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essa menina vem falar essas coisas comigo? Ela escreve cartas pra todo mundo há mundo tempo, nunca falou disso pra ninguém e resolveu falar

No documento filipegabrielribeirofranca (páginas 195-198)

isso justamente pra mim? Eu falei: “pronto, é a minha missão! O que

eu vou arrumar?””

. Mesmo com todo o estranhamento diante da situação, a professora se sente chamada a ajudar a estudante e reconhece tal experiência como parte integrante da docência e das relações produzidas dentro da escola, pois, segundo ela

“professor já é responsável por tantas

constituições dos alunos, porque eu não poderia conversar com ela sobre

isso numa boa?”

. A abertura de coração da estudante e seu pedido de socorro para a professora Otacília produz uma relação em que o “outro ou outrem é indispensável na prática de si a fim de que a forma que define essa prática atinja efetivamente seu objeto, isto é, o eu, e seja por ele efetivamente preenchida” (FOUCAULT, 2010c, p. 115). No entanto, essa vontade de ajudar acaba sendo freada após o diretor da escola tomar conhecimento dos acontecimentos e aconselhar a professora a ter mais “cuidado” nessa cumplicidade surgida com a estudante:

“Vai devagar, a escola pode não

entender e se isso cai nos ouvidos de outros órgãos pode te colocar numa

situação ruim”

. O conselho do diretor exemplifica as posições de sujeito que a escola deseja, já que “um corpo disciplinado pela escola é treinado no silêncio e em determinado modelo de fala” (LOURO, 2010, p. 21), ou seja, a professora Otacília é atravessada por uma linguagem da sexualidade que a diz “sobre o que falar e sobre o que silenciar, o que mostrar e o que esconder, quem pode falar e quem deve ser silenciado” (LOURO, 2010, p. 32).

Agindo dessa forma a escola vai exercendo importante papel nos processos de produção dos corpos das crianças e dos adolescentes. Ao hierarquizar e classificar os sujeitos pela classe social, etnia, sexo, gênero e sexualidade, a instituição escolar tem historicamente contribuído para re(produzir) as exclusões dos sujeitos que estão fora dos padrões hegemônicos, conduzindo-os ao lugar do “estranho” e do “excêntrico”. Mas a escola também pode duvidar e problematizar as verdades e certezas que

pairam sobre os corpos, os gêneros e as sexualidades, lembrando das maneiras com que eles costumam ser pensados e como as identidades tem sido afirmadas ou colocadas à margem da sociedade. Ao abraçar essa pedagogia talvez a instituição escolar seja capaz de desarranjar e reinventar as suas práticas, tornando-se um ambiente mais plural (LOURO, 2010), que se distancie dos silêncios e silenciamentos que comumente rondam as discussões acerca das relações de gênero e sexualidades.

7.2

“Existem livros, chegam livros, mas todo mundo tem um receio

muito grande de trabalhar com esse assunto, todo mundo tem um

cuidado muito grande”

: Silêncios e sexualidades

Pensando na educação básica, como uma das principais instâncias de atuação docente, sabemos da existência entre os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, de um documento intitulado Orientação Sexual (BRASIL, 1997). A existência deste documento oficial não garante que essa temática seja de fato trabalhada com @s estudantes, propiciando que muitas das vezes ela seja silenciada na escola. Por se tratar de um tema transversal e não se vincular especificamente a nenhuma disciplina, esse PCN tende a ser “esquecido” pel@s professor@s ou quando abordado acaba sendo acolhido principalmente pelas disciplinas de ciências e/ou biologia. Diante disso, trabalhar a discussão acerca da sexualidade corre o sério risco de ser levada para o aspecto anatômico-biológico e de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, dependendo das estratégias utilizadas pel@ docente para condução de sua aula. É importante destacar que:

A sexualidade não deve ser pensada como um tipo de dado natural que o poder tenta manter sob controle, ou como um obscuro domínio que o conhecimento tenta gradualmente descobrir. Ela é o nome que pode ser dado a um construto histórico: não uma realidade furtiva que é difícil de aprender, mas uma enorme superfície em forma de rede na qual as estimulações dos corpos, a intensificação dos prazeres, o incitamento ao discurso, a formação de um conhecimento especializado, o reforço do controle e resistências estão vinculados uns aos outros, de acordo com algumas poucas

estratégias importantes de saber e poder (BRITZMAN, 2010, p. 101).

Sendo assim, ao entrar na escola, em um curso de formação de professor@s ou em qualquer outro espaço, carregamos conosco as crenças, valores e marcas que constituem as nossas histórias e as nossas sexualidades. Não há como deixar pendurada do lado de fora das instituições essa bagagem que trazemos junto a nós. Nossas verdades são movediças e podem (devem!) ser abaladas, reconstruídas ou reforçadas, mas não podem ser separadas de quem somos.

Analisando a minha trajetória escolar, tanto na educação básica quanto no ensino superior, consigo identificar alguns momentos em que a sexualidade foi (ou tentou ser) abordada de forma bem sutil e discreta. Lembro-me de quando estudei o corpo humano na 4ª série do ensino fundamental. Todas as aulas sobre essa temática transcorriam de acordo com o planejado pela professora, aprendíamos sobre os órgãos e o funcionamento de todos os sistemas do organismo: sistema circulatório, sistema nervoso, sistema digestório, etc. Porém, para a professora existia um tabu a ser tocado: os sistemas reprodutores. Éramos crianças de 10/11 anos cheios de curiosidades que iam além das estruturas biológicas do corpo. Perguntas “indesejadas” pela professora iam brotando em nossas cabeças. Aquele momento para mim e para muitos colegas era especial, pois era a chance de falar de desejos, sensações e dúvidas que não tinham espaço para discussão em nossas casas com as nossas famílias.

Louro (2008b, p. 72) destaca que “sem a sexualidade não haveria curiosidade e sem curiosidade o ser humano não seria capaz de aprender”, uma vez que a curiosidade “vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que busca se assimilar ao que convém conhecer, mas a que permite desprender-se de si mesmo” (FOUCAULT, 2012c, p. 191). Assim, colocar o sexo em discurso era uma oportunidade rara e esperada por nós estudantes, mas se transformava em terror, insegurança e desconforto para a professora. Os incômodos que provocávamos produziam nela o movimento de nos direcionar novamente ao “tema” da aula, desvencilhando-se dos questionamentos “inconvenientes” das crianças e atribuindo à sexualidade

um outro lugar, excluindo-a da sala de aula. Por que essa exclusão? Será que a professora privilegiava certos saberes? Por que o desconforto no trato com a sexualidade? Que identidades ela estava produzindo?

Creio que as vidas dos professores e professoras muito podem dizer sobre seus percursos profissionais. A ligação entre suas vidas pessoal e profissional revelam possíveis caminhos no ato de produzir o conhecimento, na escolha de conteúdos e direcionamentos a serem tomados em sala de aula. Isso me leva a pensar nas concepções de sujeito que carregamos. E diante dessas concepções, quais são os sujeitos que pretendemos afetar e construir? Já na graduação em Educação Física, não tive nenhuma disciplina que trabalhasse especificamente com as questões da sexualidade. Isoladamente, um ou outro professor mencionava algo, superficialmente, sem nenhum aprofundamento. O que percebia de forma generalizada era que um silêncio se instaurava diante da abordagem da sexualidade, constituindo “algo que só pode ser significado pelos sujeitos que estão no contexto, estabelecendo relações e subjetividades a partir dessas situações de silêncio” (FERRARI e MARQUES, 2011, p. 20). Será que @s professor@s não se sentiam segur@s para lidar com essa discussão? Mas por que o silêncio prevalece quando o tema em debate é a sexualidade?

O tensionamento entre abordar ou não a temática da sexualidade dentro da escola é apontado pel@s professor@s coautor@s da pesquisa. Abaixo o professor Zé Bebelo faz uma narrativa expondo essa situação, trazendo vivências do contexto escolar e suas inquietações frente a tal assunto:

A sexualidade é uma temática discutida dentro das escolas em que você trabalha?

Não. Existem livros, chegam livros, mas todo mundo

No documento filipegabrielribeirofranca (páginas 195-198)