CAPÍTULO IV DE MULHER EM MULHERES 108
1. Diferença, discriminação, opressão 108
1.2. Quando a discriminação e a opressão são leis 112
Como já referimos, a legislação sobre as mulheres foi muito discriminatória durante todo o
Estado Novo, apesar das lutas das feministas da primeira vaga, de que falaremos mais à
frente.
Até aos anos 50, a sociedade era predominantemente rural e nos anos 60, apesar do
aumento do crescimento económico, a mulher permaneceu como mãe e esposa nas tarefas de
manutenção do lar e de educação dos filhos, mantendo-se um grande desfasamento entre as
necessidades sociais e económicas e os modelos tradicionais da família.
Mesmo na década de 60 - quando em todo o mundo civilizado se sentiam ventos de
modernidade e de mudança nas relações sociais entre homens e mulheres, entre velhos e
novos - Portugal continuava enfeudado nos princípios Deus, Pátria, Autoridade, Família.
Em 1966, o Código Civil
15voltou a valorizar a figura legal do chefe de família, sendo este o
representante, o responsável e o decisor soberano em todos os actos e decisões da vida
15 A versão original do Código Civil Português, de 1966, atribuía à mulher um estatuto inferior ao do homem. O
artigo 1674.º reconhecia ao marido a qualidade de chefe de família, outorgando-lhe o poder de decisão sobre a generalidade dos assuntos da vida conjugal. Nos termos do artigo 1678.º, n.º 1, cabia-lhe, em regra, a administração dos bens do casal, incluindo os bens próprios da mulher. Por outro lado, de acordo com o artigo 1677.º, à mulher incumbia o governo doméstico e, à luz do estipulado no artigo 1881.º, ao homem competia especificamente, e como chefe de família, defender, representar e emancipar os filhos, bem como orientar a sua
conjugal do casal. Citando Gorjão (2002, p.98), “Em certa medida, a divisão corporativista
hierarquizada da produção económica e a divisão sexualmente hierarquizada da produção
doméstica equivaliam-se no mesmo fim de integração social dos cidadãos (…)”.
Como já afirmámos, predominava a lógica do patriarcado
16no seio dos casais. As mulheres
estavam circunscritas à esfera privada e ocupavam um lugar de dependência económica,
cultural e social do marido, isto até à década de 70. A partir de meados dos anos 70, um
maior número de mulheres passou a ter uma actividade profissional, mas, segundo Gorjão
(2002), destas, a percentagem de mulheres casadas era de 36,7% e de solteiras de 53,7%,
o que significa que as mulheres que trabalhavam fora da esfera privada eram, na maioria,
solteiras.
Na década de 60, a par deste crescimento do trabalho das mulheres, surgiu, por outro lado,
o surto da emigração e a guerra colonial que reduziram a mão-de-obra masculina e que
originaram as alterações nas relações entre homens e mulheres.
No entanto e, de acordo ainda com Gorjão (2002), mantiveram-se inalterados o
conservadorismo social, os modelos conjugais e a vivência da sexualidade. Falamos das
mulheres de classe média e alta, pressionadas a serem conservadoras, que não se podiam
divorciar, que não podiam tomar a pílula, que se resguardavam de desejos, que mantinham
um casamento para toda a vida, assente na (in)fidelidade, conforme tinham jurado no dia do
casamento católico (o único socialmente aprovado), porque a maternidade era considerada o
maior dos prazeres, pois as mulheres eram vistas como predestinadas para obedecer.
Para Gorjão (2002), o noivado era “o primeiro passo” para se constituir uma “unidade
doméstica”, regulado por normas rígidas de “conduta moral e de honra”.
A mesma autora refere que a identidade feminina, a domesticidade e a maternidade eram
valores de referência para as expectativas sociais que as distinguiam dos homens. Assim,
estas identidades permitiram, de acordo com o desempenho individual de cada mulher,
valer-lhes o valor da sua visibilidade no privado, quanto ao papel de mãe e relativamente à
educação dos filhos.
O Estado Novo compreendeu um período em que a oposição feminina era feita em duas
vertentes, segundo Gorjão (2002), uma “metapolítica” e outra “política”: a primeira numa
16 O Dicionário da Crítica Feminista define «patriarcado» como um termo que designa a forma como os
privilégios socialmente atribuídos aos homens significam, necessariamente, a opressão daqueles a quem os mesmos privilégios são negados, isto é, às mulheres. Optamos por este termo, neste contexto.