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4.3 Formulação Newtoniana

4.3.1 Simplificações

As equações de movimento de um fluido ideal são compostas pela equação da continuidade (3.9), equação de Euler (3.13) e equação do movimento adiabático (3.16) e foram descritas no capítulo3. Em nosso modelo de discos grossos elas serão simplificadas pela hipótese de que o disco seja uma estrutura estacionária, em equilíbrio hidrodinâmico, e com simetria axial. Adotando um sistema de coordenadas cilíndricas (r, z, ϕ) com eixo z coincidente com o eixo de rotação do fluido (eixo de simetria), nenhuma quantidade física dependerá explicitamente da coordenada temporal t (devido à estacionariedade) e nem da coordenada

azimutal ϕ (devido à simetria axial). Dessa forma, qualquer quantidade física q será expressa por uma função apenas de r e z, q(r, z).

De acordo com as condições acima, a componente ϕ da equação de Euler e a equação do movimento adiabático podem ser escritas como

~

u · ~∇L = 0ur∂rL + uz∂zL = 0 (4.35)

~

u · ~∇S = 0ur∂rS + uz∂zS = 0 (4.36) respectivamente, com L = ruϕ sendo o momento angular específico e S a entropia es- pecífica. Se temos um fluido estacionário axissimétrico sem dissipação e ur e/ou uz não nulos, as equações acima nos dizem que as superfícies de nível de S e L coincidem (a não ser que L = const ou S = const) e uma relação S = S(L) pode ser estabelecida. Mas se ur = uz = 0, então as equações acima são automaticamente satisfeitas, e portanto as superfícies de S e L não necessariamente coincidem.

Quando o fluido é isentrópico (S = const por todo o fluido) a equação (4.36) é satis- feita, e a distribuição de L é independente de S, mesmo se ur e/ou uz forem não nulos, mas L deve obedecer à condição (4.35). Grande parte dos modelos de discos grossos usam uma equação de estado politrópica em conjunto com a condição de isentropia.

Modelos plausíveis de discos grossos com superfícies de S e L coincidentes já foram construídos (e.g., Paczynski e Abramowicz [76]) usando uma relação do tipo S = S(L). Isso pode parecer excessivamente restritivo, porém deve-se notar que discos grossos são intermediários entre discos finos e acreções esféricas e podem ter ur e uz não nulos com valores de α (constante de viscosidade) extremamente pequenos.

No entanto, na medida em que as velocidades não azimutais são pequenas com relação a uφ, e essa é uma condição chave em discos grossos [77], as superfícies de S e L não necessariamente coincidem. Dessa forma, na aproximação ur = uz = 0, formas pré- estabelecidas para S = S(r, z) e L = L(r, z) podem ser adotadas independentemente, pois as superfícies de S e L não necessitam ser coincidentes. Essa é a hipótese adotada pelo modelo Polish doughnuts, pelo fato de não compreendemos completamente os mecanismos de viscosidade e condução de calor em um disco grosso. Assim esse desconhecimento das propriedades térmicas são incorporadas na escolha arbitrária das distribuições de entropia e momento angular, sendo o fluido tratado como um fluido ideal.

Assumirei então a hipótese do fluido estar em um estado de pura rotação sobre o eixo de simetria, ou seja, que o campo de velocidade tenha componentes

ur = 0, = rΩ, vz = 0, (4.37)

onde Ω = Ω(r, z) é a velocidade angular. Fluidos com essa forma de campo de veloci- dade, em conjunto com as hipóteses de estacionariedade e simetria axial, têm um fluxo

necessariamente incompressível, ou seja, fluem como se fossem incompressíveis:

∂ρ

∂t + ~u · ~∇ρ = 0, (4.38)

dado que a densidade não tem gradiente na direção ϕ. Dessa forma, a equação da conti- nuidade (3.9) se torna

∇ · ~u = 0, (4.39)

que é automaticamente satisfeita para o campo de velocidade (4.37).

Aplicando ainda essas restrições sobre a equação de Euler (3.13) obtemos

L 2 r3r = −ˆ ~ ∇P ρ − ~∇Φ, (4.40)

cuja componente na direção ϕ é identicamente nula para a simetria adotada. Essa equação representa o balanço das forças (nas direções r e z) agindo em um elemento de fluido: do lado esquerdo da equação (o negativo da) força centrífuga e do lado direito a força devido ao gradiente de pressão e a força gravitacional.

4.3.2

Fluidos barotrópicos

Em um fluido com uma equação de estado geral da forma (3.8) as superfícies isobáricas (pressão constante) e isopícnicas (densidade constante) são, de um modo geral, inclinadas, e se cruzam a um determinado ângulo. Neste caso o sistema é chamado baroclínico (“inclinado na pressão”). No entanto, se a equação de estado tem a seguinte forma especial

P = P (ρ), (4.41) o sistema é chamado de barotropo ou sistema barotrópico (“se comportando como a pres- são”). Em um sistema barotrópico as superfícies isobáricas e isopícnicas coincidem, pois

ρ = const implica P = const na equação (4.41), e vice-versa.

Por outro lado, se as superfícies isopícnicas e isobáricas coincidem, os vetores ~∇ρ e

~

∇P , ortogonais às superfícies isopícnicas e isobáricas respectivamente, são colineares, ou seja, ~∇P = k ~∇ρ, para alguma constante k. Portanto, a pressão e a densidade devem ter uma relação funcional do tipo (4.41) (com k = dP/dρ).

A condição para que isso aconteça, chamada de condição barotrópica, pode ser escrita como:

~

∇ρ × ~∇P = 0. (4.42)

Em resumo, essa condição diz que o estado térmico do sistema depende somente da den-

De modo geral, a estratificação de pressão e de densidade não coincidem. No entanto, há uma condição simples sobre a lei de rotação que governa a relação entre essas duas famílias de superfícies. Vejamos isso a partir da equação de equilíbrio (4.40), escrita em termos da velocidade angular Ω = L/r2:

~

∇P

ρ + ~∇Φ = Ω

2~r, (4.43)

onde ~r ≡ rˆr. Tomando o rotacional da equação acima: ~

∇ 1

ρ

!

× ~∇P = 2Ω ~∇Ω × ~r, (4.44)

pois ~∇ × ~r = 0. Tendo em vista que ~u = rΩ ˆϕ, podemos escrever essa equação como

1 ρ2∇ρ × ~~ ∇P = −2 ∂Ω ∂z ! ~ u. (4.45)

Assim, se ∂Ω/∂z = 0 em todos os pontos, as superfícies isobáricas e isopícnicas coincidem, e existe uma relação P = P (ρ) entre a pressão e a densidade. Por outro lado, se as superfícies isobáricas e isopícnicas coincidem, então a equação (4.45) implica que Ω = Ω(r) para rotação não nula. Portanto,

Ω = Ω(r)P = P (ρ). (4.46)

Esse resultado, chamado de teorema de von Zeipel (Tassoul [75]), é importante porque o fato da velocidade angular ser constante sobre cilindros simplifica consideravelmente a tarefa de encontrar a estrutura de um disco.

É importante notar que, em geral, (4.46) não é a equação de estado do fluido: se

∂Ω/∂z = 0, então existe uma relação geométrica da forma P = P (ρ) seja qual for a

equação de estado. Algumas vezes esses sistemas são chamados pseudobarotrópicos, para distingui-los dos barotropos verdadeiros, para os quais P = P (ρ) por razões físicas inde- pendentes do estado de rotação.

Considerando a situação em que exista uma relação um-pra-um entre a pressão e a densidade (um fluido que satisfaz a condição barotrópica), a relação P = P (ρ) pode, em princípio, ser invertida: ρ = ρ(P ). Podemos então definir uma função W = W (P ) tal que

dW dP = −

1

ρ(P ). (4.47)

Isso pode ser feito definindo W como sendo a função

W (P ) ≡ −

Z P dP0

o que resulta na relação ~ ∇W = dW dP ~ ∇P = −1 ρ ~ ∇P. (4.49)

Dessa forma, a quantidade ~∇P/ρ que aparece na equação de Euler pode sempre ser substituída por − ~∇W para um fluido barotrópico.

Podemos verificar que um fluido isentrópico é barotrópico, com −W = h (equação (3.23) com dS = 0 implica que dh = dP/ρ). Ou seja, a função −W é a entalpia específica nesse caso. Da 1alei da termodinâmica (3.22) obtemos que, para um fluido isentrópico,

dU = P ρ2U = U (ρ), com dU = P ρ2. (4.50) Portanto P = ρ2dU = P (ρ), (4.51)

e um fluido isentrópico é necessariamente barotrópico.

O fato de um fluido barotrópico ter velocidade angular constante sobre cilindros im- plica que a mesma condição vale para o momento angular L = r2Ω, ou seja, L = L(r).

Dessa forma podemos introduzir o chamado potencial rotacional

F (r) ≡ −

Z rL2(r0)

r03 dr 0

, (4.52)

que é tal que

~

∇F = −L

2

r3r.ˆ (4.53)

Com isso, e com a função potencial W , a equação de Euler (4.40) se torna simplesmente

~

∇F = ~∇W − ~∇Φ, (4.54)

que pode ser imediatamente integrada:

W (r, z) = Φ(r, z) + F (r). (4.55) Um caso particular de fluido barotrópico é o caso de uma equação de estado politrópica (4.4)

P (ρ) = Kρ1+1/n, (K, n = const.),

que é a equação de estado que usarei nesse trabalho (conforme descrito na seção 4.2). Utilizando essa relação barotrópica para integrar a função W (4.48) obtemos

W (ρ) = Ws− (n + 1)Kρ1/n,W (ρ) = Ws− Γ Γ − 1

!

Γ−1, (4.56) onde Wsé uma constante (o potencial efetivo na superfície se usada a condição de contorno

P = ρ = 0). Em geral existe um círculo interno ao toro onde a pressão e a densidade

atingem seus valores máximos. Denotando esses valores por P0 e ρ0 respectivamente, a

constante K é então dada por K = P0 1+1/n

4.3.3

Determinação da superfície

Resumindo o que foi tratado até o momento, as equações que determinam a estrutura do nosso toro, que devem ser resolvidas em conjunto, são a equação de Euler integrada (4.55),

W (r, z) = Φ(r, z) + F (r),

a equação de Poisson (3.18)

∇2Ψ = 4πρ,

e a equação de estado politrópica (4.56)

W (ρ) = Ws− (n + 1)Kρ1/n. Além disso, temos as seguintes condições de contorno4

Φ, Ψ → 0 para R → ∞,

P = ρ = 0 e W = Ws na superfície, (4.57) que dizem que o potencial gravitacional deve se anular no infinito espacial e que a pressão e a densidade se anulem na superfície do toro. A equação de Poisson deve ser resolvida em todo o espaço, sendo a condição de contorno sobre o potencial gravitacional aplicado no infinito espacial. Já a equação de Euler integrada é aplicada somente na região de matéria (dentro do disco), e portanto a função W tem condição de contorno sobre o disco. A constante de integração de F (r) é incorporada na constante Ws.

Porém, surge aqui o problema de que a superfície do toro não é conhecida a priori e, portanto, não é possível (em geral) aplicar as condições de contorno acima de maneira direta. Trata-se portanto de um problema de fronteira livre.

De modo geral, os potenciais do disco Ψ e do objeto central Φ◦ (suposto conhecido)

se somam para formar o potencial gravitacional total (Φ = Φ◦ + Ψ), e então o potencial

gravitacional total depende da distribuição de massa dentro do disco. Contudo, no caso em que a massa do disco é relativamente pequena e que as forças gravitacionais são dominadas pela massa central (Φ◦  Ψ), então Φ ≈ Φ◦ e conhecemos o potencial gravitacional

independentemente da forma e estratificação do disco. Isso nos permite encontrar a forma a equação da superfícies equipotenciais como veremos a seguir.

Introduzirei, a partir da equação de Euler, a chamada aceleração gravitacional efetiva

~gef como sendo a soma vetorial das acelerações gravitacional e centrífuga:

~ gef ≡ − ~∇Φ + Ω2~r = 1 ρ ~ ∇P. (4.58)

4Usarei em todo o texto R ≡r2+ z2como sendo o raio esférico, que em conjunto com as coordenadas

Portanto, a aceleração gravitacional efetiva deve ser ortogonal às superfícies de pressão constante (superfícies isobáricas). Em particular, se o fluido em consideração estiver imerso em um meio externo de pressão constante, sua superfície (livre) deve ser perpen- dicular a ~gef em cada ponto.

Esta propriedade pode ser explorada para se obter uma relação geral entre a forma da superfície (qualquer superfície isobárica) e o campo de rotação. Suponha que sabemos a equação da superfície. Dada a simetria, temos especificada a equação da seção meridional

zs= zs(r), (4.59)

onde o subscrito s indica quantidades sobre a superfície (isobárica). Portanto, ~gef·d~xs= 0, ou seja,

gef rdrs+ gef zdzs = 0. (4.60) Usando a equação acima e a definição de aceleração gravitacional efetiva (4.58), obtemos

 Ω2r s = ∂Φ ∂z ! s dzs drs + ∂Φ ∂r ! s . (4.61)

Sob essas condições a equação (4.61) nos permite encontrar o campo de rotação que gera a situação de equilíbrio sobre a superfície sem referência ao interior. Por outro lado, se são conhecidas as coordenadas de algum ponto sobre a superfície, então a equação (4.61) pode ser integrada para encontrar a seção reta dado um determinado um dado campo de rotação.

A equação (4.58) diz que a função W = F + Φ funciona como um potencial efetivo para aceleração gravitacional efetiva ~gef:

~gef = − ~∇W, (4.62)

e a equação para as superfícies isobárica e isopícnicas se tornam simplesmente

W = const. (4.63) Portanto, em uma configuração barotrópica as superfícies de pressão, densidade e po- tencial efetivo constantes todas coincidem. Assim, encontrar a forma e estratificação de um disco barotrópico é reduzido a obter as superfícies equipotenciais de W . Essa tarefa é simplificada se o potencial gravitacional é conhecido a priori, como no caso onde Φ é devido a fontes externas. Como todas as superfícies de nível satisfazem W = constante, temos

Podemos resolver (4.64) para z como função de r para obter uma expressão para a seção reta das superfícies equipotenciais para cada valor de W . Por outro lado, podemos usar (4.64) para obter o campo de rotação de equilíbrio para uma dada forma das equipotenciais

F (r) = Ws− Φ(r, zs(r)). (4.65) Este método pode ainda ser aplicado para discos autogravitantes se soubermos uma ex- pressão geral para o potencial gerado por uma estratificação de densidade da forma zs(r). No caso mais geral em que isso não é possível a equação de Poisson deve ser resolvida e temos um problema de fronteira livre. Essa é a situação que estamos tratando: dados Φ◦(r, z) e Ω(r) (ou equivalentemente L(r)) conhecidos a priori, precisamos resolver as

equações para a distribuição de matéria ρ(r, z) e para a superfície zs(r) desconhecida.