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O LUTO NA EXPERIÊNCIA DA DOENÇA CRÔNICA

IV.1 O luto antecipatório

A cronicidade de uma doença sempre coloca o indivíduo frente à possibilidade da morte iminente, seja a sua ou a de alguém de seu sistema familiar. Essa notícia poderá desencadear alterações em seu cosmo psíquico, seja na área cognitiva, emocional ou comportamental, pois “a antecipação da perda pode ser tão perturbadora e dolorosa para as famílias quanto a morte efetiva de um de seus membros” (ROLLAND, 1998, p. 166).

O sofrimento vivenciado como decorrência dos confusos sentimentos que emergem são denominados como luto; porém, tal tipo de luto apresenta características um pouco diferenciadas do luto que ocorre quando a morte, efetivamente, já aconteceu. Esse “luto de pessoa viva”, também conhecido como “luto antecipatório”4, foi cunhado por Lindemann (1944), quando começou a estudar as reações emocionais das esposas de soldados que iam para a guerra. Ele percebeu que a perspectiva da morte de seus maridos provocava reações de enlutamento em todas as mulheres e interpretou esse fenômeno como uma forma de adaptação à possibilidade da perda. Nesse período, elas alternavam períodos de depressão, raiva, desorganização e reorganização, numa tentativa de antecipação do desligamento afetivo de seus maridos, “protegendo-se” dos efeitos dolorosos da morte repentina.

A convivência dos familiares com o paciente crônico é caracterizada pela ambivalência dos sentimentos, pois, à medida que a doença crônica avança para a terminalidade, os recursos emocionais e financeiros tendem ao esgotamento e o medo da perda do ente querido pode mudar para o desejo da morte, causando enorme culpa e vergonha. Além disso, a esperança de cura ou continuidade da vida continuará a ser alimentada e a elaboração e resolução desse tipo de luto implica a manutenção do vínculo afetivo com o ente querido. Há de ser levado em conta, também, o grau de incapacitação física e psicológica em que o paciente se

4 A commom picture hitherto not apreciated is a syndrome which we have designated anticipatory

encontra, pois com o declínio físico a intimidade fica comprometida, caso a família venha a se retrair emocionalmente. No caso da perda psicológica, caracterizada por uma gama de déficits cognitivos, a dor para a família é muito grande, porquanto a morte psicológica ocorre antes da morte física. Essas são algumas das características que diferenciam o luto antecipado do luto pós-morte (ROLLAND, 1998; FONSECA, 2004).

A preparação para a morte próxima do enfermo oferece a possibilidade de resolver situações incompletas com a pessoa terminal, além de favorecer a lenta adaptação à realidade da perda, pois ela prepara a família para a ausência permanente do ente querido, embora possa gerar solidão, insegurança, desconforto social, incerteza econômica, e alteração do estilo de vida, dentre outras consequências. Para que essa adaptação aconteça de maneira saudável, há a necessidade de intervenções que previnam o aparecimento de problemas após a morte. As situações que precisam ser resolvidas referem-se às questões administrativas da vida (contas, bens etc.) e às questões subjetivas e pessoais (dizer adeus, falar sobre seus sentimentos, falar sobre o que ficou por dizer, perdoar ou pedir perdão etc.). Caso esse luto antecipado seja evitado ou dificultado por negação ou crença de que o paciente possa sair de seu estágio terminal, por envolvimento excessivo com o paciente por meio do papel de cuidador ou de vínculo de cônjuge, o luto pós-morte provavelmente será mais sofrido e complicado (FONSECA, 2004).

O luto antecipatório é parte do processo de luto como um todo (pré e pós- morte) e não apenas uma fase preparatória para o impacto da morte, uma vez que não impedirá a dor da separação. Ele, porém, aumenta a capacidade de enfrentamento dessa realidade. Questões relacionadas à morte e ao luto, quando negadas ou limitadas à crença de que são inevitáveis e suportáveis, podem levar a consequências graves para o indivíduo e para a sociedade, gerando problemas psiquiátricos, doenças psicossomáticas e dificuldades de aprendizagem, dentre outros problemas (BROMBERG, 2000; FONSECA, 2004).

Rando (2000 apud FONSECA, 2004) divide o luto antecipatório em 6 dimensões que abordam os aspectos afetados na vida dos envolvidos nesse processo, a partir: 1) da perspectiva do paciente, familiares, amigos e cuidadores; 2) do fator tempo, relacionado ao passado, ao presente e ao futuro; 3) dos fatores

psicológicos, sociais e físicos que influenciam a elaboração do luto antecipatório; 4) das perdas ou traumas que originaram a necessidade de readaptações; 5) das condições de enfrentamento, enlutamento, interação, reorganização psicossocial, planejamento, balanço das demandas conflitivas, facilitação para uma morte apropriada; e 6) do contexto em que ocorre, seja no nível intrapsíquico, interacional com o doente, familiar e sistêmico.

O enlutamento permite o reconhecimento que a pessoa perdida realmente se foi e que são necessárias mudanças internas (psicológicas) e externas (comportamentais e sociais) para se adaptar à nova realidade. No caso do luto antecipado, perdas ocorridas no passado são relembradas quando a debilidade física do paciente aproxima-o da morte, levando o enlutado ao enfrentamento de outras perdas associadas relacionadas ao ente querido saudável que não existe mais e aos planos de vida futura que serão abandonados (FONSECA, 2004).

Segundo Weisman (1979, apud FONSECA, 2004), é possível promover a facilitação para uma morte apropriada por meio: a) do cuidado, oferecendo uma adequada ajuda e conforto aos sintomas físicos e um suporte psicossocial aos envolvidos; b) do controle, permitindo que o doente participe da administração e dos próprios cuidados, assim como nas decisões e no controle produtivo das pessoas íntimas; c) da compostura, mantendo uma disposição e um nível de emoção dentro dos limites perante o doente; d) da comunicação verbal e não verbal, identificando necessidades e permeando as relações entre o doente e seus familiares; e) da continuidade, protegendo a autêntica identidade do doente enquanto pessoa, principalmente nos estágios finais da vida; e f) da finalização, buscando resolver ou redefinir os problemas residuais quando situações não terminais são finalizadas.

Do ponto de vista sistêmico, o luto antecipatório permite à família que sofre o impacto da doença crônica em algum de seus membros, a manutenção do equilíbrio para assegurar o atendimento das necessidades do doente e seus familiares. Do ponto de vista social, há o distanciamento dos amigos pela dificuldade que estes têm de compreender a natureza de uma doença terminal e a ajuda que podem oferecer (Rando, 2000 apud FONSECA, 2004).

O luto antecipatório está sujeito a fatores psicológicos, interpessoais e socioculturais que, segundo Fulton e Gottesman (1980 apud FONSECA, 2004),

caracteriza-se por um complexo interjogo de fatores, tais como habilidades de enfrentamento, sentimento de culpa e responsabilidade pela condição terminal do paciente. O luto não é uma experiência privada, pois as relações estabelecidas entre a famíla, o paciente e a equipe de saúde podem facilitar ou dificultar a comunicação e a expressão de sentimentos. Não há uma institucionalização do luto antecipatório e tampouco são prescritas normas de comportamento. Fonseca (2004) afirma que “o desapego e a separação num luto antecipatório saudável não se referem ao doente no presente mas sim à experiência intrapsíquica na relação com um futuro que está por vir, onde a morte vai se aproximando cada vez mais” (p. 103).

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