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4 LIMITAÇÕES AO ATIVISMO JUDICIAL NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE

4.4 Limites ao ativismo judicial em sede de políticas públicas

4.4.3 A reserva do possível

Uma vez que, para assegurar os direitos, o Estado deve manter a ordem pública, permitindo simultaneamente a coexistência de direitos, é inegável que toda a movimentação desse aparato envolve gastos.

Trata-se de uma constatação fática.

O Estado, no entanto, não pode gastar mais do que arrecada, sob pena de não se sustentar e não realizar direito algum. E todos esses fatores dependem não só do direito, mas da economia e das finanças públicas.

Trata-se da chamada reserva do possível, a qual encontra suas origens na doutrina constitucionalista alemã da limitação de acesso ao ensino universitário de um estudante

(“numerus-clausus-Entscheidung”). Nesse sentido, ela deve ser entendida como limite ao poder do Estado de concretizar efetivamente direitos fundamentais a prestações em decorrência de limitações fáticas98.

Ingo Sarlet aponta que a reserva do possível tem uma dimensão tríplice que envolve:

a) a efetiva disponibilidade fática dos recusos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas, administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade99.

A reserva do possível consiste, então, numa limitação jurídica e fática dos direitos fundamentais. Mas não só isso, Ingo aponta ainda que ela é um mecanismo de sua garantia:

...por exemplo, na hipótese de conflito de direitos, quando se cuidar da invocação – desde que observados os critérios da proporcionalidade e da garantia do mínimo existencial em relação a todos os direitos fundamentais – da indisponibilidade de recursos com o intuito de salvaguardar o núcleo essencial de outro direito fundamental100.

Dentro dessa análise, é preciso se estabelecer uma primeira premissa, a de que o direito à saúde, assim como outros direitos, especialmente o direito à vida, não é absoluto, de modo que em determinadas hipóteses poderá ser restringido, porque isso depende do que se pode exigir judicialmente do Estado e dos limites materiais para realização desses direitos.

É preciso, ainda, levar-se em consideração a avaliação de fatores como o nível de desenvolvimento econômico, a situação econômica concreta e a capacidade financeira de determinada sociedade101.

Há que se ressaltar, no entanto, que a reserva do possível, por si só, não é argumento suficiente para inviabilizar ou mesmo negar a efetivação de direitos fundamentais sociais.

98 CALIENDO, Paulo. Reserva do possível, direitos fundamentais e tributação. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (org.) Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2008. p. 200.

99 SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (org.) Direitos

fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2008. p. 30.

100 SARLET, FIGUEIREDO, op. cit., p. 30 101 KRELL, op. cit., p. 52-53.

O Judiciário, portanto, como regra, não é impedido de determinar a alocação de verbas para o cumprimento dos direitos sociais.

A exceção, e é aí que se encontra a limitação, se dá diante da demonstração fática, comprobatória da impossibilidade de alocação de recursos para o atendimento das prestações sociais.

Não se negam as limitações, porque elas existem, mas somente enquanto faltarem recursos e isso for efetivamente provado, pois o mínimo existencial se sujeita à “demonstração e discussão com base em elementos probatórios, notadamente no que diz com as necessidades de cada um em cada caso, assim como em relação às alternativas efetivamente eficientes e indispensáveis de tratamento”102

É assim possível perceber que todos os direitos, sejam de defesa ou sociais, demandam prestações positivas e negativas, o que certamente implica em custos. Isso significa que a definição quanto à aplicabilidade, à prevalência ou à preferência desses direitos não pode se basear na ideia de que uns custam e outros não.

A dúvida surge quando, diante da inexistência de recursos suficientes para o atendimento de todas essas demandas, precisa-se estabelecer quais os critérios que deverão ser levados em consideração para se decidir qual direito será ou não realizado.

A resposta para essa indagação passa pela compreensão de que os recursos são limitados. Justamente por isso, eles devem ser aplicados prioritariamente na realização dos fins considerados essenciais pela Constituição. O que restar terá sua destinação dada pelas opções políticas que se fizer em determinado momento.

Em face do choque de direitos, portanto, a reserva do possível se mostra como um limite negativo (restrição de um direito em detrimento do outro). Assim, quando alguma prestação importar em prejuízo à coletividade, ela deverá deixar de ser satisfeita, em face da violação de outros direitos. Nesse sentido diante de uma prestação que se afigure como irrazoável e desproporcional, inviabilizando outros direitos, ela deve atuar como limite.

Mais do que isso, e avançando na temática, a questão envolve ainda outro aspecto: a possibilidade jurídica de disposição, já que o Estado deve ter capacidade jurídica de dispor e não apenas ter os recursos.

Trata-se das chamadas escolhas trágicas (tragic choices).

Cardoso coloca a questão dos dilemas que surgem quando da ocorrências das chamas “escolhas trágicas” nos seguintes termos:

Outro dilema que surge com a necessidade das escolhas trágicas: deve o Poder Público fornecer um tratamento ou um medicamento de alto custo, se o valor desembolsado em 20 meses, por exemplo, é suficiente para construir um posto de saúde? Ainda, pode-se deferir, em antecipação de tutela, o transplante imediato de um órgão ao autor, sem ter ciência plena de suas condições de saúde, nem de

quantas pessoas aguardam na “fila” do SUS esse mesmo transplante? Por outro lado,

pode-se negar esse direito a uma pessoa com alto risco de morte (mesmo sem saber se existem – ou não – pessoas na mesma condição, necessitando do mesmo órgão)? Ainda, tendo em vista que a saúde não é a única política social a ser efetivada pelos órgãos públicos, pode o direito de um particular ser satisfeito em detrimento de outras políticas públicas (tais como a previdência social e a educação)? Em virtude desse questionamento, deve ser estritamente respeitada a previsão orçamentária para a saúde pública aprovada pelo Legislativo (diante da natural necessidade de se fixar um limite, para abranger todos os fins do Estado), ou pode haver um redi- recionamento dos gastos públicos? Sob essa perspectiva, como efetivar o direito à saúde? Há viabilidade em fornecer qualquer tipo de medicamento ou tratamento, independentemente do custo (ou mesmo de sua utilidade ou eficácia no tratamento da doença) a todas as pessoas? Relembrando a afirmação de Michel Villey (2007, p. 5-6), haveria, só com o direito de todo francês ‘à Saúde’, com o que esvaziar o orçamento total do Estado francês, e cem mil vezes mais!.103

Nesse sentido, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade devem sempre servir de critério para a decisão judicial. Em razão disso, para Ingo Sarlet, não se mostra razoável, por exemplo, compelir o Estado a fornecer ou custear medicamentos e tratamentos experimentais, assim compreendidos aqueles não aprovados pelas autoridades sanitárias competentes104.

No mesmo sentido, aduz Marques Júnior:

Por outro lado, o jurisdicionado não pode exigir do Estado prestações supérfluas, pois isto escaparia dos parâmetros de proporcionalidade e de razoabilidade, não sendo justa a exigibilidade dessa categoria de ônus pelos cofres públicos. De outra banda, qualquer pleito que vise a fomentar uma existência digna e minimamente decente não pode ser encarado como desmotivado, pois garantir a dignidade humana é um dos objetivos fundantes do Estado Democrático de Direito no arquétipo traçado pelo legislador constituinte originário da CF/88. Por este motivo, a teoria da reserva do possível cede espaço ao princípio do mínimo existencial105.

Assim, a reserva do possível não deve servir como barreira intransponível de realização de direitos fundamentais, mas como ferramenta de garantia também dos direitos sociais de cunho prestacional, em razão notadamente dos princípios constitucionais da máxima eficácia e efetividade desses direitos. Diante disso, a questão do mínimo existencial, objeto de estudo do próximo tópico, adquire grande importância.

103 CARDOSO, Oscar Valente. Questões controversas sobre a determinação judicial de fornecimento de

medicamentos excepcionais pelo Poder Público. In: Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 45, p. 46-55, abr./jun.

2009. 104

SARLET, FIGUEIREDO, op. cit., p. 46.

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