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Medidas sobre o tratamento do sobreendividamento em França

11. Tratamento do sobreendividamento no direito comparado

11.4. Medidas sobre o tratamento do sobreendividamento em França

França foi o segundo país europeu a criar legislação sobre o tratamento do sobreendividamento.229 É considerado o regime que se contrapõe ao modelo norte- americano.

Inicialmente, o sobreendividamento era regulado na Lei Niertz.230 No entanto, em 1991, este processo passou a fazer parte do Código do Consumo.

O regime instituído funciona através de uma fase administrativa231 que decorre nas “commissions de surendettement”.232 A sua função é a de instruir os processos, com a verificação da boa-fé do devedor e o apuramento dos valores do seu activo e passivo. Se estes valores foram questionáveis, a comissão pode pedir ao juiz que verifique a situação. O juiz de execução só intervém, assim, para resolver alguma questão jurídica controversa ou apenas em fase de recurso. Só o devedor é que tem legitimidade para iniciar este processo.

Apurada a condição financeira do sobreendividado, a comissão vai elaborar um plano de reestruturação de dívidas, cujo prazo máximo pode ter a duração de dez anos, posteriormente aprovado pelo devedor e pelos seus principais credores. Entretanto, pode a comissão requerer ao juiz a suspensão das execuções movidas contra o devedor.

A partir de 1995, reforçaram-se os poderes das comissões: por um lado, os sobreendividados deixaram de poder recorrer directamente ao tribunal; por outro, passaram a poder enviar ao juiz, a pedido do devedor, recomendações233 sobre medidas que este possa adoptar quando se frustrou o acordo amigável e o processo transitou para a fase judicial. Nesta última hipótese, o juiz vai elaborar um plano judicial de

228 Sobre o tratamento do sobreendividamento no direito francês cfr. PAISANT, Gilles, El Tratamiento del Sobreendeudamiento

de los Consumidores en Derecho Francês, in “EDC”, n.º3, Coimbra, 2001, pp. 69 ss.

229 O primeiro foi a Dinamarca, em 1984.

230 Posteriormente alvo de três revisões, em 1995, 1998 e 2003.

231 O sucesso deste procedimento fica a dever-se ao empenho do Banco de França que secretaria todas as comissões e suporta

todos os seus custos de financiamento, sendo por isso, um procedimento sem quaisquer custos para o sobreendividado. Cfr. FRADE, Catarina, A Regulação do Sobreendividament, …,ob. cit., p. 549.

232 Estas comissões são compostas por seis membros com funções deliberativas, quatro membros com funções consultivas e por

um secretariado, que é assegurado pela representação local do Banco de França. Um dos seus membros é um assistente social, que tem como missão ajudar a comissão a lidar com as condições humanas e familiares dos sobreendividados. Também têm um advogado que verifica a legalidade das reclamações dos credores e assegura a conformidade dos processos que seguem para a via judicial. Cfr. autor e ob. ult. cits.

233 O juiz é livre de seguir ou não estas recomendações. No entanto, por regra, a prática sugere um bom acolhimento por parte

pagamentos,234 vinculado ao devedor e aos respectivos credores. Outra medida importante introduzida nesta data, foi a criação de um mínimo vital, nos planos amigáveis e nos judiciais, que representa um valor monetário retirado do rendimento posteriormente entregue ao devedor para satisfazer as suas necessidades e do seu agregado familiar. Em alternativa, surge o rendimento mínimo de inserção, elevado em 50%, tratando-se de um agregado familiar. Ambas as medidas surgem como limites mínimos, permitindo ao juiz, se assim o entender, fixar valores superiores.

Na revisão de 1998, foi tido em conta os sobreendividados que não ofereciam sequer recursos para a elaboração de um plano de pagamentos viável. Por isso, as comissões e o juiz passaram a conceder uma moratória de três anos, mais tarde reduzido para apenas dois, durante a qual seria de esperar que o devedor melhorasse a sua situação financeira. Durante este período o devedor não podia ser alvo de execuções com fundamento nas suas dívidas. No final, e se a sua condição financeira melhorasse, seria aprovado um plano de pagamentos homologado pelo juiz; caso contrário, a comissão recomendava ao juiz que concedesse um perdão total ou parcial das dívidas.235

Mais tarde, em 2003, a lei passou a admitir, em alternativa, o processo de falência para as situações irremediáveis, onde nenhuma das alternativas anteriores era possível de ser posta em prática. Nestes casos, é nomeado um mandatário judicial que vai realizar a venda dos bens penhoráveis do devedor, quando existam, para posteriormente efectuar o pagamento aos credores.236 Todas as dívidas que não sejam saldadas serão perdoadas, na condição de que o devedor não poderá beneficiar deste processo novamente nos oito anos seguintes.

Relevante fica a ideia de que as comissões podem sancionar os credores pouco cuidadosos na concessão de crédito, nomeadamente por não terem respeitado a informação negativa sobre o devedor constante do ficheiro nacional de incidentes de pagamento, mantido pelo Banco de França, desde 1989. Este mecanismo pode passar pelo perdão parcial de determinadas dívidas.

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O conteúdo pode variar quer no plano amigável, quer no plano judicial de pagamentos. Algumas medidas previstas no Código do Consumo incluem: dilações de prazo, perdão de juros e de capital e liquidação de alguns bens, ficando, em princípio, excluída a habitação. Cfr. autor e ob. ult. cits.

235 As dívidas fiscais, de alimentos ou derivadas de processos criminais, estão sempre, em qualquer circunstância, excluídas do

perdão. Cfr. FRADE, Catarina, ob.ult. cit., p. 551.

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Estas alterações não foram muito bem recebidas por parte dos credores, que temiam uma desresponsabilização das obrigações do devedor. No entanto, rapidamente perceberam que era preferível receber por esta via, do que em sede de acção executiva. “São pagos mais tarde, mas são pagos.” Cfr. FRADE, Catarina, ob.ult. cit., p. 552.