. O primeiro deles é o estabelecimento de uma direção coletiva. A divisão de tarefas é também destacada como forma de aproveitar habilidades e aptidões de militantes, pois “isso faz com que a organização cresça porque a pessoa se sente bem, se sente feliz com o que faz” (FERNANDES E STEDILE, 1999, p.41). Outro aspecto apontado é a disciplina, no sentido de que as pessoas respeitem as decisões das instâncias do movimento. O estudo e a formação de quadros são os princípios que buscam manter continuidade e consistência do movimento. A luta de massas é citada como condição para a existência do MST. Segundo Stedile, a ausência dela resultaria em uma organização sem poder de mobilização que se pautaria por conchavos políticos. Por fim, o princípio da vinculação com a base. Por ele, entende-se que um dirigente deve manter vínculos com sua base social. Stedile explica que que o movimento chegou a considerar a exigência de que um percentual da Direção Nacional estivesse morando em assentamentos. Ele considera em seguida, contudo, que mais importante do que o local de moradia, é estabelecer mecanismos de escuta com a base.

Um dos marcos na história do movimento é a ocupação da Fazenda Annoni, a primeira e maior ocupação, com a participação de 2,5 mil famílias que se espalharam em 9,5 mil hectares, localizada entre as cidades de Sarandi e Ronda Alta, no Rio Grande do Sul. A ocupação ocorreu em outubro de 1985 e foram necessários dois anos para que o governo estadual, pressionado pela sociedade civil, concordasse com a permanência das famílias na fazenda.

Mas somente em 1993 cada família ganharia o seu lote. Ao mesmo tempo em que percebia não possuir força política suficiente para despejar as famílias, ficou evidente, o governo relutava em ceder ao MST uma vantagem em termos de propaganda, ao admitir a derrota e, assim, prolongou tanto quanto possível o reconhecimento de um caso que já era encerrado (BRANFORD E ROCHA, 2004, p.65).

Como forma de caracterizar o MST como movimento popular, Christiane de Alencar Chaves, autora de “A Marcha Nacional dos Sem-terra” (2000), aponta, como parte do embate público em busca de legitimidade social, a rotinização dos métodos de ação e reação, por procedimentos e estratégias discursivas recorrentes e por um calendário cíclico de eventos. Ela destaca ainda, como característica, a capacidade do MST de forjar a identidade sem-terra.

De um ponto de vista interno, como “Organização”, o MST é um ator social que alcança expressão política através da capacidade de forjar a identidade “sem-terra”, que ultrapassa diferenças de origem e tradição e serve como um suporte social significativo de suas ações políticas. Sem-terra é uma categoria genérica que congrega uma congérie de outras, cuja inclusão é, no entanto, apenas potencial. […] A identidade sem-terra é forjada no curso da luta, realizada fundamentalmente através das mais diversas mobilizações promovidas pelo MST (CHAVES, 2000, p.18).

Chaves considera que houve uma ampliação do horizonte político da luta por terra no Brasil a partir da atuação do MST, pois a democratização da terra passaria a funcionar como ponta de lança de um projeto de transformação social que demandaria a democratização de diferentes recursos, sejam eles materiais ou simbólicos.

Maria da Glória Gohn (1997), autora do livro “Teoria dos Movimentos Sociais” e que segue desenvolvendo atualizações conceituais contemporâneas do tema, destaca, como premissa básica a respeito dos movimentos sociais, a ideia de que eles são “fonte de inovação e matrizes geradoras de saberes”. Ao defini-los, Gohn aponta: “Nós os encaramos como ações sociais coletivas de caráter sociopolítico cultural que viabilizam formas distintas de a população se organizar e expressar suas demandas” (GOHN, 2011, p.335).

A autora acrescenta que do ponto de vista histórico esses movimentos sempre existiram, pois eles representam forças sociais organizadas e aglutinam pessoas como campo de atividade e experimentação social. Gohn esclarece, nesse sentido, a diferenciação entre movimento social e organizações não governamentais. Algumas características distinguem o primeiro, como possuir identidade, ter opositor e estar articulado em torno de um projeto de vida e de sociedade.

Em uma perspectiva histórica, organizam-se para a conscientização da sociedade

para apresentar demandas por meio de mobilizações e táticas de pressão, além disso têm continuidade e permanência. A autora destaca ainda o fato de que não são apenas reativos – movidos por necessidades – mas podem surgir também pela reflexão da própria existência. Gohn aponta ainda, como uma característica da atualidade, o viés de que movimentos sociais apresentam um ideário civilizatório que tem como horizonte a construção de uma sociedade democrática. “Finalmente, os movimentos sociais tematizam e redefinem a esfera pública, realizam parcerias com outras entidades da sociedade civil e política, têm grande poder de controle social e constroem modelos de inovações sociais” (GOHN, 2011, p. 337). A autora formulou uma definição para o que considera como movimento social:

Movimentos sociais são ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores sociais pertencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles politizam suas demandas e criam um campo político de força social na sociedade civil. Suas ações estruturam-se a partir de repertórios criados sobre temas e problemas em situações de conflitos, litígios e disputas (GOHN, 2000, p.13).

Ela aponta que as ações desenvolvidas por movimentos sociais, portanto, desencadeiam processos sociais e político-culturais, criando uma identidade coletiva ao movimento. Tal identidade é construída a partir de um princípio de solidariedade e de uma base referencial.