• Nenhum resultado encontrado

Medida e avaliação em psicopatia

2 PSICOPATIA

2.5 Medida e avaliação em psicopatia

Como se observa, apesar de algum avanço relacionado ao estudo da psicopatia, mesmo em modelos já consolidados, como é o caso daquele proposto por Hare (HARE; NEUMAN, 2008), ainda há um longo caminho a ser percorrido. O tema da avaliação em psicopatia não foge à regra. A própria possibilidade de se medir um fenômeno psicológico é um tópico que suscita controvérsias conceituais e metodológicas desde os primórdios da Psicologia enquanto ciência – ver Hauck Filho (2013) para uma revisão –, contudo a discussão nessa direção foge ao escopo da presente tese. Com efeito, compreende-se aqui a psicopatia como um construto latente, não observável diretamente (HARE; NEUMANN, 2008), assumindo, para compreendê-la, uma perspectiva dimensional (em lugar da taxonômica/categórica), o que tem permitido descrever diferenças individuais e explicar uma diversidade de transtornos psicológicos em muitos contextos sociais (TRIPICCHIO, 2007).

Uma perspectiva taxonômica da psicopatia busca representá-la em termos de tipos ou categorias: psicopatas e não psicopatas, enquanto indivíduos qualitativamente distintos (WRIGHT, 2009). Uma visão dimensional, por outro lado, considera que não existem psicopatas, mas sim traços de psicopatia que todas as pessoas apresentam em magnitudes distintas, e que há uma distribuição contínua dessas características na população geral (MOREIRA et al., 2014).

De fato, quando se fala em psicopatia, todos conhecemos pessoas que apresentam, em alguma medida, essas características, mas que funcionam relativamente bem no mundo. Psiquiatras e juízes são os profissionais que, provavelmente, mais obtêm uma amostra dos severamente afetados pela psicopatia. Por certo, parece mais apropriado falar de indivíduos com fortes características de psicopatia, em lugar de apenas psicopata (MOREIRA et al., 2014), embora aqui se utilize o termo de forma indiscriminada. Saindo da dicotomia, Ruscio (2007) apresenta uma interessante reflexão em que a psicopatia é, ao mesmo tempo, taxonômica (no sentido de que psicopatas se diferenciam de não psicopatas) e dimensional (entre os psicopatas, os indivíduos se diferem em magnitude e tipos de características psicopáticas).

Grande parte dos progressos obtidos na avaliação da psicopatia deve-se aos esforços de Hare e seus colaboradores. Nos anos 1970, eles se debruçaram sobre o desenvolvimento de uma ferramenta válida e confiável para a avaliação da psicopatia, lançando a primeira versão da Psychopathy Check List – PCL (HARE, 1980). Antes disso, assignava-se uma pontuação de 1 a 7 para cada uma das características da lista de Cleckley, na qual 1 correspondia a claramente não psicopata e 7, definitivamente psicopata. Alguns anos depois, Hare e um grupo de pesquisadores de diversas áreas fizeram revisões no instrumento e publicaram uma nova versão com 20 itens, a Psychopathy Check List Revised – PCL-R (HARE, 1991, 2003).

A PCL-R foi desenhada para fins de pesquisa, mas acabou se expandindo para contextos de justiça criminal e saúde mental. O instrumento tem sido utilizado em todo o mundo e é considerado “padrão-ouro” da avaliação da psicopatia (DEMATTEO et al., 2014; EDENS, 2006; HAUCK FILHO; TEIXEIRA; ALMEIDA, 2014; MAHMUT et al., 2011; VITACCO; NEUMANN; JACKSON, 2005). No Brasil, foi adaptada por Morana (2004). Trata-se de uma escala de classificação de traços de personalidade e comportamentos antissociais que usa entrevista semiestruturada e informações da história de vida do indivíduo. Contém vinte itens, respondidos em uma escala de 3 pontos (0 = não se aplica; 1 = presente em certa medida; 2 = definitivamente presente), e ponto de corte de 30 pontos para amostras norte-americanas (MONTEIRO et al., 2014).

Não cabe dúvida de que a PCL-R possibilitou uma padronização dos critérios de avaliação, proporcionando a replicação de estudos na área e a comparação de resultados obtidos em diversas culturas (HARE et al., 2000). No entanto, ela também é alvo de críticas e limitações, especialmente quando se pretende avaliar a psicopatia fora dos contextos prisionais e clínicos.

Primeiro, seu formato de entrevista semiestruturada requer treinamento do avaliador e demanda um longo tempo para aplicação, dificultando a participação de estudos em larga escala. Ademais, como foi desenhada para o contexto prisional, requer informação complementar advinda de ficha criminal ou laudo clínico, o que nem sempre está acessível. Portanto, além do custo elevado, já que se trata de uma medida comercializada, essa não se configura como uma ferramenta prática. Além da PCL-R, outras medidas psicométricas se destinam à avaliação da psicopatia, todas em formato de entrevista semiestruturada, teste padronizado ou autorrelato.

Hauck Filho (2013) realizou uma revisão sistemática sobre o tema e assinala 38 instrumentos referenciados na literatura para avaliar psicopatia, sendo a maior parte deles destinada ao público forense ou clínico. Dentre eles, cabe destacar as derivações diretas da PCL-R, de acordo com Hare (2016):

Psychopathy Checklist: Screening Version – PCL:SV (HART; COX; HARE, 1995);

Psychopathy Checklist: Youth Version – PCL:YV (FORTH; KOSSON; HARE, 2003);

Self-Report Psychopathy Scale – SRP-4 (PAULHUS; NEUMANN; HARE, 2015).

Apontam-se também outras escalas que se baseiam na PCL-R, mas não são consideradas derivações diretas dela:

Hare Psychopathy Scan – P-SCAN (HARE; HERVÉ, 1999);

Antisocial Process Screening Device – APSD (FRICK; HARE, 2001); B-Scan (MATHIEU et al., 2013).

E, por fim, listam-se instrumentos clássicos na literatura internacional apoiados em modelos distintos do de Hare:

• Escala de Psicopatia de Levenson – LSRP (LEVENSON; KIEHL; FITZPATRICK, 1995);

Child Psychopathy Scale – CPS (LYNAM, 1997);

Youth Psychopathic Traits Inventory – YPT (ANDERSHED et al., 2002); • Inventário de Personalidade Psicopática Revisado – PPI-R (LILIENFELD;

WIDOWS; STAFF, 2005).

Para Lilienfeld e Fowler (2006), é preciso estar atento a qual pressuposto teórico o instrumento se refere, visto que as baixas correlações entre questionários desenvolvidos para medir psicopatia indicam que, possivelmente, não estão medindo o mesmo construto. Assim,

para efeitos desta tese, descreve-se, no Estudo 1, a Self-Report Psychopathy Scale, instrumento de autorrelato destinado à população geral alinhado aos pressupostos teóricos adotados e que servirá para avaliação da psicopatia corporativa.

Ainda que o estudo empírico da psicopatia esteja relacionado ao desenvolvimento de instrumentos para mensurar o construto, deve-se ter em conta outras ponderações tanto do ponto de vista teórico quanto psicométrico (HAUCK FILHO; TEIXEIRA; DIAS, 2012). Reconhece-se que o uso de escalas, inventários, testes e entrevistas apresenta limitações na prática psicológica. No entanto, ao mesmo tempo, eles abrangem os meios disponíveis aos pesquisadores para apreciar empiricamente seu objeto de estudo. Nesse contexto, a cada dia fica mais evidente a necessidade de ter em conta não apenas a adaptação e validação de instrumentos já existentes, mas, sobretudo, o desenvolvimento de medidas que considerem as necessidades de cada pesquisa. Avaliações cuidadosas são fundamentais para compreender melhor a psicopatia e orientar decisões em diversos níveis, como também para se pensar em formas de prevenção e/ou possíveis melhorias.

Por fim, entende-se que o diagnóstico carrega um poder destrutivo para o sujeito, sendo necessária muita cautela na divulgação dos resultados de instrumentos, uma vez que se observa uma significativa falta de padronização dos procedimentos científicos e práticas profissionais questionáveis. A temática da avaliação em psicopatia será mais abordada nos capítulos empíricos subsequentes.

A seguir, uma vez que esta tese pretende aprofundar o fenômeno da psicopatia corporativa e, mais especificamente, entre líderes/gestores, o próximo capítulo segue o curso da fundamentação teórica e versa sobre conceitos e modelos no estudo da liderança organizacional.