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MERCANTILIZAÇÃO DA NATUREZA E NEOLIBERALISMO ENQUANTO RACIONALIDADE

NEOLIBERALISMO E MERCANTILIZAÇÃO DA NATUREZA: UMA CRÍTICA A PARTIR DO PROGRAMA MUNICÍPIOS VERDES

2. MERCANTILIZAÇÃO DA NATUREZA E NEOLIBERALISMO ENQUANTO RACIONALIDADE

A segunda metade do século XX trouxe c onsigo mudanças paradigmáticas e, desde o m da II guerra mundial, um novo padrão internacional veio sendo con gurado, a partir da presença cada vez mais intensa de grandes corporações empresariais transnacionais e de organizações internacionais, como a ONU, FMI, BID, BIRD (PORTO-GONÇALVES, 2015), era a vez do neoliberalismo, gradativamente, assumir o guião do capital, tanto do ponto de vista econômico, quanto do político e do ideológico.

O neoliberalismo pode ser interpretado, portanto, enquanto racionalidade fortemente presente nas estratégias ambientais implementadas pelo Brasil, de modo que o próprio discurso de sustentabilidade é por ela apropriado. Neoliberalismo e sustentabilidade transformam-se em faces da mesma moeda, fato que nos conduz a pensar a economia verde e todo o arranjo institucional embasado na lógica de compensação ambiental, enquanto uma operacionalização estratégica dos interesses do mercado.

A discussão de “racionalidade” pressupõe a compreensão do neoliberalismo enquanto um novo modelo de regulação em escala global (DARDOT; LAVAL, 2016), capaz de dirigir a política, a economia e a cultura do sistema mundial, fornecendo o contexto e a direção do modo com que os homens interagem e afetam a natureza (HEYNEN e ROBBINS, 2005). Nesse sentido, é fundamental identi car as interfaces existentes entre o avanço do capital, o fortalecimento da racionalidade neoliberal e o agravamento da crise ambiental, a partir da transformação da natureza em mercadoria e do estabelecimento da economia verde; é fundamental ainda, atentar para a atuação do Estado e dos demais atores políticos envolvidos nos processos de mercantilização em questão, de modo a desvendar a miríade de interesses que compõem as dinâmicas de preservação e compensação ambiental na Amazônia.

Embora o Estado se torne mais um, dentre os agentes operantes do sistemas político e econômico, a sua ação se mantem ativa e juridicamente diferenciada diante das forças mercadológicas; é através da desregulamentação e da liberalização dos mercados, ou de acordos internacionais de livre-comércio, que os Estados permitem que a globalização

nanceira e o comércio internacional sejam fortalecidos (MATIAS, 2005).

Os agentes econômicos, por sua vez, dependem da infraestrutura política e jurídica do Estado, fato que sugere a desconstrução da ideia de

“passividade governamental” e “desobrigação do Estado”, confrontando o mito do mercado autorregulador, fortemente retomado pela ideologia neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016). Logo, diante do neoliberalismo, o Estado não está “ausente”, muito pelo contrário, segue redimensionando seu campo de ação, atraindo investimentos, e exibilizando condições legais, scais e sociais para o desenvolvimento do capital.

É nesse sentido que o “compromisso neoliberal” tem caráter político disciplinar e dá-se ao governo o papel de “guardião das regras jurídicas, monetárias, comportamentais” e “vigia das regras de concorrência no contexto de um conluio o cioso de grandes oligopólios” (DARDOT; LAVAL, 2016, p.191); pode-se dizer, portanto, que as fronteiras entre as ações do Estado e do Mercado estão cada vez mais uidas.

O fortalecimento da racionalidade neoliberal e do capitalismo nanceiro está naturalmente acompanhado de consequências sociais, dentre elas, Dardot e Laval (2016) destacam a concentração de renda e patrimônio acelerada pela nanceirização da economia, a de ação salarial e o aumento do poder dos detentores dos capitais, o acirramento da competitividade entre as forças de trabalho em escala mundial, e ainda, a “capitalização da vida individual”32. Estas consequências assolam fortemente o Brasil, que após o estabelecimento do neoliberalismo, enfrentou o acirramento dos con itos gerados na era nacional desenvolvimentista, a falência do sistema centralizado e estatista de promoção da modernização, e, consequentemente, a aceleração do endividamento público e externo (BUARQUE,2008).

Além disso, a racionalidade neoliberal, ao so sticar o funcionamento do capitalismo moderno-colonial, altera as dinâmicas de dominação da natureza a um patamar nunca dantes alcançado. A crise ambiental se con gura, portanto, a partir dos con itos gerados pela apropriação dos recursos naturais, seja esta apropriação direta ou indireta; discute-se não apenas a expansão agrícola e as disputas pelo regime de propriedade da terra, mas também, outros processos de dominação e apropriação dos recursos que se dão no âmbito político, no momento em que o Estado se exibiliza e cede às pressões dos Agentes do Mercado, consolidando

32 A “Capitalização da vida humana” trata-se de uma consequência subjetiva do capitalismo nanceiro que, segundo Dardot e Laval (2016, p. 201) ocorre no momento em que “cada sujeito foi levado a conceber-se e comportar-se, em todas as dimensões de sua vida, como um capital que devia valorizar-se”.

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arranjos institucionais repletos de interesses economicistas. Estes arranjos acabam agravando o padrão exploratório das relações entre o homem e a natureza e in uenciando, consequentemente, o modo com que são pensadas e executadas as políticas ambientais.

Se a crise ambiental está diretamente ligada ao processo de evolução do capital, uma etapa da acumulação merece importante destaque: a transformação da natureza em mercadoria. Nesse sentido, ao teorizar sobre a cção da mercadoria, Polanyi (2000) assume “terra” e “natureza” enquanto sinônimos, reiterando que a transformação da natureza em mercadoria é decorrente, dentre outros fatores, de um problema intrínseco a concepção liberal, marco político da modernidade, e ao desenvolvimento do capital:

o estabelecimento do regime privado de propriedade, e de modo mais amplo, a privatização de bens comuns.

A dominação dos territórios e da natureza, por mais grave e nefasta que seja, é apenas consequência de questões ainda mais profundas, cujas bases encontram-se na dualidade da racionalidade moderna e colonial. Em uma perspectiva decolonial, Anibal Quijano (2005) investiga a colonialidade na America Latina, argumentando que o eurocentrismo e seus dualismos incidem na hierarquização dos seres humanos e nas capacidades de exercício do poder entre o norte e o sul. Deste modo, para Quijano (2005), a dualidade do “corpo” e do “não corpo” (pregada pelo cristianismo) e a separação entre “razão/sujeito” e “corpo”, pensada por Descartes, culminam no afastamento entre aqueles que, dotados de alma e razão, mereceriam a salvação, e tudo ou todos que, objetivados, não teriam outro destino, senão o da inferiorização, controle e subjugação.

É nesse sentido que o capitalismo e a modernidade colonial servem como ponto de partida para o estabelecimento da linha divisória que separa o homem da natureza, cujo raciocínio concebe aquilo que é “natural”

enquanto “coisa exterior” e, portanto, apta a ser dominada, transformada , Em um sistema de mercado, todas as rendas devem derivar da venda de alguma coisa, qualquer que seja a fonte da renda do indivíduo, essa pressupõe a venda de algo, nem que seja da força de trabalho; logo, o fortalecimento da dinâmica industrial e a a rmação da sociedade de mercado são responsáveis pela transformação daquilo que é a substancia natural humana (natureza e homem) da sociedade em mercadoria (POLANYI, 2000). Sendo assim, no contexto da economia de mercado, mercantiliza-se

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a natureza e a vida, aumentando-se as suas possiblidades de exploração, uma vez, pois, que a própria revolução técnica transforma o poder de manipulação da matéria, aumentando os domínios sobre a condução da sociedade e do ambiente e desorganizando as relações humanas (PORTO-GONÇALVES, 2015); sob tais condições, di culta-se o estabelecimento de um sistema produtivo com base em uma racionalidade diferente da do mercado, do lucro e da competitividade, ao passo que se fortalecem as engrenagens socialmente destrutivas daquilo que Polanyi (2000) chamou de moinho satânico . 33

3. O PROGRAMA MUNICÍPIOS VERDES (PMV/PA) ENQUANTO DISPOSITIVO TÉCNICO