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2.5 Potenciais pseudonewtonianos

4.1.3 Margem interna do disco e ISCO

O truncamento do disco na ISCO é uma hipótese em geral assumida, e utilizada em cál- culos, por exemplo de medição de spin de buracos negros citados na introdução. Essa hipótese é obviamente válida no modelo padrão de discos finos, porém, sua validade para discos de acreção realísticos tem sido objeto de debate [65]. O modelo de disco padrão no uso de ajuste espectral é o modelo de disco fino de Shakura e Sunyaev [37], que é um modelo hidrodinâmico Newtoniano que simplifica o problema do disco de acreção através das hipóteses de que o disco seja geometricamente fino, estacionário e axissimétrico, e

ainda aplica o que hoje é conhecida como prescrição de viscosidade α. Resolvendo as equações de conservação da hidrodinâmica usando essas hipóteses, ele nos fornece expres- sões analíticas para o padrão radial de dissipação de energia nesses discos. Este é um modelo simples no qual a matéria tem somente velocidade azimutal Kepleriana, apesar de que perto do buraco negro o disco deva ter velocidade radial para que haja acreção. Apesar disso, o modelo tem tido sucesso em ajustes espectrais durante décadas, e é a base para modelos mais avançados que estão sendo desenvolvidos. No entanto, questões relativas à região de transição e à margem interna do disco não podem ser corretamente abordadas no modelo padrão de discos finos de Shakura-Sunyaev por causa das duas sim- plificações matemáticas cruciais que esse modelo faz: o momento angular específico do disco L(r) deve ser Kepleriano por todo o disco, L(r) = Lk(r), e que o aquecimento por viscosidade é equilibrado pelo resfriamento radiativo. Em regiões mais externas do disco,

r  rms, essas hipóteses são certamente aceitáveis no sentido de que muitas propriedades do disco, em particular o seu espectro, não dependem muito delas. No entanto, elas fa- lham completamente na região mais interna, r < rms, onde elas fornecem uma descrição qualitativamente errada do fluido.

Essas e outras questões relativas à região de transição onde o fluxo de matéria acretada muda seu caráter de quase circular para quase em queda livre, foram estudadas exten- sivamente e muitas delas respondidas nos anos 70 e 80 por dois grupos de pesquisa: o grupo de Warsaw, liderado por Bohdan Paczyński, e pelo grupo de Kyoto, liderado por Shoji Kato.

Pesquisadores em Warsaw e Kyoto formularam muitos teoremas e fórmulas analíticas exatas, simples, e práticas, que são praticamente independentes da natureza da dissipação, processos radiativos e viscosidade. Eles deram uma descrição geral da parte mais interna de um disco de acreção ao redor de um buraco negro, isto é, da região localizada entre o horizonte do buraco negro e a ISCO. Desenvolvimentos posteriores em hidrodinâmica e magneto-hidrodinâmica de discos de acreção confirmaram esses resultados. Isso inclui modelos numéricos detalhados de discos de acreção com luminosidade supercrítica (taxa de acreção maior que a de Eddington), opticamente grossos e geometricamente grossos ou delgados, e ADAFs subcríticos, opticamente finos e geometricamente grossos (veja Kato

et al. [66] para uma revisão desses modelos).

Abramowicz e Kato [67] fizeram um sumário curto, útil e conveniente dos trabalhos dos grupos de Warsaw e Kyoto, com citações de resultados particulares. Repetirei aqui três pontos do seu sumário. Todas as afirmações abaixo são teoremas gerais provados e confirmados posteriormente por simulações numéricas (veja Igumenshchev et al. [68] para referências descrevendo os resultados dessas simulações).

1. Dinâmica: na parte mais interna do disco o momento angular da matéria acretada não é Kepleriana. A dinâmica do fluxo depende sobretudo da magnitude do mo-

mento angular nessa região: fluxos com momento angular baixo tem propriedades muito diferentes daqueles com momento angular alto.

O fluxo com baixo momento angular, do tipo Bondi, tem L(r) < Lms = Lk(rms). A força centrífuga não é importante nessa região, e o fluxo está longe do equilíbrio mecânico. Linhas de fluxo não são círculos fechados, e as propriedades do fluxo são similares às do caso bem conhecido de acreção esférica. Para fluxos do tipo Bondi, o conceito de margem interna perde sua utilidade: nesse tipo de fluxo acretivo simplesmente não existe um raio característico que possa ser chamado de margem interna.

Os fluxos com momento angular alto tem L(r) > Lms. A parte mais externa do fluxo, isto é, o disco propriamente dito, está próximo do equilíbrio mecânico determinado pelas forças gravitacional, centrífuga e da pressão. O potencial efetivo Φef (potencial gravitacional total mais o potencial centrífugo) tem dois extremos em posições r

dadas pelas duas soluções da equação L(r) = Lk(r), ou seja, o raio r∗ em que o

momento angular L(r∗) da matéria se iguala ao valor Kepleriano correspondente.

Note que, como a distribuição relativística de momento angular Kepleriano tem um mínimo em rms e que estamos interessados no caso L(r) > Lms, devem haver duas dessas posições em ambos os lados de rms. A primeira, r= r0 > rms, corresponde a um mínimo de Φef(r, 0) no plano equatorial z = 0 (que pode ser definido como sendo o “centro” do disco). A outra, r= rcusp< rms, define o lóbulo de Roche, ou seja, a superfície equipotencial Φ(r, z) = const = Φ(rcusp, 0) que cruza a si mesma ao longo do círculo (r, z) = (rcusp, 0). Dentro do disco, isto é, para r > rcusp, a matéria se move lentamente em direção ao centro devido à ação de torque devido à viscosidade. Para r < rcusp ela vai para dentro muito rápido devido à ausência de um estado de equilíbrio, dado que a sustentação centrífuga é insuficiente. Essa é uma situação similar à do extravasamento do lóbulo de Roche, mais conhecido no contexto de binárias próximas.

Portanto, na região próxima à posição da cúspide, r = rcusp, o fluxo muda seu caráter de quase circular para quase em queda livre, e por essa razão, a cúspide representa exatamente o significado físico crucial de uma “margem interna” do disco. Uma outra possibilidade seria o raio sônico rsonic, onde a velocidade radial do fluxo muda de sub para supersônica. O raio sônico é ligeiramente mais próximo do buraco negro que a cúspide, rmb< rsonic< rcusp < rms.

2. Viscosidade e dois tipos de fluxo: para fluxos acretivos estacionários que são des- critos pelo modelo padrão de Shavkura-Sunyaev assintoticamente, isto é, para raios grandes, e que tem viscosidade dada pela prescrição α padrão, o valor do momento angular na parte interna do disco, expresso em unidades adimensionais de Lk(rms),

depende de α e da taxa de acreção ˙M .

Para qualquer valor de ˙M há um valor crítico αcrit tal que para α > αcrit o fluxo é do tipo Bondi, enquanto que para α < αcrit o fluxo é do tipo de disco. Para taxas de acreção baixas, muito subcríticas, αcrit < 0.1.

3. Localização da margem interna e eficiência: assumindo a “condição de torque nulo na margem interna”, isto é, que o torque dado pela viscosidade não pode agir através do horizonte do buraco negro, a localização da cúspide é diretamente conectada com a eficiência da acreção. A eficiência se iguala a menos a energia orbital de ligação na margem interna dividida pelo quadrado da velocidade da luz η = −Ek(rin)/c2. Em particular, para discos de acreção que são radiativamente ineficientes η ≈ 0, ou seja, para discos grossos, discos delgados e ADAFs, a margem interna se aproxima da localização da órbita circular Kepleriana marginalmente ligada rmb, porque η(rmb) = 0.

Esses resultados fundamentais dos grupos de Warsaw e Kyoto foram revisados muitas vezes, também em vários livros texto e monografias sobre teoria de acreção (Frank, King e Raine [40]; Kato, Fukue e Mineshige [66]; Abramowicz, Bjornsson e Pringle [69]). Alguns deles se enquadram entre os resultados mais citados em teoria de discos de acreção em buracos negros.

Em suma, é pouco provável que a margem mais interna de um disco de acreção coincida com a posição de sua órbita Kepleriana circular marginalmente estável rms. No entanto, esse fato é uma forte motivação ao estudo de modelos além do modelo padrão de discos finos, em particular, de discos grossos de acreção. O raio mais pertinente nesse caso, que pode ser identificado com a margem interna do disco, é o raio da cúspide ao invés do raio da órbita marginalmente estável. Ainda assim, uma análise do comportamento da ISCO nesses modelos é importante pois é óbvio que ambas as órbitas estão relacionadas.