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Psicopatia corporativa e liderança/gestão

4 PSICOPATIA CORPORATIVA

4.4 Psicopatia corporativa e liderança/gestão

Conforme mencionado no Capítulo 2, a liderança é um dos fenômenos mais estudados nas ciências humanas e constitui temática que já acumula mais de um século de pesquisas científicas. Trata-se de um tópico de interesse multidisciplinar e um rico campo para pesquisas. Assim, estudar a liderança viabiliza um melhor entendimento das dinâmicas e realizações coletivas, particularmente na área de gestão (TURANO; CAVAZOTTE, 2016).

Para Urban (2008), uma influência importante no desempenho de uma organização deriva de sua cultura gerencial, ou seja, as crenças, valores comuns e as expectativas que os gerentes têm das pessoas que supervisionam. Para ele, o domínio da atividade exercida, a atitude frente ao risco e à concorrência, o relacionamento com clientes e acionistas e a imagem geral de uma organização são, em grande parte, impulsionados por seus líderes. Nesse sentido, espera-se de um gestor que ele tome decisões responsáveis e que contribua para atingir os objetivos da organização, considerando concomitantemente os interesses e o bem-estar de seus trabalhadores subordinados.

No entanto, da mesma forma que a liderança pode apresentar a imagem de superação de desafios, levando organizações ao ápice e motivando seus seguidores, líderes

também são associados a grandes escândalos, ao fracasso de organizações e à desintegração de equipes. Em geral, os estudos que ligam a personalidade sombria, construto correlato da psicopatia, a resultados de liderança têm sugerido que o contexto é fundamental para determinar se os traços sombrios da personalidade terão um papel positivo ou negativo nos resultados da liderança (SPAIN; HARMS; LEBRETON, 2014). Ao mesmo tempo, as personalidades sombrias são difíceis de detectar porque coexistem com habilidades sociais bem desenvolvidas que tendem a causar impressões positivas nos outros (pelo menos em curto prazo), obscurecendo o desempenho negativo e às vezes disfuncional da liderança (HOGAN; KAISER, 2005; MATHIEU et al., 2015).

O componente psicopatia da dark triad (em comparação ao narcisismo e maquiavelismo) tem maior destaque no comportamento aversivo do líder no meio corporativo, visto que muitos achados apontam que a maioria dos gestores psicopatas “bem- sucedidos” busca excitação nas atividades e exterioriza frieza emocional na tomada de decisões (MATHIEU et al., 2014; D‟SOUZA, 2016). Importante ponderar que a relação entre psicopatia e liderança pode ser moderada por uma série de fatores: as medidas usadas, a natureza do resultado que se persegue, o protagonista do comportamento psicopata e até mesmo a gravidade desses comportamentos (LANDAY; HARMS; CREDÉ, 2019).

Aparentemente, a psicopatia pode ter dupla implicação para a liderança, predispondo tanto a resultados adaptativos quanto destrutivos. Características como charme e disposição para assumir riscos, por exemplo, podem ser pontos fortes em curto prazo, mas podem incorrer em resultados adversos em longo prazo, resultando em mentiras, quebra de regras, desafio às autoridades e exploração dos outros (HOGAN; KAISER, 2005). Dessa forma, embora a psicopatia, em termos gerais, reflita uma antissocialidade fundamental, algumas características, como insensibilidade, grandiosidade e manipulação, podem estar relacionadas à capacidade de fazer argumentos persuasivos e tomar decisões implacáveis. Assim, a corrupção e os desastres financeiros podem ser perfeitamente causados por indivíduos, e não somente por forças sociais e econômicas impessoais (BABIAK; NEUMANN; HARE, 2010).

É possível que grande parte dos comportamentos antagônicos no local de trabalho se deva a psicopatas corporativos em posições de liderança. Para Cheang e Appelbaum (2015, p.166), “um líder tóxico envenenará sua organização incitando comportamentos desviantes da mesma maneira que um coração envenenado entregará sangue tóxico para o resto do corpo”. Boddy (2011) sugere, inclusive, que a atual crise financeira mundial pode ter sido causada por psicopatas corporativos em cargos da alta gestão.

Dessa maneira, o interesse desta tese se volta para a liderança destrutiva, entendida como comportamento volitivo por um líder que pode prejudicar ou pretende prejudicar a organização e/ou seus seguidores, seja incentivando a perseguição de objetivos que violam os interesses legítimos da organização, seja empregando um estilo de gestão que envolva o uso de métodos prejudiciais, independentemente de justificativas para tal comportamento (KRASIKOVA; GREEN; LEBRETON, 2013).

A prevalência e as consequências da psicopatia entre líderes/gestores em diversos contextos organizacionais só recentemente foram exploradas empiricamente, e continua com muitas lacunas (BODDY, 2016). Board e Fritzon (2005), em um estudo com 39 executivos britânicos, obtiveram, por meio de entrevistas e testes de personalidade, que o nível de psicopatia desses gestores poderia ser tão elevado quanto o de criminosos. Eles revelaram que, enquanto os gestores igualaram ou excederam os pacientes com diagnóstico psiquiátrico em algumas características relacionadas à psicopatia, como charme superficial, falta de empatia e espírito de manipulação, os gestores obtiveram as menores pontuações nas características de estilo de vida desviante, a exemplo da impulsividade. Apesar de algumas críticas fundamentadas (SMITH; LILIENFELD, 2013), esse estudo aponta evidências de características psicopáticas em ambientes de negócios.

O mesmo direcionamento foi corroborado alguns anos depois em estudo conduzido por Boddy (2010), que analisou 386 gestores de organizações de diversos setores e identificou que os psicopatas corporativos demonstraram influência negativa sobre a produtividade, bem como dificuldades organizacionais (por exemplo, percepção de responsabilidade social).

Nesse mesmo ano, Babiak, Neumann e Hare (2010) constataram, em um relevante estudo com 203 gestores, que 3,5% deles apresentaram pontuações elevadas em psicopatia (medida com a PCL-SV). Esses mesmos indivíduos também eram candidatos em potencial a ocupar cargos da alta gestão organizacional, tais como supervisores, diretores e vice- presidentes. Pontuações mais altas em psicopatia foram associadas positivamente com boas habilidades de comunicação, pensamento estratégico e capacidade criativa/inovadora, mas negativamente associadas a avaliação de desempenho (capacidade de trabalhar em equipe e habilidades de gerenciamento). Essa descoberta é uma evidência da capacidade desses indivíduos de manipular os que têm poder de decisão. Além do mais, constatou-se, por meio de análise fatorial confirmatória e modelagens por equações estruturais, uma estrutura latente de psicopatia semelhante entre as amostras de psicopatas corporativos, criminosos e a população geral.

Para Boddy, Ladyshewsky e Galvin (2010), a percepção dos trabalhadores é de que a organização tende a fazer negócios que não demonstram compromisso com o meio ambiente e não beneficiam os próprios trabalhadores nem a sociedade. Em um estudo com 346 trabalhadores australianos, eles constataram que indivíduos com altos níveis de psicopatia estavam alocados em posições hierárquicas superiores, fato que chama atenção para os problemas éticos nas organizações. Em geral, psicopatas em cargos de liderança dão pouca atenção a críticas, comprometem-se com negócios arriscados, não estimulam talentos e não criam uma equipe de trabalho harmoniosa, podendo culminar na perda de talentos reais (BODDY, 2011).

Mathieu e colaboradores (2014) expandem a literatura afirmando que comportamentos negativos por parte da gestão estão associados a distúrbios psicológicos, conflito trabalho-família e satisfação no trabalho. Eles assinalam que a psicopatia pode desempenhar um papel particularmente importante para explicar a dinâmica dos estilos de liderança disfuncionais e destrutivos. Esses resultados foram replicados posteriormente por Mathieu e Babiak (2015), que avaliaram 74 gestores e indicaram que a psicopatia corporativa, medida pelo B-Scan, foi o melhor preditor de satisfação no trabalho, intenções de rotatividade, motivação e negligência, para além dos estilos de liderança transformacional, transacional e laissez-faire.

Boddy et al. (2015) também destaca que, na presença de líderes psicopatas, trabalhadores são maltratados, funcionários leais são demitidos, os recursos são mal alocados ou roubados, os planos de negócio são caprichosamente rejeitados, pessoas são contratadas sem necessidade e os recursos intelectuais internos são abusados ou não utilizados. Ademais, o bem-estar dos trabalhadores diminui e a confusão organizacional substitui o senso de direção, culminando em declínio da ética organizacional e da reputação corporativa.

Mais recentemente, Mathieu e Babiak (2016a) foram pioneiros em testar a influência direta dos traços de personalidade psicopática na gestão abusiva. Eles avaliaram a percepção de 97 trabalhadores sobre 22 gestores (utilizando o B-Scan) e encontraram que tendências psicopáticas em gestores estão associadas à gestão abusiva e influenciam negativamente a satisfação com o trabalho e as intenções de rotatividade.

Nessa mesma direção, em um estudo de caso, Boddy (2017) apresenta as implicações de um Chief Executive Officer (CEO) com alta pontuação em psicopatia corporativa, cujos comportamentos estão relacionados ao bullying, à rotatividade e à demissão de pessoal. Os resultados também incluíram um declínio organizacional acentuado em termos de receita, comprometimento dos funcionários, criatividade e inovação.

Por fim, Carre et al. (2018) encontrou que a psicopatia corporativa, medida com base em dois modelos e instrumentos distintos (versão breve da SRP-III e TRI-PM), previu signifcativamente duas facetas de comportamento contraproducente no local de trabalho: assédio sexual e comportamentos desviantes. Todos esses estudos representam marcos importantes para as pesquisas na área da psicopatia corporativa, tentando desvendar os fatores associados à liderança destrutiva e seu impacto nas atitudes e comportamentos dos funcionários. Entretanto, as conclusões ainda são incipientes, especialmente com amostra de trabalhadores brasileiros, onde nenhuma pesquisa empírica foi realizada nessa direção.

Em se tratando do estilo de gestão do brasileiro, Pinto (2005), fundamentado pelos estudos de Hofstede (1997) sobre cultura organizacional, de Robert House (1999) sobre liderança carismática e do projeto GLOBE (Global Leadership and Organizational Behavior Effectiveness Research), identificou que no Brasil tendem a sobressair comportamentos de gestores que favorecem alguns membros, não comunicam sua visão aos subordinados e tratam as pessoas de forma injusta, apresentando indícios da presença de psicopatia corporativa entre gestores nacionais. Ele conclui que a empatia e a preocupação com os liderados, características dos líderes transformacionais, não estão presentes entre os gestores brasileiros. Tais gestores, além de ignorar as necessidades alheias, podem ser indelicados e rígidos. O quadro atual de frequentes mudanças no ambiente de negócios brasileiro (por exemplo, fusões e aquisições) produz demandas muito complexas para a liderança organizacional.

Para Avolio, Walumbwa e Weber (2009), embora as características pessoais influenciem a emergência do líder em um grupo, é o seu estilo de liderar o mais determinante nos resultados econômicos e relacionais. Por essa razão, e por compreender que a liderança é fenômeno amplo e complexo, a seguir, a relação entre psicopatia corporativa e estilo de gestão transformacional será explorada.

4.5 Psicopatia corporativa e os estilos de gestão transformacional, transacional e laissez-