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4 LIMITAÇÕES AO ATIVISMO JUDICIAL NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE

4.4 Limites ao ativismo judicial em sede de políticas públicas

4.4.4 Mínimo existencial

A construção da noção de que devem existir condições mínimas para que se possa viver com dignidade encontra sua origem na Alemanha, notadamente nos trabalhos preparatórios de elaboração da Lei Fundamental de 1949 e, após essa data, também na doutrina, na práxis legislativa, administrativa e jurisprudencial106.

Otto Bachof foi o primeiro a sustentar a necessidade de se reconhecer um direito subjetivo à garantia de recursos mínimos para uma existência digna, em atendimento ao princípio da dignidade da pessoa humana, o qual “não reclama apenas a garantia da liberdade, mas também um mínimo de segurança social, já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria dignidade da pessoa humana ficaria sacrificada107”.

Assim é que uma vida digna não deve, nem pode corresponder à existência de simples condições para a sobrevivência, de atendimento às necessidades fisiológicas. Vai muito além. Mas também está intimamente associada à ideia reserva do possível, pois exige considerações relativas à esfera econômica e também concernentes às expectativas e necessidades do momento.

Nesse sentido, Ingo e Figueiredo constatam:

A primeira diz com o próprio conteúdo do assim designado mínimo existencial, que não pode ser confundido com o que se tem chamado de mínimo vital ou um mínimo de sobrevivência, de vez que este último diz com a garantia da vida humana, sem necessariamente abranger as condições para uma sobrevivência física em condições dignas, portanto, de uma vida com certa qualidade. Não deixar alguém sucumbir à fome certamente é o primeiro passo em termos da garantia de um mínimo existencial, mas não é – e muitas vezes não o é sequer de longe – o suficiente. Tal interpretação do conteúdo do mínimo existencial (conjunto de garantias materiais para uma vida condigna) é a que tem – a despeito de divergências sobre a extensão do conteúdo da garantia – prevalecido não apenas na Alemanha, mas também na doutrina e jurisprudência constitucional comparada, notadamente no plano europeu, como dá, conta, em caráter ilustrativo, a recente contribuição do Tribunal Constitucional de Portugal na matéria, ao reconhecer tanto um direito negativo quanto um direito positivo a um mínimo de sobrevivência condigna, como algo que o Estado não apenas não pode subtrair ao indivíduo, mas também como algo que o Estado deve positivamente assegurar, mediante prestações de natureza material.108

Há diversas maneiras de se realizar o mínimo existencial, cabendo precipuamente ao legislador disciplinar as prestações, o montante, as condições bem como outros aspectos dessa garantia. O Judiciário vai ser chamado a atuar quando o legislador se omitir na matéria ou agir com desvio de finalidade109, isto porque a garantia do mínimo existencial (este

106 SARLET, FIGUEIREDO, op. cit., p. 19. 107

SARLET, FIGUEIREDO, op. cit., p. 19. 108 SARLET, FIGUEIREDO, op. cit., p. 22. 109 SARLET, FIGUEIREDO, op. cit., p. 23

considerado direito, princípio e garantia fundamental) independe de expressa previsão legal e constitucional para ser reconhecida, visto que decorre justamente da proteção à vida e da dignidade da pessoa humana, com os quais guarda relação direta. A dignidade da pessoa humana, portanto, só estará assegurada quando se puder usufruir de uma vida saudável110.

Outro aspecto, no entanto, ainda precisa ser levado em conta.

É impossível se estabelecer previamente e de modo taxativo os elementos que comporiam esse suposto mínimo existencial, pois tal compreensão necessita de uma análise que leve em consideração as necessidades individuais de cada pessoa. Isso não afasta, por si só, um conjunto de conquistas já alcançadas, as quais “em princípio e sem excluírem outras possibilidades, servem como uma espécie de roteiro a guiar o intérprete e de modo geral os órgãos vinculados à concretização dessa garantia do mínimo existencial111.

Em outros termos, quer-se dizer que o mínimo existencial deve ser garantido pelos magistrados no caso concreto. Mas essa garantia não está isenta de limitações, porque, conforme já se demonstrou, embora não se possa estabelecer um rol de quais direitos ou garantias comporiam um mínimo existencial, há parâmetros traçados pelo legislador e pela própria jurisprudência que permitem assegurar com relativo nível de certeza quais prestações comporiam esse mínimo existencial.

Ingo e Figueiredo elencam alguns parâmetros. Primeiro a própria dimensão fática que se apresenta ao magistrado, o qual, levando em conta os elementos probatórios juntados no curso do processo e as necessidades individuais, vai poder estabelecer em que consistiria, caso a caso, o mínimo exigido para garantir uma vida saudável. Além disso, a efetiva necessidade deverá ser levada em consideração, sempre pautada pelos princípios da solidariedade, subsidiariedade e da proporcionalidade. Por fim, é preciso se considerar que o direito à isonomia não significa necessariamente prestações iguais, mas a garantia de ser tratado como igual112.

Assim é que os autores concluem:

Por isso, a decisão acerca da garantia do mínimo existencial muitas vezes demandará um exame mais acurado da pretensão formulada em juízo, pois nem sempre se estará diante de tratamento e medicamentos eficientes e seguros, podendo em muitos casos ser temerária a extrapolação das decisões técnico-científicas constantes dessas diretrizes. Com isso, não se está evidentemente a concordar com o entendimento de que não pode ser imposto ao Estado medicamento ou procedimento muito oneroso, da mesma forma como não está a endossar decisões judiciais ou doutrina que reconheçam apenas a possibilidade de exigir judicialmente do Estado o fornecimento de bens ou serviços previstos na legislação ou, como no caso dos

110

SARLET, FIGUEIREDO, op. cit., p. 25. 111 SARLET, FIGUEIREDO, op. cit., p. 26. 112 SARLET, FIGUEIREDO, op. cit., p. 44-45.

medicamentos, em protocolos provados pelo Ministério da Saúde ou pelas Secretarias de Saúde dos Estados ou Municípios. Importa não olvidar que as exigências do mínimo existencial podem ser comuns a uma comunidade de pessoas, mas o remédio deve ser adequado ao mal específico de cada um e, de resto, ser adequado ao tratamento naquele caso, isto sem adentrar a questão da atualização periódica dos protocolos, entre tantos outros aspectos que poderiam ser colacionados113.

A legislação pátria é consentânea com a ideia de mínimo existencial e reserva do possível.

Veja-se, por exemplo, o artigo 16 da Lei de Responsabilidade Fiscal (lei complementar nº 101 de 4 de maio de 2000), em que se aduz que a criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado de estimativa do impacto orçamentário-financeiro e declaração do ordenador da despesa de que o aumento tenha adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual, além da compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.

Dessa forma, toda gasto estatal deve corresponder a um objetivo previamente definido. O gestor público não pode ser irresponsável e exigir a existência de recursos para determinada área, sem que se estabeleça anteriormente onde tais recursos serão aplicados, em quais despesas mínimas e suficientes para realizar certas prestações estatais, a exemplo das políticas públicas.

A reserva do possível, portanto, repise-se, só será argumento válido quando restar comprovado que a restrição da aplicação de recursos públicos na realização de direitos sociais se deu diante de um conflito de princípios, e desde que atendidos os requisitos da proporcionalidade e do mínimo existencial para uma vida digna.