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A Fazenda Pirituba, compreendida nos municípios de Itapeva e Itaberá, foi incorporada ao patrimônio público estadual em 1950 por meio da execução de dívida da Companhia Agrícola e Industrial de Angatuba. A área de 17.500 hectares passou a ser propriedade do Banco do Estado de São Paulo. De acordo com a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) 5, o governo paulista tentou destinar as áreas para colonização,

5Conforme descrição apresentada no site da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), o órgão “é a entidade responsável por planejar e executar as políticas agrária e fundiária do Estado de São Paulo e pelo reconhecimento das Comunidades de Quilombos”. O Itesp é vinculado à Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania.

mas os compromissos estabelecidos não foram cumpridos pelo responsável pela ação, e as terras acabaram arrendadas para um “grupo de pecuaristas, conhecidos por ‘boiadeiros’”.

Fernandes, a partir dos estudos de José Eli da Veiga, aponta que, na década de 1950, o então governador Ademar de Barros “emprestou” as terras para o italiano Lino Vincenzi, que teria o compromisso de introduzir o plantio de trigo no estado. Em vez disso, as terras foram arrendadas para amigos e parentes. Mais de uma década depois, no governo de Carvalho Pinto, as terras públicas foram requeridas por meio da nova lei de Revisão Agrária (Lei nº 5.994 de 31 de dezembro de 1960). O empréstimo das terras, no entanto, saiu caro, pois o Estado foi obrigado a pagar indenização ao italiano. Fernandes retoma Veiga para citar que entre os arrendatários que resistiram à saída estavam os três filhos de Vicenzi. “Depois de despejados, os grandes ocupantes conseguiram, através de documentos duvidosos, mandados judiciais de manutenção da posse e ocupam até hoje parte da Fazenda Pirituba” (FERNANDES, 1994, p.101).

Em 1971, a fazenda foi transferida para a Assessoria de Revisão Agrária (ARA), órgão da Secretaria da Agricultura, ainda com o objetivo de se efetivar um projeto de colonização. Em 1973, a secretaria iniciou mais um programa na forma de crédito fundiário em uma parte da fazenda, que ficou conhecida como Pirituba I. Uma parte desta gleba foi destinada ao Instituto Florestal para reflorestamento de coníferas e folhosas e o restante iria preferencialmente para pequenos agricultores que não tinham terras próprias. De acordo com Shimbo (2006), a área foi dividida em 181 lotes com até 40 alqueires para cada pessoa. O processo de seleção das pessoas contempladas, no entanto, recebeu denúncias de irregularidades e fraudes envolvendo servidores, funcionários administrativos e compradores. Os conflitos agrários permaneceram.

Em 1978, as denúncias de irregularidades resultaram em processos administrativos contra funcionários e servidores e na rescisão do contrato de compromisso de compra e venda, além de uma ação penal contra as pessoas que receberam as terras do ex-técnico responsável pela Fazenda Pirituba. Shimbo aponta que alguns desses posseiros, que eram conhecidos como boiadeiros e que chegaram a ocupar 4 mil hectares da fazenda, foram despejados na década de 1980: “Nessa época, na fazenda Pirituba existiam três situações para desenvolver a agricultura: um grupo de pequenos agricultores da região, uma

parte de italianos (criadores de gado) e um grupo de holandeses” (SHIMBO apud BARBANTI, p.38, 2006).

No início da década de 1980, pequenos agricultores resolveram ocupar terras dos “boiadeiros-grileiros”, como nomeou Shimbo. Cinquenta famílias ocuparam parte da fazenda, mas foram expulsas por jagunços, o que deu origem ao processo de formação do Projeto Pirituba II. O Instituto de Assuntos Fundiários (IAF) estabeleceu uma comissão intermunicipal para regularização da fazenda. Faziam parte do grupo: um agrônomo; vereadores; representantes de prefeituras; acampados; lotistas regulares, que haviam ocupado pequenas parcelas de terra na Pirituba I; e representantes dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de Itapeva, Itaberá e Itararé. A comissão começou a discutir a proposta de o Estado destinar 4 mil hectares para assentar sem-terra da região.

Segundo Bernardo Mançano, a comissão enfrentou vários problemas, como a participação de vereadores que defendiam os interesses dos grileiros. Além da participação na comissão, os trabalhadores que reivindicam terras tiveram o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outros trabalhadores sem terra que já atuavam na luta pela terra em outras áreas do estado. Entre os temas discutidas nas reuniões, estavam as experiências das ocupações de outros movimentos de sem-terra, que, naquele momento, ocorriam em São Paulo e também em outros estados. De acordo com o autor, “embora tenha contribuído na construção do espaço de socialização política, não foi suficiente para dimensioná-lo” (FERNANDES, 1994, p.103).

Os registros do Itesp mostram que uma segunda ocupação ocorreu em abril de 1983 e que as famílias foram despejadas por ação judicial. Em 13 de maio de 1984, cerca de 250 famílias ocuparam novamente a área sob domínio dos grileiros. A data é utilizada como referência para as comemorações do aniversário da Agrovila 1 . Reconhecendo a situação de conflito, o governo do estado agiu para conseguir na Justiça o despejo dos boiadeiros-grileiros e foram, então, assentadas as primeiras famílias nas áreas 1 e 2. Foram beneficiadas cerca 160 famílias da região e também do norte do Paraná.

A luta aqui da Pirituba pode ser considerada uma das primeiras. A luta aqui, ela começou em oitenta, houve duas ocupações anterior e foi despejado o pessoal que entrou aqui, inclusive na época eu não fazia, ainda, parte do grupo. O pessoal foi despejado na primeira vez pelos jagunços e na segunda

vez pela polícia... Aí viu que não era tão fácil, que precisava um pouco mais de organização, um pouco mais de gente... Não tinha envolvimento com o Sindicato, a partir da primeira ocupação, da segunda, aí que passou o Sindicato a se envolver mais né, e ser uma luta regional […]. Delwek Matheus, assentado na Agrovila 1 da Fazenda Pirituba (FERNANDES, 1994, p.102).

Fernanda Matheus, uma das dirigentes estaduais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e filha de Delwek, chama de “espontâneas” as mobilizações na Fazenda Pirituba, que antecederam a criação do movimento.

Essa primeira ocupação que deu origem ao primeiro e segundo assentamento. São ocupações organizadas espontaneamente. O MST não tinha ainda se constituído, ainda estava se constituindo e, já a partir das ocupações, que vão dando origem aos outros assentamentos, aí já são organizadas pelo MST (Fernanda Matheus, entrevistada em fevereiro de 2017).

É em meados da década de 1980 que as mobilizações na Fazenda Pirituba se vinculam ao MST. A Agrovila 3 foi criada a partir da ocupação de uma área conhecida como “terra dos Batagim”. Cerca de 300 famílias entraram na área e foram despejadas, mas permaneceram acampada por, pelo menos, um ano nas estradas vicinais da região. Após o Estado “sequestrar judicialmente” a área, as famílias foram transferidas para o assentamento provisório, onde ficaram nesta situação até 1996. Esta situação é chamada de emergencial, tendo em vista as terras serem insuficientes para plantio.

A área 4 foi fruto de mobilização iniciada em 1989 por cerca de 150 famílias, filhos e parentes de assentados da Fazenda Pirituba II, que ocuparam uma área explorada por integrantes de um grupo denominado de “os holandeses”. Eles foram expulsos por meio de liminar da Justiça. As famílias ficaram acampadas em rodovias próximas até março de 1990. “O grupo continuou mobilizado, ocupando outros lotes dos ‘holandeses’, resistindo a investidas de jagunços e a ações de despejo judicial”, de acordo com a publicação do Itesp. As terras foram conquistadas provisoriamente em fevereiro de 1991, mas já garantido o assentamento das famílias.

Ocupada em 1992, a área 5 do Pirituba II já pertencia ao patrimônio público de São Paulo e devia ser destinada à reforma agrária. No entanto, encontrava-se sob posse dos

“holandeses”. A área foi ocupada e, com a situação de conflito, o governo estadual permitiu a permanência das famílias que estavam assentadas em caráter emergencial. O processo de instalação definitiva ocorreu em 1998, de acordo com o Itesp.

A área mais recente é a da Agrovila 6, cujo processo de mobilização ocorreu em 1999. E ainda há famílias acampadas da região. Segundo Fernanda Matheus, os assentamentos ocupam hoje cerca de 10 mil hectares dos 17,5 mil hectares que fazem parte da Fazenda Pirituba. Dois mil hectares estão como área de pesquisa sob responsabilidade do Instituto Florestal e foram ocupados em 2014 pelo movimento. Segundo a dirigente, o MST questiona o fato de que as terras usadas para pesquisa são destinadas para plantação de pinus e que há exploração econômica da área. Um projeto para instalação de assentamentos com desenvolvimento sustentável como projeto-piloto foi apresentado do Itesp.

Compreendendo a importância do desenvolvimento de pesquisas para a produção de tecnologias que atendam demandas em promover a preservação ambiental, a proteção ao patrimônio genético e as espécies ameaçadas de extinção, sem desconsiderar a necessidade de elevar a produtividade na agropecuária, inclusive em termos de renda e de encontrar alternativas que diminuam a pressão pela exploração de espécies nativas, propõe-se a destinação das áreas da Secretaria do Meio Ambiente que estão sendo utilizadas para a pesquisa em silvicultura com Pinus, para a instalação de Projetos Pilotos de Assentamentos de agricultores Sem Terra, na modalidade Projeto de Desenvolvimento Sustentável (MATHEUS E SILVA, 2014, p.4).

Em 2017, essas áreas estavam ocupadas, mas meses depois as famílias sofreram ação de despejo e, organizadas pelo MST, seguiram para outra área de ocupação, uma delas no município de Itaporanga, a cerca de 70 quilômetros da área do assentamento, em Itaberá. Trata-se do Acampamento Izael Fagundes, na Fazenda Lageado, uma área de aproximadamente 400 hectares. A fazenda é disputada judicialmente por herdeiros de um espólio e o governo de São Paulo há quase 10 anos. Cerca de 40 famílias seriam beneficiadas. Em maio de 2018, participei da assembleia que definiria o destino das famílias ali acampadas que tinham uma ordem de despejo marcada para dali três dias. Os sem-terra decidiram novamente se deslocar para outra área no município de Riversul, na Fazenda Can Can, cuja posse do governo estadual também é questionada na Justiça por grileiros. Parte das famílias que estão acampadas nessas áreas são filhos ou netos dos titulares das terras da Fazenda

Pirituba. Este fato exemplifica a presença do MST na região, ainda com o componente da “frente de massas”, como os próprios militantes nomeiam.

Tabela 2 : Áreas do assentamento Pirituba II em relação ao município, início, número de lotes e área ocupada

Município Assentamento Início Número de lotes Área total (ha) Itapeva Pirituba II – Área 1 05/1984 107 2.511 ha

Itaberá Pirituba II – Área 2 05/1984 56 1.341 ha

Itaberá Pirituba II – Área 3 12/1986 73 2.142,33 ha Itapeva Pirituba II – Área 4 02/1991 51 1.096,83 ha Itaberá Pirituba II – Área 5 09/1992 39 807,71 ha Itapeva Pirituba II – Área 6 06/1996 52 108,57 ha

Fonte: Banco de dados do Itesp

Atualmente, segundo Fernanda Mateus, são 426 famílias. A diferença em relação ao número de lotes ocorre porque parte das famílias cresceu, constituindo novas famílias, mas permanecendo no mesmo lote. A organização de novos acampamentos reflete o surgimento de novos sem-terra mesmo dentro de contextos de assentamentos consolidados, pela constituição de novos núcleos familiares. Na aplicação dos questionários com jovens de 18 a 29 anos durante o trabalho de campo, perguntamos quantas famílias habitavam o mesmo lote. Dos 34 entrevistados, mais da metade (18) dividiam o lote com outra família. Em oito deles, o lote é dividido por duas famílias e oito por três. Há dois casos em que o lote se divide para quatro núcleos familiares.

Anita Brumer (2007) aponta que a sucessão geracional é uma questão clássica para a juventude rural. “Aos constituírem-se simultaneamente como unidades de produção e de consumo, estas famílias e as gerações que as antecederam tinham como objetivo a reprodução da própria unidade familiar” (BRUMER, 2007, 42). As sucessivas divisões da terra, contudo, chegam ao limite da viabilidade, tendo em vista que a área não é mais suficiente para a subsistência de todos.

Além do crescimento das famílias, trazendo desafios para a questão sucessória e a necessidade de novos assentamentos, outra dimensão da luta se apresenta aos agricultores

pelo modelo de desenvolvimento. Fernanda Matheus cita, como exemplo, a pressão exercida sobre os agricultores para o arrendamento das terras para grandes empresas. “A luta pela terra não é contra um fazendeiro, é uma luta contra uma grande empresa. Então você tá ocupando uma terra que é ligada à Votorantim, a essas empresas grandes”, disse em entrevista em fevereiro de 2017. Ela destaca ainda mudanças, como a lei nº 13.465/2017, que acelera o processo de emancipação dos assentados. Para a dirigente, esse processo aumenta o assédio de grandes proprietários sobre os pequenos agricultores, além desobrigar o Estado com políticas de assistência técnica e permanência no campo.

CAPÍTULO 2 – A TERRA

A caracterização do assentamento da Fazenda Pirituba, lugar empírico deste trabalho, é o foco deste capítulo. Para tanto, será apresentada, inicialmente, a ambientação das agrovilas que o compõem, bem como atividades desenvolvidas e os espaços de convivência no Pirituba. Em seguida, apresentamos algumas das mudanças socioespaciais no meio rural decorrentes do avanço do modelo do agronegócio globalizado (ELIAS, 2006). No tópico seguinte, deteremo-nos às discussões que situam o indivíduo no campo e as tensões resultantes desse processo de modernização.