• Nenhum resultado encontrado

Diante de tantas transformações no meio rural brasileiro, como vimos no tópico anterior, nos deteremos agora aos debates que se voltam para o sujeito no campo e o debate sobre a persistência da categoria campesinato.

Maria Nazaré Baudel Wanderley (2009) afirma que, do ponto de vista sociológico, o “rural” aponta para duas características fundamentais. De um lado, a relação dos habitantes do campo com a natureza; por outro lado, relações sociais diferenciadas, “resultantes da dimensão e da complexidade restritas das 'coletividades' rurais” (2009, p.204). Ela chama atenção, no entanto, para a percepção de que o “rural” não se constitui como uma essência, mas, sim, como uma categoria histórica, passível de transformações.

Sob esse aspecto, a partir do processo de industrialização e urbanização das sociedades modernas, constrói-se um pensamento de que as sociedades rurais/camponesas desapareceriam e a agricultura se constituiria apenas como um campo de reprodução do capital. Com a decomposição do campesinato, portanto, teríamos a figura do agricultor não mais como um modo de vida, mas como profissão. Wanderley, por sua vez, filia-se a uma concepção que rejeita esse olhar sobre o campo e defende a emergência de uma nova ruralidade.

A modernização, em seu sentido amplo, redefine, sem anular, as questões referentes à relação campo/cidade, ao lugar do agricultor familiar, predominantemente nos países ditos 'avançados', pelo fato mesmo de ser familiar, guardar laços profundos – de ordem social e simbólica – com a 'tradição camponesa' que recebeu de seus antepassados (WANDERLEY, 2009, p.205).

Para contestar a tese do “fim do rural”, ela afirma, baseando-se nas proposições do antropólogo belga Marc Mormont e do sociólogo canadense Bruno Jean, que, no contexto das sociedades modernas, “o eixo das referências identitárias tende a se deslocar: os indivíduos se identificariam menos ao trabalho (domínio da necessidade) e mais ao lugar de residência (domínio da liberdade)” (2009, p.244-p.245).

Constata-se, portanto, a ausência da homogeneização socioespacial, segundo a tese do continuum urbano-rural; e conforma-se a permanência dos espaços rurais na dinâmica da evolução das sociedades globais. Jean defende que o fim das “sociedades rurais” não implica no fim do “rural”. Wanderley cita o autor canadense para apontar que, nas sociedades modernas, observa-se um processo de recomposição do rural e emergência de uma “nova ruralidade”.

Mauro Almeida (2007) também discute a tese de “morte do campesinato” como resultante dos processos de modernização e globalização, o que significaria, portanto, a morte de civilizações tradicionais, de sociedades camponesas e de lógicas econômicas camponesas. Ao questionar esta tese, assim como o faz Wanderley, ele propõe uma análise mais criteriosa em relação a esse desaparecimento. Ele argumenta que os defensores desta tese unificavam neste conceito “uma multidão de objetos e de características”, tendo em vista as “várias narrativas agrárias” (culturalista, sociológica e economicista). Para Almeida, esses objetos e características não foram eliminados pelas sociedades modernas, mas o conceito “campesinato” pode ter perdido a capacidade de explicar esse campo.

Para ele, o que desapareceu foi o paradigma, como um conceito total, e não os sujeitos que ele punha em circulação. “A dissolução nominalista do campesinato e das 'sociedades agrárias' enquanto categoria mestra é real; mas não menos real é a reativação da política indígena, nativa, grass-root, étnica” (ALMEIDA, 2007, p.170). Se abstraída a categoria totalizante, portanto, percebe-se, segundo o autor, que “os traços culturais, econômicos e ecológicos que eram associados a ela, embora desconjuntados entre si e destacados da grande narrativa teórica da qual faziam parte, continuam na ordem do dia” ( idem, ibidem ).

Também partindo da contestação da tese de “morte do campesinato”, Carneiro

(1998) nos chama atenção para o fato de que as mudanças verificadas no campo não se dão de forma homogênea, como um processo de transformação único em toda a sua extensão. Ao discutir a persistência desta categoria, com base em valores tradicionais para além do modo de produção, a autora, alerta para o fato de que não se pode falar em uma ruralidade em geral, e, sim, da forma com que ela se expressa em diferentes universos culturais, sociais e econômicos.

Ao destacar que a proliferação do tecido urbano não resulta na dissolução do agrário, a autora propõe pensar a cultura camponesa não mais em contraste com a sociedade urbano-industrial. Na avaliação dela, essa perspectiva permite ler o termo “camponês” não como uma categoria social estática e universal, que seria “incapaz de absorver e de acompanhar a dinâmica da sociedade em que se insere e de se adaptar às novas estruturas sem, contudo, abrir mão de valores, visão de mundo e formas de organização social definidas em contextos sócio-históricos específicos” (CARNEIRO, 1998, p.55).

Carneiro destaca dois fenômenos que ajudam a pensar a ruralidade, sobretudo no Brasil. O primeiro deles é a compreensão de que o espaço rural não se define como exclusivamente agrícola, mas, sim, como ela nomeia, referenciada em Graziano da Silva, como pluriatividade. O segundo fenômeno refere-se à procura do campo como um espaço de lazer e modo alternativo de vida por pessoas vindas da cidade. “Essas experiências já conhecidas na realidade europeia já algumas décadas, transformam o 'campo' – como categoria genérica – em um lugar de vida, mais que um espaço de produção agrícola, o que certamente contribuiu para a formulação de abordagens críticas à visão dualista que opunha o 'rural' ao 'urbano'[...]” (CARNEIRO, 1998, p.57).

A autora acrescenta que as trocas simbólicas com o mundo urbano podem representar, na verdade, um reforço de identidades apoiadas no pertencimento a uma localidade. Essa base espacial, portanto, “mantém uma lógica própria que lhe garantiria a manutenção de uma identidade. Nessa perspectiva, as transformações na comunidade rural, provocadas pela intensificação das trocas com o mundo urbano (pessoais, simbólicas, materiais), não resultam, necessariamente, na descaracterização de seu sistema social e cultural como os adeptos da abordagem adaptacionista interpretavam” (CARNEIRO, 1998, p.58).

Carneiro reconhece a dificuldade em atribuir à ruralidade uma definição uniforme, pois, atualmente, ela remete ao debate sobre extinção da tradição cultural fundada na prática agrícola de um produtor específico (o agricultor familiar ou o camponês). Ao questionar esta abordagem, Carneiro propõe pensar ruralidade não mais como “uma realidade empiricamente observável, mas como uma representação social”. Nesse sentido, esta representação seria definida culturalmente por agentes sociais que desempenham pluriatividades, as quais não têm, necessariamente, relação com a produção agrícola.

A ruralidade se expressa de diferentes maneiras como representação social – conjunto de categorias referidas a um universo simbólico ou visão de mundo – que orienta práticas sociais distintas em universos culturais heterogêneos, num processo de integração plural com a economia e a sociedade urbano-industrial (CARNEIR0, 1998, p.73).

Inspirada em Giovanni Lévi (1999) e Hans Pongratz (1990), ela assume como hipótese de trabalho que a “cultura camponesa” pode persistir em um contexto de industrialização e urbanização, mas não deve ser percebida como um modelo estático e a-histórico, no sentido de que se trata de uma cultura específica e universal. “Mas no sentido de uma visão de mundo pautada em relações sociais específicas e que se expressa ativamente, de forma a transformar e a recriar o seu mundo social e natural” (CARNEIRO,1998, p.73).

Woortmann (1990) propõe uma etnografia brasileira do campesinato vinculada ao que ele nomeia de ética camponesa. Tal ética seria constitutiva de uma ordem moral (forma de perceber a relação dos homens entre si e com as coisas, neste caso, a terra). Ele entende que o conceito de campesinato está associado, notadamente no Brasil, a uma base econômica, mas propõe avançar nesse entendimento sob uma perspectiva próxima à ideia de uma “sociedade camponesa”.

Estou tratando, pois, de valores sociais; não do valor-trabalho, mas do trabalho enquanto um valor ético. Esta tentativa se afasta, portanto, da tendência economicista que vê o campesinato como um modo de produção com sua lógica própria ou como resultado de determinações impostas pela lógica do capital […]. Ocupo-me de uma qualidade: a campesinidade, que suponho comum a diferentes lugares e tempos (WOORTMANN, 1990, p.12).

O autor aposta na existência de um tipo, presente no que ele chama de sociedade camponesa, que partilha de uma ética, baseada, sobretudo na família. Essa percepção é verificada a partir das conexões de sentido que são significativas para os sujeitos, ligadas, especialmente, à produção cultural da família enquanto valor.

Woortmann focaliza, a partir de estudos etnográficos, categorias culturais comuns do universo camponês brasileiro, são elas: terra, família e trabalho. Ele destaca, no entanto, que o mais importante é que sejam nucleantes, o que implica estarem relacionadas.

Nas culturas camponesas, não se pensa a terra sem pensar a família e o trabalho, assim como não se pensa o trabalho sem pensar a família e a terra. Por outro, lado, essas categorias se vinculam estreitamente a valores e princípios organizatórios centrais, como a honra e a hierarquia (WOORTMANN, 1990, p.23).

Mauro Almeida (2007) acrescenta que, sob uma perspectiva culturalista das narrativas agrárias, com base na antropologia estadunidense, a construção de culturas camponesas dotadas de peculiaridades, sejam elas linguísticas, religiosas, tecnológicas e sociais, podem “funcionar como arma política para reivindicação direitos fundiários, jurídicos, educacionais e de outros dos quais muitos são desprovidos” (ALMEIDA, 2007, p. 159).

Ao dizer que a “cultura liga, por assim dizer, as pessoas à terra”, o autor associa essa identidade étnica e cultural a “passaportes para direitos de cidadania”. Almeida acrescenta que essa relação identitária com o campo transformou-se em “arma” para muitos grupos minoritários na conquista de uma posição na sociedade.

Sobre este debate, consideramos relevante observar a perspectiva do MST em uma reflexão sobre a cultura camponesa. No Caderno de Formação n° 34 do MST, com título “O MST e a Cultura”, de Ademar Bogo (2006) , apresenta o recorte de classe que permeia a 9

9 Sobre o conceito de intelectual orgânico, utilizamos como base as formulações do autor italiano Antonio

Gramsci que, ao discutir a formação dos intelectuais, o faz a partir de um recorte de classe. “Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e no político” (GRAMSCI, 1985, p. 3). Ademar Bogo, por sua vez, é filho de camponeses e tem atuação política na luta pela terra desde a década de 1970. No MST, está desde a origem do movimento na década de 1980. Na organização, ele é formulador de debates sobre cultura camponesa, teoria da organização política, identidade de classe, entre outras discussões.

discussão de cultura no movimento popular.

[…] Não nos dividimos por raças, nem por credos religiosos, mas sim por classes, onde uma pequena quantidade de abastados coloca-se acima da linha divisória, imposta para diferenciar riqueza de pobreza e a grande maioria fica abaixo dela, tentando com pequenos saltos alcançar algumas pontas de privilégio (BOGO, 2006, p.12).

Outro traço marcante no texto é a perspectiva de cultura como uma herança, que denota o caráter de tradição da cultura do campo, valorizando a vida rural a partir de especificidades, tirando-a de um olhar estandardizado próprio de modelos globalizados, a exemplo do agronegócio. Como vimos anteriormente (ELIAS), as mudanças operadas no espaço não eliminam os traços materiais do passado, convivendo com formas clássicas, tanto em relação às formas de trabalho quanto em outras dinâmicas da vida social.

Os costumes, comportamentos, valores, ensinamentos são heranças culturais que recebemos de nossos antepassados como se fossem objetos de uso, os utilizamos sempre que necessitamos e às vezes sem nos dar conta. Por isso é que há culturas diferentes, pois além de tudo ela é produzida em um certo lugar com determinadas condições que não existem em todos os lugares (BOGO, 2006, p.10).

A identidade camponesa como algo que é mantido para além do território rural também é recorrente no texto. Nesse caso, deixar o campo é compreendido como um deslocamento temporário, cujas raízes devem ser religadas – nas palavras do autor – a partir da conquista da terra.

Portanto, embora “desenraizados”, os refugados do capital mantêm vivas determinadas características que, forjadas na produção da existência individual e coletiva, em outras circunstâncias, e que em novas condições poderão renascer possivelmente de forma conservadora, podem servir como ponto de partida para a produção de um novo pedaço de existência. A reforma agrária é por excelência a possibilidade de religamento das raízes cortadas por diversos fatores no passado, por ser um resgate coletivo e comunitário delas (BOGO, 2006, p.17).

Alinhada a uma reflexão sobre cultura como um modo de vida no campo, como expresso neste trecho: “A cultura, portanto, é algo concreto que se move como uma força

invisível no ambiente onde se produz a existência de um determinado grupo social e influi profundamente em seu comportamento” (2006, p.20); a abordagem do tema pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra também segue uma linha de orientação da militância, o que se indica como uma prática desejável. “Desenvolve-se por outro lado, juntamente com a 'cultura' da existência, a cultura da resistência, de não se entregar totalmente aos embalos do cantarolar do consumismo capitalista” (BOGO, 2006, p.19).

Há também o reforço de um sujeito universal com indicação de características comuns do imaginário camponês: solidário, ressabiado, compromissado.

A cultura do caipira no momento em que se desloca para a cidade, expulso do campo, não se extingue com a mudança do ambiente físico, pelo contrário, permanece por certo tempo puramente caipira e é com ela que se defenderá no mundo desconhecido. Há reserva no falar, não faz inimigos e por outro lado, cultiva valores como a fidelidade, o compromisso, a solidariedade entre os amigos e assim por diante (BOGO, 2006, p.20).

Percebe-se na abordagem do movimento popular sobre cultura a construção de um sujeito universal com características demarcadas: o campesino marcadamente agrário e de valores tradicionais. A construção identitária do camponês para o movimento popular mais se aproxima de um camponês tradicional, cujo vínculo é com a terra em si. As características identitárias apontadas pelo movimento forjam o sujeito ideal, na compreensão do MST, para a luta pela reforma agrária.

Retomo, nesse sentido, o trecho abordado acima do artigo de Mauro Almeida em que ele destaca a perspectiva culturalista das narrativas agrárias e a possibilidade de que a construção de culturas camponesas dotadas de peculiaridades seria capaz de funcionar como arma política para reivindicar direitos. Esta parece-me ser a aposta feita pelo Movimento Sem Terra para se afirmar na sociedade como um organismo que reúne sujeitos de direitos.

Mas, para além dessa ação reivindicatória, percebe-se a construção de uma identidade “para dentro”, de modo que os integrantes do movimento popular se percebam como camponeses, marcados pelo vínculo com a terra, independentemente do local em que se encontram. A ideia, portanto, de uma ruralidade entrelaçada ao urbano e aos processos de industrialização não aparecem no texto do MST.

Alimentando-se dos debates que circundam o campesinato, José de Souza Martins

(2009) lança olhar sobre o sujeito social da reforma agrária brasileira. Ele aponta como necessário compreender a gênese desse indivíduo que “personifica e vivencia” a reforma agrária. “Essa gênese é essencial para a compreensão sociológica do horizonte, das ações e da mentalidade dos protagonistas da luta pela reforma agrária e também da concretização da reforma agrária” (MARTINS, 2009, p.11). O autor chama atenção para o fato de que diferentes categorias de reivindicantes de alguma modalidade de acesso à terra foram reduzidas uma categoria só e abstrata chamada de “sem-terra”, “uma designação que acoberta diferenças de propósitos, de necessidades e de reivindicações dos próprios trabalhadores, tanto os que reivindicam quanto os que são atendidos” ( idem , ibidem , p.16). Para Martins, isso dificulta compreender o processo social imerso em contradições na diversidade dos conflitos e pressões fundiários.

Ele lembra que os candidatos aos assentamentos formam uma massa residual de “um conjunto de um grande descarte social”, englobando pessoas que tiveram suas expectativas de vida não realizadas. Por vias diferentes, destaca o autor, são oriundas do processo de desagregação do sistema agrícola e extrativo da economia de exportação, a qual resultou dos arranjos entre o fim da escravidão, a instituição da propriedade fundiária, a qual carregava funções de criar um sistema de coerção nas relações de trabalho e a forma possível de trabalho livre. Martins explica que com a desagregação desse arranjo, nos anos 1960 e 1970, em plena ditadura civil-militar, abre-se espaço para trabalho temporário não enraizado e sem complementaridade com formas enraizadas de moradia e trabalho. “[...] mais do que o vínculo trabalhista, o que se rompeu foi o vínculo de moradia, a agregação à grande propriedade, produto do crescimento da renda fundiária. A luta pela terra em boa parte se apresenta como luta pelos direitos de moradia [...]” (MARTINS, 2009, p.17).

O autor aponta que entre o processo de desenvolvimento econômico, portanto, dissemina o desenraizamento, o qual dissemina também as estratégias de sobrevivência que daí decorrem, propondo um modo de vida marcado por formas transgressoras de driblar as consequências dessa exclusão e ser reincluído em um padrão de relacionamento sociais “que empurra continuamente seus descartes para fora” (MARTINS, 2009, p.40). A reforma agrária brasileira, nesse sentido, não é apenas distribuição de terra, mas de oportunidade, como aponta Martins.

A busca pela reinserção, por sua vez, é marcada pelos dilemas da transgressão. Martins aborda essa questão pela dessocialização a partir do período de acampamento.

Há aí, digo eu, um processo de socialização que é, ao mesmo tempo, um processo de dessocialização, de anulação de referências culturais, valores e normas, peneiramento do que não parece ter sentido na adversidade da transição. Um passar a limpo a escritura do tempo. Enfim, ruptura (MARTINS, 2009, p. 43).

Há, conforme o autor, diferenças significativas entre a situação do acampamento e a experiência social que dele resulta e a experiência social do assentamento. O segundo traz o momento do definitivo, de estabelecer dinâmicas sociais e espaciais de convivência. No acampamento, por outro lado, vive-se um período em que “os valores e normas duráveis” perderam o sentido. Martins o associa com um período reconstituir referências sociais mínimas para garantir uma coexistência provisória.

Todo esse processo – rupturas, desenraizamento, novos valores – se dá entre continuidades e permanências. Martins lembra que o núcleo essencial da visão de mundo, das mentalidades e da convivência não se rompe completamente, preservando algumas referências que podem ser reconstruídas. A ocupação da terra alheia, por exemplo, pode ser lida como um ato transgressivo, trazendo a necessidade encontrar um sistema de valores e normas que legitimem o ato.

Ao contrário da concepção difundida de que se trata de um ato seguro de reivindicação de um direito, a pesquisa nos indica que há uma enorme insegurança na transição, um medo enorme e uma culpa intensa que não chegam a ser aliviados pelas racionalizações políticas que procuram legitimar a decisão e o ato (MARTINS, 2009, p.47).

Para o autor, além do benefício da conquista da terra e da reinserção social, o assentado torna-se beneficiário de uma transgressão. Uma tensão observada em estudos em assentamentos da reforma agrária. Tal processo simboliza, nesse sentido, um afastamento em relação à sociedade que ele deseja ser membro. “Essa é também uma dimensão da orientação conservadora” (MARTINS, 2009, p.48).

CAPÍTULO 3 – O JOVEM

“Um assentamento que não envelhece”. É assim que a assentada Fernanda Matheus, em entrevista para esta pesquisa em fevereiro de 2017, se refere à presença de jovens no Assentamento da Fazenda Pirituba. Ela não menciona necessariamente um padrão sucessório (ABRAMOVAY, 1998) da agricultura familiar em que esses jovens assumiriam as responsabilidades no lote da família. Ao dizer que há 70% de permanência entre os jovens no assentamento, ela destaca as oportunidades que lhes são oferecidas ali mesmo, como o acesso à educação básica completa (da Educação Infantil ao Ensino Médio) e à qualidade de vida, resultante da oferta de serviços públicos, especialmente a escola e o atendimento médico no posto de saúde. Segundo Fernanda, alguns deixam o assentamento, quando “jovenzinhos”, mas voltam depois que têm filhos.

O desenvolvimento da pesquisa confirma esta percepção de Fernanda. A identificação dos jovens com a vida no campo, contudo, não se situa necessariamente na relação com a vida agrária, mas a outros fatores, como as facilidades de mobilidade para a cidade, o que permite a manutenção de uma residência rural com o trabalho urbano (CARNEIRO, 2007). O que Maria José Carneiro chama de o “melhor de dois mundos”.