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Psicopatia no trabalho e nas organizações

4 PSICOPATIA CORPORATIVA

4.1 Psicopatia no trabalho e nas organizações

O conceito de psicopatia corporativa começou a ser estudado cientificamente no final dos anos 1990, quando vários pesquisadores presumiram que a psicopatia teria implicações importantes para o contexto laboral. A especulação foi seguida pela publicação de um estudo de caso sobre psicopatia no trabalho (BABIAK, 1995), juntamente com um interesse da mídia sobre o tema (SMITH; LILIENFIELD, 2013). Contudo, em 1941, no livro clássico The Mask of Sanity, Cleckley já descrevia um homem de negócios próspero que apresentava características psicopáticas, como infidelidade, frieza, baixo autocontrole com bebida alcóolica e propensão a correr riscos (SMITH; LILIENFIELD, 2013), chamando atenção para o fato de que o psicopata poderia estar camuflado na sociedade contemporânea de maneira “funcional”.

Deve-se ressaltar que, por ser um fenômeno multinível, quando se fala de psicopatia corporativa é preciso diferenciar entre o psicopata na organização e a organização como psicopata (WEXLER, 2008). Nesse último nível, mais abrangente, fraudes raramente são detectadas e ainda são aceitas por serem “comuns aos negócios”. Isso se torna evidente à medida que a organização começa a alavancar em resultados materiais, apesar de perspectivas

morais e legais questionáveis. Para o autor que defende uma psicopatia sistêmica, “a psicopatia está sendo normalizada” (WEXLER, 2008, p. 232).

A sociedade atual vive um momento histórico, decorrente das ideias do neoliberalismo, de foco excessivo na esfera material, e isso vem alterando as prioridades na escala dos valores humanos (LÓPEZ-RUIZ, 2007). Dito de outro modo, a ética da cultura contemporânea não apenas exalta como também recompensa comportamentos psicopáticos. Assim, as organizações vêm se transformando em refúgios da “sociedade da camuflagem”, onde os psicopatas podem se esconder (HARE, 2013). Agora já não parece tão contraditório pensar como esses indivíduos têm acesso às organizações.

Grupos de “afinidade” em geral, como os religiosos, políticos ou sociais, são particularmente atrativos para os psicopatas, devido à confiança coletiva que os membros têm uns nos outros. Essa mesma lógica se aplica às organizações de trabalho, ainda que possuam uma fundamentação totalmente diferente para justificar sua existência: são projetadas para combinar o trabalho de diversas pessoas e culminar num produto ou serviço a ser vendido, ou seja, com fins lucrativos na grande maioria das vezes. Mas como há uma aceitação inerente do sistema a respeito do modo de ser desse indivíduo, é muito provável que o psicopata encontre vantagem em estar em uma organização, especialmente as mais “modernas”, cujos controles são menos burocráticos e mais difusos (BABIAK; HARE, 2006). Com efeito, Boddy (2014) encontrou em estudo realizado com 304 trabalhadores da Grã-Bretanha que cerca de 35% já tinha trabalhado com um psicopata corporativo.

Existe um ciclo imbricado de atuação do psicopata corporativo. Primeiramente, a pessoa com tendências de psicopatia seleciona e é selecionada por organizações ávidas por ganhos rápidos. Num processo seletivo, quanto menos clara e definida for a posição, o que acontece com frequência para cargos com níveis hierárquicos elevados, mais chance tem o psicopata de ser selecionado (BABIAK; HARE, 2006). As aparentes competências de planejamento estratégico, pensamento crítico, autonomia e capacidade de liderança facilmente seduzem o entrevistador, manipulando os resultados da seleção. Em seguida, o psicopata realça suas “habilidades” para se alinhar ao propósito da organização. Uma vez atuando, faz acordos com pessoas de poder, que confiam nele, e manipula situações que parecem lícitas, mas de fato só beneficiam o próprio psicopata e seus aliados. Finalmente, a atuação do psicopata resulta num golpe com algum ganho de ordem econômica e/ou psicológica ou se torna um escândalo público (WEXLER, 2008).

Babiak e Hare (2006) apontam estilos distintos de psicopata corporativo: os manipuladores corporativos ou vigaristas; os opressores corporativos; e os marionetistas

corporativos. Os primeiros são adeptos de usar os outros para perseguir fama, fortuna, poder e controle. São enganadores, egocêntricos, manipuladores e superficiais. Não se importam com as consequências de seus atos e quase nunca assumem responsabilidades, sempre culpabilizando pessoas ou situações alheias. Nunca ponderam o sofrimento que podem causar às pessoas, pois não apresentam empatia, remorso ou culpa. No entanto, devido ao charme e estilo adaptativo e dissimulado, do tipo “camaleão”, podem agradar e construir relações, escondendo o lado obscuro de sua personalidade. Parecem ambiciosos, mas apresentam poucos objetivos de longo prazo.

Já os opressores corporativos são o grupo mais agressivo. São indivíduos mais abusivos que charmosos. Agem mais na coerção, humilhação, assédio, agressão, com receio de que tomem seu lugar. São insensíveis e se envolvem constantemente em conflitos. Violam normas sociais, são vingativos e rancorosos. Por fim, os marionetistas corporativos são, em essência, uma combinação dos estilos anteriores – usam tanto a manipulação quanto a opressão e representam o estilo mais perigoso. Figuras como Hitler exemplificam esse estilo, que geralmente aparece rodeado de seguidores controlados e hiperobedientes.

Alguns contextos organizacionais parecem ser mais propícios à atuação do psicopata corporativo do que outros. Em certos locais, o psicopata encontra espaço para se desenvolver sem que haja qualquer restrição. Características como o estresse, a má comunicação, a padronização, a falta de reconhecimento, a fuga à responsabilidade e a competitividade extrema (HELOANI, 2011) acabam por tornar o ambiente mais suscetível, e o psicopata corporativo aproveita para atuar. Assim acontece no caso de organizações em processo de mudança, onde o psicopata usa sua capacidade de manipulação para gerenciar pontos de vista discrepantes, e acaba se beneficiando na carreira (BABIAK; NEUMANN; HARE, 2010).

Babiak e Hare (2006) questionam se esse indivíduo teria êxito em uma organização com estrutura burocrática tradicional, uma vez que é comum seu comportamento de quebrar regras, não trabalhar bem em equipe e apresentar pouco interesse sincero por metas e objetivos da organização; portanto, nesse tipo de organização não é tão fácil se camuflar. Além disso, o psicopata parece não compartilhar da mesma ética organizacional da maioria dos trabalhadores, que acredita em um trabalho honesto, orgulha-se de fazer uma atividade digna e valoriza relações de longo prazo.

Em termos de tipos de organização pelos quais psicopatas corporativos são atraídos, há pouca evidência na literatura que verse sobre essa relação. Hare (1998) diz que poder, prestígio e dinheiro seduzem os psicopatas, e por isso parece lógico que eles sejam

atraídos para as organizações comerciais ou financeiras de grande porte, onde a meritocracia pode levar a esses ganhos. De fato, a empresa moderna tem sido descrita como excelente mecanismo para a criação de riqueza para seus gerentes (JONES, 2005). Os psicopatas corporativos seriam, pois, atraídos a integrar tais organizações financeiras e tentar alcançar as posições de gestão disponíveis.

Contrariando essa hipótese, um estudo na Austrália encontrou a presença de psicopatia no setor público (BODDY, 2010), provavelmente porque avaliou organizações de cunho político, o que parece ideal para os psicopatas corporativos. É provável que nessas organizações seja mais fácil esconder a falta de esforço e responsabilidade, uma vez que os processos de avaliação de desempenho não são rígidos e focados no lucro, como mais frequentemente acontece no setor privado.

Dois outros estudos internacionais corroboraram esses resultados, constatando que características psicopáticas percebidas em gestores tinham menos impacto direto sobre o sofrimento psíquico dos trabalhadores de organização do setor privado do que em uma amostra do setor público, onde os trabalhadores são mais propensos a sofrer violência psicológica (DI MARTINO; HOEL; COOPER, 2003; MATHIEU et al., 2014). De forma semelhante, porém no contexto educacional público, Perry (2015) encontrou tendências psicopáticas em sua amostra, revelando que a natureza da cultura universitária e seu sistema relativamente autônomo de governança também podem mitigar os efeitos de um psicopata no local de trabalho.

Por fim, Kristof (1996) também defende que o setor público pode atrair mais psicopatas devido à ambiguidade dos objetivos organizacionais e à maior burocracia, somado ao fato de não haver uma relação direta entre o desempenho individual e o sucesso organizacional (YU, 2014). Logo, diante do impacto que as atitudes dos psicopatas corporativos têm sobre as relações de trabalho e a produtividade da organização, o tema suscita atenção e interesse em aprofundar a investigação.

Uma vez que o psicopata age voluntariamente, violando normas estabelecidas e trazendo efeitos adversos para a organização e seus membros, será avaliada, no tópico a seguir, a relação entre a psicopatia corporativa e todos os comportamentos “negativos” que acabam interferindo na produtividade, seja direta ou indiretamente, por meio do bem-estar dos trabalhadores.