CAPÍTULO V – PERCURSO METODOLÓGICO
3. Método Biográfico: Paradigma Intersubjectivo 136
Nesta perspectiva epistemológica, as histórias de vida são um mundo de representações e
experiências que habitualmente não integram um discurso público e que focam, sobretudo,
questões epistemológicas na construção e desconstrução das subjectividades explosivas,
(Ferrarotti, 1983). Com a finalidade de ouvir as vozes e os silêncios das vivências e da
construção de saberes, enfatizam-se as experiências e as representações sobre o vivido,
permitindo captar relações dialécticas entre subjectividade e objectividade, articulando com
a complexidade e a diversidade do comportamento humano.
As ciências sociais recorrem ao método biográfico há algumas décadas. Contudo, Ferrarotti
(1983), ao longo da sua argumentação na valorização das histórias de vida, consagra o
“valor ‘heurístico’” (idem, p. 17) através da “experiência humana” e do “vivido quotidiano”
(idem, p. 12-3), sendo no mínimo um “conhecimento a dois” (idem, p. 13), para dar ao
interlocutor o desejo e o prazer de falar de si, garantindo-lhe, para além do anonimato, o
seu “valor heurístico e pedagógico” (idem, p. 16).
Ferrarotti (1983) reconhece que a aplicação do método biográfico tem proporcionado
debates importantes no decurso do seu desenvolvimento, lutando pelo reconhecimento do seu
estatuto científico, enquanto método autónomo de investigação.
A produção de conhecimento, a partir das histórias de vida, resulta de um processo assente
no comprometimento e na cumplicidade entre narradoras e pesquisadora, articulando-se a
escuta activa e a valorização holística de cada pessoa biografada (Ferrarotti, 1983).
As questões da subjectividade, contida nas narrativas biográficas, como conhecimento
científico, estão fundamentadas na noção de praxis humana e na ideia da actividade
sintética que ela encerra, concluindo-se que toda a práxis humana revela as apropriações
dos indivíduos e o que fazem dessas relações e das próprias estruturas sociais, interiorizando-
as mas também desconstruindo-as.
A legitimidade do método apoia-se na ruptura com as formas tradicionais de produção de
conhecimento, constituindo-se as diferentes visões e narrativas de actores/as e autores/as
sobre a realidade em novas fontes de conhecimento.
Ferrarotti (1983) fundamentou a importância da renovação metodológica atribuída ao
método biográfico com a crítica às correntes positivistas, salientando a subjectividade dos
actores envolvidos. Ainda de acordo com este autor, o método biográfico tem a sua
autonomia, considerando-o um contributo relevante para conseguir uma renovação
metodológica, provocada pela crise generalizada de instrumentos heurísticos na área da
sociologia. Isto porque o autor considera que, num estudo, é importante ouvir e interpretar,
exercendo a crítica.
Também segundo Magalhães (2005), numa abordagem em que a história de vida é tomada
como metodologia fundamental, o enfoque coloca-se no papel do sujeito e nas
subjectividades e experiências pessoais. Sendo assim, relacionam-se com a realidade, com o
vivido, com o social e, seguindo Ferrarotti (1983) uma vez mais, são compostas por três
processos: “práxis totalizante”, “razão dialéctica” e a “subjectividade explosiva”.
A “práxis totalizante” diz respeito à relação entre a pessoa e o social, sendo que o Homem é
sempre um universo singular: será então o recurso à “razão dialéctica” que permite ao
indivíduo reunir o universal e o geral (a sociedade) apoiando-se no individual e no singular (a
pessoa) (Ferrarotti, 1983).
Nas palavras de Ferrarotti:
“ (...) apenas a razão dialéctica nos permite compreender cientificamente um acto,
reconstruir os processos que, de um comportamento, fazem a síntese activa de um
sistema social, de interpretar a objectividade de um fragmento de história partindo
da subjectividade não iludível de uma história individual. Só a razão dialéctica nos
permite reunir o universal e o geral (sociedade), apoiando-se no individual e no
singular (o homem e a mulher).” (1983, p 56)
Segundo Araújo (1990), a razão dialéctica possibilita articular o sistema social com a
biografia individual, daí a importância que, segundo esta autora, se deverá atribuir à leitura
das biografias, que devem ser lidas da frente para trás, de trás para a frente, na horizontal,
na vertical, na diagonal, ou seja, valorizando tudo - o particular e o subjectivo - isto porque
só assim será possível tentar compreender e não entrar numa lógica de verificação ou de
resolução.
Fala-se de subjectividade explosiva na medida em que se procura, como argumenta Araújo
(2004, p. 316):
“ (…) romper com os quadros de uma ciência das regularidades, das visões
oficializadas, que esconde e esquece as especificidades. As diferenças, as opressões
nos termos dos próprios agentes envolvidos (… ) e porque se trata de uma procura
das vozes e espaços para as vozes marginalizadas, diferentes, anteriormente
silenciadas, possivelmente de denúncia de opressões.”
As histórias de vida são consideradas por Ferrarotti (1983) o instrumento metodologicamente
“mais fecundo”, pois originam várias interpretações que rompem com as metodologias
quantitativas em que tudo é sugerido e em que contamos com o que pretendemos ver
respondido. Também Morais (2008, p.182) refere que “(…) fazer histórias de vida/narrativas
biográficas é um trabalho de construção de tessitura de sentidos sobre elementos constitutivos da
vida relembrados por quem os viveu, nos seus próprios termos”.
Segundo Ferrarotti (1983, p.3-1) “A história de vida como método autónomo implica
necessariamente uma historicidade ‘não historicista’. Noutros termos, implica uma ruptura com a
concepção de história enquanto sucessão diacrónica em direcção à pretendida verdade de um
sentido geral detido pelas elites que serão os depositários exclusivos do valor.”
Ferraroti (1983) e Araújo (1990) estabelecem, nas histórias de vida, conceitos como
subjectividade explosiva e mundo dos valores e do vivido, cuja relevância metodológica reside
no que nos permitem interpretar e compreender do vivido e das experiências individuais que
se projectam do particular para o colectivo. Como afirma Magalhães (2005), a
subjectividade “explosiva” emerge nas ciências sociais dando voz ao sujeito que deixa, nesta
postura epistemológica, de ser objecto de estudo.
Numa atitude epistemológica de crítica ao positivismo, esta metodologia de investigação não
se preocupa com a definição de leis universais, validade estatística, mas sim, com testemunhos
que nos fornecem uma perspectiva, uma ou várias informações sobre acontecimentos,
demonstrando a subjectividade dos actores envolvidos, ou seja, dos analisados e do analista,
constituindo um contributo relevante para aquele problema e para aquela pessoa (Ferrarotti,
1983; Araújo, 1990; Magalhães, 2005). Distancia-se completamente do objectivo positivista
em que a implicação do investigador na investigação está, habitualmente, escondida,
pressupondo a passividade dos sujeitos, aqui considerados objectos de análise.
Diferentemente, nesta abordagem epistemológica, os sujeitos são vistos como participantes
activos e a interacção com o investigador/a é conceptualizada, da mesma forma, como
interacção humana.
Actualmente, existe uma diversidade de bibliografia em torno das histórias de vida e
narrativas biográficas que dão visibilidade a esta corrente de investigação que já tem
algumas obras realizadas. No contexto português podemos destacar: Chinita (1983),
Joaquim (1985), Magalhães (1998; 2005), Fontoura (1992), Nóvoa (1992), Araújo (1993,
1995, 2000), Neves Cardoso (1996), Sarmento (2002), Gorjão (2002).
Da produção de conhecimento segundo o paradigma intersubjectivo, a/o investigador(a)
compromete-se a compreender (verstehen), interpretar e desconstruir a experiência, para
voltar a construir, partindo da óptica do sujeito, constituindo-se uma oportunidade e um
desafio o desenvolvimento de capacidades e habilidades necessárias à percepção dos
significados da narrativa e dos silêncios. Importa é que o/a pesquisador(a) não fale pela voz
do/a outro/a, que não silencie as suas afirmações, que não esconda as diferenças entre os
intervenientes no processo de produção de conhecimento.
Intertextualidades
Ao considerarmos que os relatos têm relação com a realidade, são várias as questões que se
levantam quando nos centramos na escrita de uma história de vida, nomeadamente o
carácter textual, isto é, o dilema de se saber se as narrativas biográficas são apenas
textualidades ou se constituem algumas referências sobre a realidade exterior ao texto.
Sobre esta questão, Stanley (1993) refere que a autobiografia - sendo um processo
interactivo entre investigadora e narradora - vai-se construindo, pois as narradoras contam a
sua história de vida na primeira pessoa, mas como a mediadora é a investigadora e é ela
que tem o trabalho construtivo de criar o produto que nos é apresentado, então é também
biografia porque fica consubstanciada aos diversos diálogos estabelecidos para a
construção da narrativa. Nesta construção textual crítica, a autora faz referência a Roland
Barthes, ao “o self que escreve”, “o self que foi” e “o self que é” (Stanley, 1993, p. 61),
defendendo a necessidade da sua distinção.
Da mesma forma, memória e narração entram no centro de qualquer reflexão sobre histórias
de vida e narrativas biográficas, assim como a relação mediada pela escrita da identidade
do self com a estrutura social e a mudança social. No contar das suas experiências, a/o
narrador/a vai recordando e reconstruindo a sua visão sobre o vivido. Assim, as formas de
ser pessoa e as ideias acerca do que é ser pessoa são lidas, apropriadas e apreendidas
diferentemente, em diferentes épocas, sendo que as narrativas biográficas podem dar conta
destas representações sociais (Steedman, 2000).
Reconhece-se, assim, que as narrativas, para além da textualidade, se relacionam com a
realidade; realidade esta que se não for de factos objectivos da vida, sê-lo-á, pelo menos,
de suas subjectividades (Stanley, 1993). A mesma autora afirma ainda, a propósito da
textualidade, que, no processo da construção das histórias de vida, as participantes
constituem-se como sujeitos históricos, participantes activas na construção da “política da
vida”, explicitando este processo com o termo women made selves (Steedman, 2000).
As histórias de vida - mais concretamente a autobiografia no tocante ao significado na
construção do sujeito e das subjectividades - foram criticadas por autores como Smith (1993),
dada a dificuldade de não integrarem a filosofia que pressupõe uma master narrativa,
arquitectando o sujeito universal (Homem), integrando os cânones literários. No entanto,
outras perspectivas têm valorizado esta metodologia, exactamente porque proporciona um
conhecimento mais aprofundado dos silenciados da História, entre os quais se incluem as
mulheres.
Na tentativa de contornar a aparente dicotomia entre ficção e factos - e assentando numa
perspectiva em que a subjectividade e a experiência se entrelaçam de formas variadas e
complexas (Lewis, 1993; Weedon, 1989 cit in Magalhães, 2005) - assume-se, de alguma
forma, que o que as mulheres contam é a “realidade”; se não é “realidade” de factos
objectivos das suas vidas, é pelo menos “realidade” das suas subjectividades (Magalhães,
2005).
Segundo Steedman (2000, p. 25), se estamos interessados/as nas autobiografias, então
trabalhamos com dois pressupostos tácitos:
"O primeiro é que, de alguma forma, a produção de formas escritas tem algo a ver
com a produção das subjectividades; e o segundo, de que este é um processo
voluntário; que existe ali um ímpeto para contar o self, que vem de dentro, e que é o
próprio processo da construção do self”.
O pensamento e a curiosidade humanos relativamente à origem, estrutura, métodos e
validade do conhecimento são factores que contribuem, decisivamente, para a sua
actualização e renovação. Na prática clínica, as intervenções repetem-se sem que se pare e
se repense as formas de as particularizar, redimensionar e confrontar. Assim, é necessário
parar e repensar. É segundo este predicado, traduzido num apelo ao espírito reflexivo, que
subsistem as questões centrais do estudo.
Neste sentido, ao compreendermos esta conceptualização, poderemos adaptar, criar,
ordenar e mesmo reforçar os conceitos já existentes, numa busca constante por uma conduta
de excelência e por um ideal de cuidados de enfermagem especializados, eficientes e de
qualidade, em Saúde Materna e Obstétrica.
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Menopausa e sexualidade : o (des)prazer de envelhecer
(páginas 137-142)