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4.2 Equação de estado politrópica

4.2.1 Propriedades térmicas da matéria e politropos

O fato de considerar nesse trabalho apenas fluidos ideais se deve ao fato de que as pro- priedades térmicas da matéria são desprezáveis ou podem ser ignoradas para um toro sob determinadas condições, de forma que suas propriedades termodinâmicas possam ser descritas por simples relações entre pressão e densidade. Veremos a seguir (na seção4.3.2) que para um disco em estado de rotação obedecendo a algumas condições simples existe uma relação puramente geométrica do tipo P = P (ρ) entre a pressão e a densidade in- dependente de suas propriedades térmicas, o que faz com que essas últimas não sejam importantes no estabelecimento dessa relação.

Escolho então trabalhar com uma relação do tipo politrópica, adotando a hipótese de que no fluido ocorram apenas processos termodinâmicos chamados de processos politró-

picos1. Uma mudança politrópica ou processo politrópico é definido como sendo uma mudança reversível (quase-estática) em um sistema termodinâmico que ocorre de tal ma- neira que o calor específico por unidade de massa seja constante durante essa mudança reversível. Isso implica que as funções termodinâmicas se relacionam pelas expressões abaixo (ver apêndice E para uma revisão dos processos politrópicos)

1 + 1 n = d ln P d ln ρ; 1 + n 0 = d ln P d ln T; 1 n00 = d ln T d ln ρ. (4.2)

Juntamente com a equação de estado, as relações acima implicam que um politropo (ou fluido politrópico) contém apenas uma variável termodinâmica independente.

De maneira geral os chamados índices politrópicos n, n0 e n00 são variáveis, mas isso

introduziria muitos graus de liberdade. Por isso, em geral considera-se todos os índices

1Geralmente se faz uma distinção entre processos politrópicos ocorrendo em um ponto fixo (e.g., oscilações locais), e uma distribuição espacial global de matéria obedecendo a uma equação de estado politrópica. Estarei tratando sempre de mudanças politrópicas ocorrendo em um ponto fixo no espaço, de tal forma que todas as variáveis termodinâmicas são funções do espaço e do tempo (e.g., P = P (~x, t)).

como constantes, de forma que as expressões acima possam ser integradas:

P ρ−1−1/n= const.; P T−1−n0 = const.; T ρ−1/n00 = const., (4.3)

para (n, n0, n00) = const. Da primeira dessas equações, obtemos a equação de estado geral para um politropo:

P = KρΓ. (4.4)

K é referida como constante politrópica e Γ ≡ 1 + 1/n o chamado expoente politrópico.

Geralmente o índice politrópico n (ou expoente politrópico Γ) é considerado constante quando usado em conexão com uma equação de estado da forma (4.4) acima.

A variação de ρ com T ou a relação entre P e T podem ser obtidas pelas outras duas equações, ou de forma genérica pelas expressões em (4.2). No entanto, em muitas aplica- ções as propriedades térmicas da matéria são desprezáveis ou podem ser ignoradas, e os sistemas são descritos por simples relações pressão-densidade da forma P = Kρ1+1/n. Por

exemplo, algumas vezes até mesmo a estrutura espacial de sistemas sem colisão (clusters de estrelas por exemplo) é descrita por uma lei politrópica de “pressão-densidade”. Dessa forma, o único índice politrópico pertinente em muitos problemas práticos é n, podendo ser ignorados os outros dois índices n0 e n00, relacionados às propriedades térmicas da matéria. Equações de estado politrópicas podem ser usadas com sucesso (as vezes com índice politrópico variável) sempre que equações envolvendo a temperatura não são bem estabelecidas ou podem ser ignoradas. Esse é o caso de um disco de matéria satisfazendo às condições de rotação adotadas nesse trabalho (ver seção 4.3.2).

A noção de politropo (ou variações politrópicas) teve sucesso em muitos aspectos devido ao fato de que:

i) Ela oferece uma equação de estado concreta e concisa, contendo somente duas va-

riáveis de estado, P e ρ, uma vez que o índice politrópico n e a constante politrópica

K são fixadas.

ii) Para certos intervalos de n a equação de estado politrópica é válida - pelo menos de

forma aproximada - para muitos sistemas termodinâmicos ocorrendo no universo: zonas convectivas de estrelas ordinárias, atmosferas convectivas planetárias e estela- res, interiores planetários, matéria interestelar, anãs brancas, estrelas de nêutrons, ventos solares e estelares, distribuição de massa em sistemas estelares, campos de radiação de corpo negro, pares elétron-pósitron, etc. [71]

Podemos destacar alguns casos especiais de variações politrópicas (ver Maciel [72]): • n = 3/2: Pr  Pg (pressão da radiação for desprezável frente à pressão do gás); caso

• n = 3: Pr  Pg (radiação pura); aplica-se ao caso degenerado relativístico, onde

P ∝ ρ4/3;

• n = −1: Politropo de pressão constante; • n = 0: Politropo de densidade constante; • n → ∞: Politropo de temperatura constante;

onde a pressão P na equação de equilíbrio hidrostático é a pressão total, incluindo no caso mais geral a pressão do gás Pg (íons, elétrons etc.) e a pressão da radiação Pr:

P = Pg+ Pr.

O caso n = 3/2 é associado ao equilíbrio convectivo adiabático, isto é, o interior é completamente convectivo, e elementos de massa subindo (ou descendo) de uma região com densidade ρ e temperatura T para outra com densidade ρ0 e temperatura T0 ajustam- se rapidamente às novas condições sem trocas de calor. O caso n = 3 corresponde ao equilíbrio radiativo, sendo a pressão puramente de radiação.

Para a maioria dos processos adiabáticos em sistemas termodinâmicos simples os ín- dices politrópicos estão contidos no pequeno intervalo 1, 5 ≤ n, n0, n00 ≤ 3 (ver Horedt [71] para índices de diversos sistemas, onde se discuti ainda a generalização obtida introdu- zindo equações de estado com índices no intervalo −∞ ≤ n ≤ ∞).

É importante notar que ao se utilizar uma equação de estado politrópica do tipo

P = KρΓ a pressão é uma função da densidade de massa de repouso somente, e a equação

de estado não fornece nenhuma informação sobre as propriedades da energia interna espe- cífica, que fica livre (sem restrições). Uma hipótese perfeitamente possível seria assumir

U = 0,2 por exemplo.

Uma equação de estado amplamente utilizada para se determinar as propriedades térmicas do fluido é a equação de um fluido perfeito (ou gás perfeito)

P = R µ

!

ρT. (4.5)

Essa é a equação clássica de um fluido monoatômico, mas é usada como um protótipo para comportamentos mais gerais de uma equação de estado em que a pressão pode ser expressa em termos da densidade (densidade de energia de repouso no caso relativístico) e da temperatura (ou energia interna específica), e que se mostrou apropriada para fluidos que são não degenerados e relativísticos, não degenerados e não relativísticos, ou não degenerados e ultrarelativísticos. [73]

2Um fluido obedecendo a equação de estado de um fluido perfeito com U = 0 teria temperatura zero, e seria um modelo razoável para uma estrela de nêutrons antiga e fria, por exemplo. [73]

Lembrando que a 1alei da termodinâmica para a transformação a volume constante

de um fluido monoatômico é simplesmente dada por dU = CVdT , é possível escrever, para um fluido com calor específico CV constante, que U = CVT . Usando ainda o fato de que R/µ = CP − CV (equação (E.10) do apêndice E.2) podemos escrever a equação (4.5) como P = C P − CV CV  ρU,

de tal forma que, utilizando o expoente adiabático γ = CP/CV do fluido, temos

P = ρU (γ − 1). (4.6) A equação acima é amplamente usada em simulações numéricas. Sua nomenclatura, contudo, é de certa forma confusa pois é chamada por alguns de equação de estado de um fluido ideal. Reservo nesse trabalho o termo fluido ideal àqueles para os quais DS = 0 (que alguns chamam de fluido perfeito), referindo-me à equação de estado acima como equação de estado de um fluido perfeito (ou gás perfeito).

Se utilizada em conjunto com uma equação de estado politrópica, a equação (4.6) pode ser escrita como

U =

Γ−1

γ − 1 , (4.7)

o que determina a energia interna do fluido.

O que mostro agora é que a equação acima se assemelha à energia interna de um politropo geral no caso isentrópico. A 1alei da termodinâmica (3.22) com dS = 0 escreve-

se como

dU = P

ρ2dρ. (4.8)

Então, usando P = KρΓ e o limite lim

ρ→0U = 0 temos

U =

Γ−1

Γ − 1. (4.9)

A equação acima é similar mas distinta de (4.7), mas é claro que coincidem quando Γ = γ. Colocando de outra forma, uma equação de estado politrópica é equivalente a uma equação de um fluido perfeito somente sob a condição de isentropia, para a qual o índice adiabático do fluido γ é o mesmo que o índice politrópico Γ. Na prática, simulações numéricas que aplicam uma equação de estado politrópica fazem em geral a suposição implícita de que Γ = γ, de forma que a energia interna pode ser computada e integrada para obter a expressão algébrica (4.9).

A constante politrópica K introduzida em (4.4) é mais que somente uma constante e é de fato relacionada à entropia ao longo das linhas de fluido. Para mostrar isso, vamos

relaxar por um momento a condição de que K seja constante, e considerar o caso particular de um fluido perfeito, em que a energia interna é dada pela equação (4.9). Então

dU = dK ρ Γ−1 Γ − 1+ Kρ Γ−2 = U KdK + P ρ2dρ. (4.10)

Comparando essa expressão com a 1alei da termodinâmica (3.22) temos que

T dS = UdK

KdS = U

T d ln K. (4.11)

A equação acima mostra que (o logaritmo natural da) constante politrópica é diretamente proporcional à entropia específica, e portanto constante para cada linha de fluxo se o elemento de fluido sofre uma transformação adiabática (DS = 0 ⇒ DK = 0). No entanto, assim como S, K pode variar ao longo das linhas de fluxo. Isso reflete o fato de que um fluido perfeito é intrinsecamente adiabático, mas não necessariamente isentrópico. Todas as implementações numéricas da equação de estado politrópica assumem que K é constante ao longo de todas as linha de fluxo, o que, em conjunto com a hipótese de um fluido perfeito, implica que o fluido é isentrópico.

A equação de estado politrópica não precisa necessariamente ser usada em conjunto com a de um fluido perfeito. No entanto, um politropo completamente geral ainda terá energia interna dada por uma lei do tipo U = U (ρ) (como veremos a seguir), de tal forma que dU = dUdρ. Então, pela 1alei da termodinâmica:

T dS = dU P ρ2 ! dρ. (4.12)

A expressão acima esclarece o fato de que um fluido politrópico não é necessariamente isentrópico, e que a condição

dS = 0dU

= P

ρ2 (4.13)

deve ser satisfeita pela energia interna específica para que isso aconteça.

Como a equação de estado politrópica coincide com a equação de estado de um fluido perfeito no caso de transformações isentrópicas, para as quais o índice politrópico Γ coin- cide com o índice adiabático γ do fluido, não é surpresa que a condição de isentropia é satisfeita somente quando a energia interna específica é expressa como em (4.9).

De fato, um fluido politrópico que é também isentrópico somente poderá ter energia interna como em (4.9). Uma transformação (e.g., o desenvolvimento de ondas de choque)

que leve a uma violação da equação acima essa transformação será acompanhada por um incremento de entropia. Por outro lado, se em uma simulação numérica a equação (4.9) for imposta, então a conservação de entropia é automaticamente garantida. [73]

A elaboração de um modelo Polish doughnuts necessita da escolha de uma distribuição de entropia S(r, z), que especifique as propriedades térmicas da matéria. O que é feito em geral é a suposição de um fluido perfeito na condição de isentropia. No entanto, isso não é estritamente necessário, e uma equação de estado politrópica geral, sem a condição adicional de um fluido perfeito e sem a condição de isentropia, terá suas propriedades térmicas determinadas exclusivamente pelos outros índices politrópicos n0 e n00.

Apesar disso, as propriedades térmicas da matéria não terão efeito na dinâmica do fluido quando uma equação de estado politrópica for utilizada (fluido barotrópico), como veremos na seção (4.3.2). Porém, mesmo assim podemos determiná-las a partir dos índices politrópicos.

Um processo politrópico é definido como sendo um processo termodinâmica que ocorre de tal forma que o calor específico C permanece constante (ou varia de uma maneira fixa). Considerando apenas processos quase-estáticos (reversíveis), isso implica que (ver apêndice E)

T dS = CdT. (4.14) Por exemplo, se a entropia for constante ao longo das linhas de fluxo (fluido adiabático,

DS

= 0), então a equação acima diz então que a temperatura também será ( DT

= 0). O fluido será isentrópico (dS = 0) somente se C = 0.3

De acordo com a equação (4.2)

ρ = n

00dT

T . (4.15)

Utilizando a condição politrópica (4.14) isso resulta em

dS =

C

n00 

ρ . (4.16)

Com isso vemos que a entropia é determinada exclusivamente pela distribuição de densi- dade, S = S(ρ), e dados o calor específico C e o índice politrópico n00 essa função pode ser integrada: S(ρ) = S0+ C n00  ln ρ. (4.17)

3Em se tratando de fluidos, o termo fluido politrópico ou politropo é definido como sendo um fluido para o qual vale a relação (4.14) acima entre a entropia e a temperatura, mesmo quando a variação dS se der em função de uma variação entre linhas de fluxo diferentes. Então, mesmo um fluido adiabático pode ter C 6= 0. Nesse caso, essa relação diz somente que em um deslocamento virtual de uma partícula de fluido entre linhas de fluxo implicaria em determinada troca de calor.

Portanto, a função S(r, z) não é mais uma função livre mas calculada a partir de ρ(r, z). Além disso, os índice politrópicos das propriedades térmicas da matéria (incluindo n00) não influenciam na dinâmica do fluido e na determinação de ρ(r, z).

Usando (4.16) e a 1alei da termodinâmica podemos ainda escrever uma equação para

a energia interna na forma U = U (ρ):

dU = CT n00 + P ρ ! ρ . (4.18)

A temperatura pode ser integrada de (4.15),

T (ρ) = K00ρΓ00−1, (4.19) onde K00 é uma constante de integração e Γ00 = 1 + n100. Isso resulta então na energia interna

U (ρ) = CK00ρΓ00−1+

Γ−1

Γ − 1. (4.20)

Obviamente o caso isentrópico C = 0 retoma a forma (4.9).