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Ao longo das entrevistas e da análise ficou cada vez mais evidente o valor do tempo para os alunos e professores. Semelhante ao conceito de capital de Bourdieu (1986), o tempo ou mais especificamente a quantidade de tempo disponível a um aluno, a exemplo do capital, é percebida como determinante para as chances de sucesso para práticas musicais e pode, sob certas condições, se transformar em capital cultural (segundo Bourdieu (1986) no seu estado institucionalizado esse capital é objetivado na forma de títulos, diplomas e certificados, etc.).

Nesse sentido o aluno que tem mais tempo para estudar no seu cotidiano tem mais “recursos” para o sucesso no estudo de música. A longo prazo o aluno que tem mais tempo disponível em anos, que começa mais cedo, tem mais “recursos” para seu sucesso profissional.

Essa atribuição de valor ao tempo pode ser percebida diversas vezes ao longo dos discursos dos colaboradores e parece ser de fundamental importância para orientar a percepção que os professores tem de seus alunos em relação a viabilidade de seu estudo e da profissionalização do aluno e dos próprios alunos orientando-os práticas para economizar o tempo e valorá-lo. Abaixo alguns exemplos do tempo sendo usado como capital.

Pra você ter tempo de chegar na faze adulta com um nível bom. É diferente de você começar com vinte e quatro anos ter que dar conta de uma outra universidade, ainda ter que trabalhar, eu era bolsista, tinha que me sustentar. Eu só acho que pra você ser instrumentista eu acho que você tem que começar cedo e tem que ter tempo pra se dedicar [...]. (A3)

Eu penso assim: que seu um adulto que nunca tocou um instrumento, pretende ter aula pra se tornar um profissional de concerto isso eu acho que é bem difícil, não é tão plausível. Já na criança, ou adolescente ou jovem isso já é mais possível porque a uma série de coisas envolvidas: o sujeito ainda não definiu uma profissão; o sujeito pode lidar com o tempo de estudante se tiver apoio em casa, estrutura em casa melhor ainda; e aquilo pode ser uma profissão com um lugar certo. Mas um adulto você tem que ter uma outra realidade. [...] Um sujeito que trabalha tem seu horário de trabalho então... sobra muito pouco tempo ou um tempo…digamos se ele conseguir ...um adulto não consegue ter duas horas diárias seis dias na semana. E às vezes os jovens também não conseguem isso e quanto ainda tem estão muito excitados pelas outras obrigações. [...] Há e tem uma coisa importante, nas universidades, nas escolas como a nossa, a gente tem assim: 18 semanas você mude de grau. O fator tempo pra mudar de grau é muito importante isso faz parte do sistema. É uma quantidade de tempo pra você cumprir os objetivos de um determinado repertório. Isso é um grande problema. Se você é um sujeito que você tem uma grande aptidão pra aquilo, natural, digamos assim, disposição, não é aptidão, disposição para o instrumento você consegue fazer bem direitinho. Senão você não consegue cumprir, se desenvolver num tempo. Se desenvolveria, mas talvez com o dobro de tempo ou com aquele tempo, mais a metade dele. Então isso é um grande problema e com aquelas coisas que eu falei: a falta de tempo, que todo mundo precisa ganhar dinheiro ou trabalha e ainda está estudando e tal...Tem uma complicação disso. Os currículos pedem o desenvolvimento num determinado espaço de tempo. E as pessoas tem que se adequar a isso. Isso eu acho que os conservatórios poderiam ser mais felizes nisso. Dar tempo pra o tempo do sujeito. E não o sujeito de qualquer forma se encaixe naquele limite de tempo. (P2)

Essa percepção do tempo forma o pilar das representações sociais a respeito da musicalização de adultos. Ao relacionar com os pontos anteriores, nos parece que tanto

estudantes quanto professores percebem o tempo, suas dimensões e implicações para o estudo do instrumento da mesma maneira. A distinção que observou-se é que os alunos, que se iniciaram em um momento em que tinham menos o capital tempo a seu favor ou que tem problemas com a falta de capital tempo para seu estudo, tendem a adotar um foco mais preciso nos estudos e procurar uma consciência maior do seu objeto de estudo para driblar essa desvantagem:

Você sabe que você decide uma coisa, eu tirando por mim...dezesseis anos eu sabia qual era coisa que eu queria eu sabia que eu não podia mais perder tempo. Meus amigos que eram da minha idade, que tocavam vinte vezes mais do que eu. Eu sabia que eu tinha que correr contra o tempo, eu sabia que eu tinha que me esforçar, trabalhar mais para tentar chegar no nível deles e estar tocando junto no caso na mesma [instituição] lá [lugar]. Essa é a vantagem. (P5 - Entrevista realizada em 2016, grifo do autor).

[...] como eu comecei muito tarde eu estava muito consciente do meu processo de aprendizagem. Eu acho que isso me possibilitou depois me tornar um bom professor. Porque eu sei como eu aprendi. Eu não aprendi com oito anos de idade e aquilo não sei se parte da minha memória consciente, entendeu? (P1 - Entrevista realizada em 2016).

No entanto a ênfase nesses aspectos, ou a própria percepção dessas estratégias como aliadas no estudo dos adultos apareceu apenas nos alunos ou professores que fazem uso delas. Deste modo, todos os colaboradores percebem o tempo como um capital e como elemento de suma importância para o estudo da música.

Com relação ao tempo cotidiano em horas para o estudo, a percepção é unânime no sentido de que se o aluno não tem um estudo sistemático e cotidiano o aprendizado musical não acontece de modo adequado. No entanto, no que diz respeito ao tempo em anos, necessário para a profissionalização, apenas os que enfrentaram ou enfrentam a ausência desse capital como obstáculo tendem a perceber o tempo como fator importante, mas não determinante do sucesso profissional.

Ao considerar que todos os entrevistados que se iniciaram fora de uma idade considerada ideal para o instrumento estavam trabalhando com música quando estudantes (no caso da ex-aluna entrevistada) ou atuam no momento dessa pesquisa com atividades profissionais em música, mesmo os alunos, a questão da iniciação na infância como fator

determinante para a profissionalização se constitui efetivamente como uma representação social negativa que se impõe para formar a representação social da musicalização para adultos.

Ao lembrar da educação musical como um campo (BOURDIEU, 2010), uma área autônoma constituída historicamente em torno de um conjunto de valores, observou-se que nesse campo é um valor a dedicação em horas ao estudo do instrumento. Percebemos que o valor tempo em anos disponíveis para a profissionalização está relacionado ao ideal de profissionalização do campo e será discutido em seguida.

Lembrou-se também que, frequentemente, o capital econômico também pode ser convertido no capital tempo. Isso é particularmente válido se a posição que o sujeito ocupa no espaço social lhe proporcionar recursos suficientes para assegurar que o tempo gasto (ou investido) no estudo de um instrumento não afetará a renda para sua subsistência. Popularmente se diz: tempo é dinheiro, inversamente lembrou-se que dinheiro é tempo.

7 A PROFISSIONALIZAÇÃO E O CONSERVATÓRIO

Observou-se entre alunos e professores duas tendências em seus discursos, professores se referem sempre a necessidade de formação voltada à execução instrumental. Para eles é importante que o aluno desenvolva as competências necessárias à execução. Notou-se que alguns professores citam a necessidade de adequar o repertório aos alunos, respeitando suas particularidades, mas o valor aqui é a excelência da execução ao instrumento.

Se isso parece óbvio estando os professores em atuação nos cursos técnicos e superiores (bacharelado) da Escola de Música da UFRN, esse modelo de formação nem sempre corresponde às aspirações e à realidade profissional expressas no discurso de seus alunos, que muitas vezes já exercem atividades profissionais no meio musical, principalmente o ensino de música, que não está contemplado na proposta de formação do curso superior nem tão pouco do curso técnico, mas que representa para os alunos entrevistados o objetivo da formação ou um meio de subsistência durante a formação. Segundo a UFRN:

O perfil requerido para o Bacharel em Música é o do músico, na mais ampla acepção da palavra: aquele que é sábio, douto ou perito na arte da música. Em outras palavras, o do profissional apto a exercer sua condição de músico, capaz de articular o conhecimento musical nas suas diversas áreas de abrangência, aproveitando o melhor de suas potencialidades. Isto significa que ele estará não somente credenciado a desempenhar a carreira concertística e acadêmica, como também preparado para incursões mais específicas e detalhadas em nível de pós-graduação. (UFRN, 2006, p. 16)

Esse documento teve o cuidado de explicitar que o curso de música não é “empenho orientado formação ou a modificação da conduta do músico, e que não se limita à mera acrobacia de músculos e dedos” (UFRN, 2006, p.13). No entanto o exposto acima parece reforçar a colocação de Pereira de que “merece destaque a falta de clareza, no decorrer da história e até mesmo hoje, do que seja um músico artista, um músico professor (também artista), e um professor de música – e as funções e espaços de atuação de cada um. (PEREIRA, 2012, p. 77).

O que os professores ressaltam em seus discursos é que o aluno precisa tocar, e que tem um tempo rígido para fazer isso dentro da academia. Quando perguntados dos objetivos da

formação que desejam para o aluno suas respostas variam entre o desenvolvimento de habilidades técnicas ao desenvolvimento de habilidades musicais abstratas, frequentemente ressaltando a adequação às capacidades e potencialidades do aluno.

A definição do que seria um bom profissional ou um nível de performance considerado “profissional” também é imprecisa, algumas vezes aparece relacionada com a capacidade de executar um o repertório solista ou orquestral, por exemplo (P6), outras vezes permanece indefinido tanto nos discursos de alunos quanto professores.

No caso dos alunos, a meta vem primeiro associada a obtenção de um determinado trabalho com música e não necessariamente aos atributos ou requerimentos técnico-artísticos desse trabalho. Eles dizem, “quero me tornar professor universitário, ou maestro”, ao invés de “quero tocar concerto tal ou sinfonia tal”.

Fica claro, porém, que essa meta demanda tempo. Um tempo organizado e multifacetado.