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Longe de refletir, seja o comportamento ou a estrutura social, uma representação muitas vezes condiciona ou até mesmo responde a elas. Isso é assim, não porque ela possui uma origem coletiva, ou porque ela se refere a um objeto coletivo, mas porque, como tal, sendo compartilhada por todos e reforçada pela tradição, ela constitui uma realidade social sui generis. Quanto mais sua origem é esquecida e sua natureza convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna. (MOSCOVICI, 2009, p. 41)

A percepção desses valores, descritos acima não acontecem em um vazio, são produtos e são produtores de sentido em uma realidade específica, que no caso, é a Escola de Música da UFRN. Essa escola, por sua vez tem sua história e deve seus valores a uma tradição que é continuamente revista e transformada.

Quanto a isso existem nos depoimentos e relatos diversos exemplos de uma mudança em andamento com relação à didática herdada para a didática praticada atualmente e aos objetivos de estudo dos alunos. Todos os entrevistados expressaram uma grande disposição para o acolhimento de seus alunos, independentemente da idade e uma visão acolhedora em relação ao paradigma da educação do conservatório.

Olhe, nossas formações foram perfeitas por causa das falhas que elas tiveram. Porque justamente a gente é uma ponte entre os professores ou alunos de professores que estudaram na Europa e todo mundo ia ser um grande virtuose E eles não estudaram pra ser professor e tinham muitas falhas na pedagogia. E são essas falhas que, penso, que estão movendo a didática no momento. Se você não repetir esses não ditos e esses comandos ...é como é que se diz... marciais... de uma didática que tá provado que não funciona. (P2 - Entrevista realizada em 2016).

Apesar disso, no mesmo ambiente em que se desenvolve essa transformação também notou-se a clara percepção de um modelo baseado nas práticas conservatoriais, reforçado pelas representações românticas de talento que ainda aparecem associadas às formas de pensar e às práticas da educação musical.

A mentalidade do conservatório, das escolas de música. [...] É uma mentalidade elitista inculcada na cabeça das pessoas, que inclusive gera muita frustração. [...] Assim, essa mentalidade elitista que tem no meio erudito tem a ver com isso, é bem vazio, sabe? Acho que as pessoas que pensam assim, tem pouca reflexão. E eu conheço muita gente que pensa assim, muita gente que é muito importante também, sabe? Só que antes, quando a gente é mais novo, essas coisas entram na cabeça e fica de uma maneira muito prejudicial. [...] então eu acho que isso tá melhorando cada vez mais. Mas tem um certo preconceito. Que eu acho que não tinha só haver com idade não, tinha haver com outras coisas, falta de conhecimento. (P1, grifo do autor) Não sei se isso passou pela sua cabeça, mas cria-se uma espécie de mito, né...Um adulto chega pra você e quer começar do zero, entendeu? Ele acha que não vai conseguir, ele acha que ... Por exemplo, muitas pessoas chegam pra mim perguntando: ‘ [nome do entrevistado] e aí? Tu acha que dá pra mim aprender cara? Nessa idade? (A2, grifo do autor)

“A1_Eu acho que adulto, jovem, como eu falei a gente deve abandonar mais o misticismo, que é uma visão romântica, de que alguns nascem com talento e tem que aproveitar aquele talento naquela hora, porque se não vai dar certo, nunca vai ser um grande [instrumentista]. Eu acho que esse é um mito do herói romântico que a gente deveria ter abandonado isso a muito tempo.

-Você ainda ouve isso pelos corredores?

A1_Ouço bastante, ouço bastante. Inclusive, como eu falei, alunos meus que são adultos às vezes veem um pouco dessa visão romântica: de que existe um herói, aquele

virtuose que nasceu pra aquilo e ele é que deve ser o cara que vai seguir aquilo. Você

deve fazer apenas em casa com os seus amigos.

-Você acha que existe ainda essa visão na Escola de Música?

A1_Existe, existe. Acho que existem visões muito diferentes em cada canto da...Assim, não é cem por cento, mas em geral existe muito, é muito cultivada essa visão ainda. De que existe o talento que a música é uma linguagem específica pra aqueles que escutaram esse chamado. Se a gente deixasse essa visão de lado a gente aproveitaria cada momento da música em sua essência, aproveitar cem por cento.”

Na revisão da literatura, notou-se também traços desse habitus conservatorial na abordagem dos temas e problemas de pesquisa, nota-se: “Aprendizagem pianística na idade adulta: sonho ou realidade?” (COSTA, 2004). Em diversos trabalhos a motivação sempre focada nos interesses, sonhos ou expectativas dos alunos (muitas vezes percebidos como

“sonhos”, algo intangível ou de difícil alcance), que tende a minimizar o papel dos professores, instituições, familiares e amigos nesse processo. Algo semelhante a perguntar sobre o que faz um adulto querer, se motivar, a estudar música se isso é algo tão distante para ele?

Quanto a Costa (2004) a reposta para a pergunta, se é sonho ou realidade aprender a toca piano na idade adulta, a resposta é:

“Depende. Minha resposta não é nem afirmativa nem negativa, porque o processo de aprendizagem, por ser pessoal, depende de uma série de fatores que estão além da predição de qualquer professor ou pesquisador. Pode ser possível se a pessoa quiser que ele seja, se ela estiver suficientemente motivada para isso, se estiver em boas condições fisiológicas e emocionais, se conseguir administrar seu tempo, se estiver disposta a enfrentar obstáculos, se estiver inserida num ambiente que a estimule e, sem sombra de dúvida, se encontrar um professor que saiba lidar com todas essas questões relativas ao universo do adulto. (COSTA, 2004, p. 95)

Em seguida, Gardner (1999, apud COSTA, 2004), em a sua teoria das inteligências múltiplas aponta para o talento (usando pelo autor com o mesmo sentido de inteligência musical na teoria de Gardner) como uma solução para da motivação, considerado um problema central para o estudo de música para adultos segundo o autor.

A teoria das inteligências múltiplas nos dá uma grande contribuição no primeiro caso [sobre a motivação], pois através dela podemos desenvolver a percepção de quais são os talentos naturais dos nossos alunos, aqueles que "brotam" espontaneamente na sua expressão, e assim direcioná-los a atividades satisfatórias. (COSTA, 2004, p. 95-95) .

Sendo assim, “um indivíduo que se dedica a uma atividade para a qual possui algum talento é naturalmente motivado, certamente terá progresso e evitará frustrações” (COSTA, 2004, p. 96). Essa solução reforça as representações de tradição romântica, do talento inato como necessário para o aprendizado bem-sucedido da música.

Essa solução reduz a responsabilidade do professor, e mesmo do aluno, no processo de aprendizagem porque é o “destino” (a sorte de ter essa inteligência de forma inata), que determina o componente crucial para o sucesso na música e a motivação necessária à sua prática.

Outra consequência também dessa abordagem ao mudar a palavra “talento” para “inteligência musical” ocorre o perigo do reforço de um comportamento associado ao habitus

conservatorial (“o forte caráter seletivo dos estudantes, baseado no dogma do ―talento inato.

(PEREIRA, 2012, p. 124)) ser agora tratado como “fato científico”. Para Pereira (2012):

O conservatório, desde a sua criação, tem dado o tom da educação musical, instituindo as práticas possíveis, organizando os significados, valores e ações referentes ao ensino musical. E o consenso sobre estas práticas conservatoriais perpassa não somente os cursos de Licenciatura em Música, como também as escolas especializadas, projetos sociais e as representações do senso comum sobre música e ensino musical. (PEREIRA, 2012, p. 121)

Aqui observou-se que esse habitus pode estar contido, além desses espaços citados acima, nos trabalhos acadêmicos reforçando as representações do senso comum. Notou-se também que, dentro do campo (BOURDIEU, 2010) da educação musical para instrumentos a introdução de novos elementos e a disputa entre novos valores que situam a profissionalização, o ideal de formação e o ideal de aluno, ora em uma perspectiva mais inclusiva hora em uma perspectiva mais romântica.

É interessante notar nesse ponto que o professor com um dos discursos mais inclusivos que demostrou plena consciência da existência de um paradigma que precisa ser transposto (P2) indicou um aluno seu (A1) que ainda percebe claramente as representações e valores associados a esse paradigma.

Nesse caso, isso não implica em afirmar que o discurso de um não corresponde a prática do outro, mas que no mesmo campo que constitui a educação musical na Escola de Música da UFRN estão em disputa valores e representações opostos com relação a um ou vários objetos. No caso, um desses objetos é a representação social de musicalização para adultos, que hora é vista por uma ótica mais abrangente e inclusiva, hora é vista segundo a tradição conservatorial, que afirma que se um aluno começa no instrumento “muito velho” ele não tem chances de crescimento ou profissionalização.

O discurso mais abrangente e inclusivo corresponde a formação de novos valores a partir de questionamentos de pesquisadores como os da área da educação musical, tais como Penna (2008), Pereira (2014), entre outros.

Também é formado a partir de discussões entre professores de instrumento, no entanto nesse caso a pesquisa aponta para a existência de “ilhas” formadas pelos professores de um determinado instrumento que, muitas vezes reproduzem entre eles os valores relacionados ao sistema conservatorial e em outras vezes os questiona. Nota-se, o colaborador P2 afirma que

“hoje temos professores de [instrumento] mais preparados para serem educadores do que a vinte anos”. Outro professor de outro instrumento já afirma exatamente o contrário:

Eu acho que no Brasil, hoje em dia, tem muito mais bons [instrumentistas] do que bons professores. (..)grande parte dos professores hoje em dia, não só de [instrumento], em geral, foram pessoas que tocam bem e que dão aula. A maioria não estudou pra isso, não reflete criticamente sobre maneiras melhores de ensinar os alunos, já vi muito preconceito com ...gente que estudou mais velho. (P1 - Entrevista realizada em 2016).

Outros ainda afirmam que não existe discussão a respeito da musicalização no seu instrumento entre seus pares e outros ainda que afirmam reproduzirem e concordarem com a forma de ensinar que receberam de seus professores da graduação.

No que diz respeito a questão da musicalização na idade adulta, os professores entrevistados que tiveram sua iniciação em uma idade considerada mais velha para o instrumento ou já próximo da idade adulta afirmam ter uma opinião contrária ou única em relação a seus pares.

Nesse sentido, ambos os professores nessa situação demonstram uma abordagem e uma percepção dos alunos mais velhos segundo a experiência pessoal deles, de modo a evitar os constrangimentos e as adversidades que passaram na sua experiência como alunos.