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Metódica Estruturante: Breves Apontamentos

2 O DIREITO E A COMPLEXIDADE: A NORMA JURÍDICA E A REALIDADE

2.3 INTERPRETAÇÃO E CONCRETIZAÇÃO DA NORMA

2.3.1 Metódica Estruturante: Breves Apontamentos

Embora este trabalho não tenha por escopo um aprofundamento42 na metódica estruturante de Müller, é oportuno que se faça aqui uma breve introdução a ela. A teoria estruturante começou a ser escrita em 1966, quando Müller reformulou o conceito de norma, rompendo com o modelo positivista. Já a metódica, como forma de implementação dessa teoria, surgiu em 1971: nela Müller se ocupa da instrumentalizar e legitimar o processo de construção da norma43.

A partir de um novo conceito de norma, Müller propôs uma metódica jurídica, que conjuga os momentos de compreensão e aplicação do Direito, naquilo que se pode classificar como uma teoria da argumentação (mais que um processo meramente hermenêutico ou silogístico). A ideia é estabelecer diretrizes para que a aplicação do Direito se dê de forma objetiva, transparente e auditável, permitindo que se conheça, de fato, a técnica decisória adotada pelo operador do Direito, escapando da retórica, do voluntarismo ou do decisionismo.

Portanto, a Metódica de Müller (2009) não é lógica formal, nem é mera técnica para solucionar demandas jurídicas. A metódica vai além da lógica formal, da técnica e da hermenêutica pura e simples: ela é resultado de um salto epistemológico e resulta em uma teoria eticamente comprometida com a concretização da norma e seu poder de transformação social. Não abandona a técnica, a lógica ou a hermenêutica, mas as ultrapassa, partindo, como já afirmado, da reformulação do que se entende por norma jurídica. A visão de Müller não é excludente, mas integrada, no sentido de que não abandona categorias que já se mostraram úteis ao deslinde de controvérsias jurídicas, tais como os cânones de Savigny (1979), mas as considera a partir de um novo (e prospectivo) olhar, que objetiva racionalizar a práxis jurídica.

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Estudo necessário e salutar, mas que extrapolaria os limites desta dissertação, que está centrada em uma conexão pragmática entre a Teoria da Norma em Müller, o Pensamento Complexo e a concretização do Direito Ambiental Brasileiro.

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Pode-se dizer que a primeira parte da obra de Müller, referente à teoria da norma, foi traduzida no Brasil com o título Teoria Estruturante do Direito – Vol. I, publicada pela Editora Revista dos Tribunais. O segundo volume, que se refere mais especificamente à metódica, ainda se encontra em processo de tradução, por Renata de Souza Dias Mundt. No entanto, um resumo dos fundamentos da metódica jurídica encontra-se na obra Metodologia do Direito Constitucional (Editora RT), mas também é abordado na Teoria Estruturante do Direito I e na obra “O Novo Paradigma do Direito”, (ambos publicados pela Editora RT). Além do original alemão, existe a tradução francesa da Metódica Jurídica (Discours de Méthode Juridique), de Olivier Jouanjan, cuja última edição data de 1996 (Ed. Presses Universitaires)n.

Existe, ainda, a ressalva de que os métodos hermenêuticos tradicionais foram pensados à luz do Direito Civil e sob uma ótica privatista, insuficiente à concretização de regras de Direito Constitucional e de Direito Público em geral, com forte teor político e conceitos jurídicos indeterminados, a serem construídos, em constante interlocução com a realidade, diferentemente dos institutos civilistas clássicos, de há muito consolidados. (MÜLLER, 2012)

Assim, Müller entende que os métodos de Savigny devem ser preservados, mas adaptados e fundamentados à luz do Direito Público e do Direito Constitucional, complementados pelos métodos adicionais exigidos por uma perspectiva publicista e pensados à luz da não-identidade entre norma e texto normativo (MÜLLER, 2012).

Para Müller (2012, p. 53), a fundamentação da decisão (“da norma jurídica, da portaria governamental ou administrativa, da sentença judicial”) deve, ao mesmo tempo, convencer os atingidos e permitir que a decisão possa ser controlada pelas instâncias superiores, pelos destinatários da norma, pelos titulares de funções estatais e pela própria ciência jurídica. Existe, em sua metódica, uma busca por publicidade, racionalidade e objetividade44.

O texto normativo – que não esgota o conceito de norma – serve como ponto de partida (eficácia de determinação do texto da norma) e limite (eficácia de limitação do texto da norma). Retomam-se as palavras de Müller acerca do texto normativo no processo de construção/concretização da norma:

a norma jurídica não se encontra já pronta nos textos legais; nestes encontram-se apenas formas primárias, os textos normativos. A norma só será produzida em cada processo particular de solução jurídica de um caso, em cada decisão judicial. (2009, 164)

Serve, portanto, o texto normativo para impulsionar e cercear a atividade do jurista (FONTOURA, 2009, p. 97). O texto normativo faz parte daquilo que Müller chama de “programa da norma”, ou seja, o conteúdo linguístico do texto, a lei positivada. A par do programa da norma, a concretização demanda um aprofundamento no “âmbito da norma”, ou seja, sua conexão com a realidade, que pode estar prevista tanto no Direito, quanto fora dele. Nesse sentido:

é parte constitutiva da norma o âmbito normativo, isto é, o conjunto parcial de todos os fatos relevantes (âmbito fático), como elemento que sustenta a decisão jurídica como Direito.

[...]

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Nesse sentido, Müller diferencia-se da Teoria Crítica do Direito e das correntes anti-positivistas, que não propõem uma metódica, nem atentam ao conteúdo da lei posta.

A ‘norma jurídica’ torna-se, dessa forma, um conceito complexo, composto do âmbito normativo e do programa normativo (isto é, do resultado da interpretação dos dados linguísticos). (MÜLLER, 2009, 164)

Há elementos do âmbito da norma previstos por outras normas, como, por exemplo, regras procedimentais, cujo conteúdo se esgota dentro do próprio Direito, sem necessidade de apreensão de conteúdos sociais, históricos, filosóficos, sociológicos etc.45. E há, é certo, elementos do âmbito da norma que não são aferíveis nos limites do ordenamento jurídico, necessitando ser preenchidos por conteúdos atinentes a outras realidades. Há, ainda, possibilidade de que parte do âmbito normativo seja aferido em conteúdos jurídicos e parte seja aferido em conteúdos extrajurídicos. Nesses termos, afirma Müller:

Para a elaboração da norma jurídica, para sua construção com base no caso jurídico e nos textos normativos, o jurista necessita tanto de dados linguísticos como também de dados reais; essa é a realidade da atividade cotidiana de tomada de decisões jurídicas. Como dissemos, o resultado da interpretação de todos os dados linguísticos é um resultado intermediário e provisório denominado programa normativo.

O jurista constitui o ‘âmbito normativo’ ao submeter os fatos a um duplo exame com base no programa normativo: primeiro, esses fatos continuam sendo relevantes para o programa normativo elaborado? Segundo, são compatíveis com o conteúdo do programa normativo? Em seguida, podem ser justificadamente incorporados na decisão. Isso deve ser passível de controle no Estado Democrático de Direito, graças à apresentação clara dos argumentos.”(MÜLLER, 2009, 164) [g.n.]

A concretização da norma, segundo a metódica de Müller (2009; 2011; 2012) utiliza-se de uma série de elementos que se podem classificar como:

a) elementos metodológicos strictiori sensu (interpretações gramatical, histórica, genética, sistemática e teleológica, bem como princípios isolados da interpretação da constituição);

b) elementos do âmbito da norma (jurídicos ou extrajurídicos); c) elementos dogmáticos (doutrina e jurisprudência);

d) elementos de teoria;

e) elementos de técnica de solução;

f) elementos de política do Direito e política constitucional.

A conjugação entre os elementos acima indicados seria o que Calanzani (2009, p. 16) refere, metaforicamente, como a harmonia das notas: “A música não é

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No caso do Direito Ambiental, o âmbito da norma está ligado às ciências naturais, à Biologia, Ecologia, Geografia, Geologia, Hidrologia, aos mais diversos ramos da Engenharia etc.

o conjunto das notas musicais, mas a harmonia das notas. A justiça, portanto, não é simplesmente a lei, aplicada de forma isolada, mas a interpretação harmoniosa de todos os seus comandos.”

Müller (2012, p.106) deixa claro que os elementos constantes dos itens ‘a’, ‘b’ e parte do item ‘c’ são “diretamente referidos a normas, enquanto os restantes “não são diretamente referidos a normas e nessa medida estão restritos a funções auxiliares na concretização”. Nesse sentido, havendo contradição entre os elementos no processo de concretização, os elementos diretamente referidos a normas terão precedência em relação aos demais, ou seja, os elementos metodológicos, os elementos do âmbito da norma e parcela dos elementos dogmáticos encontram-se em posição hierarquicamente superior aos elementos de teoria, elementos de técnica de solução e elementos de política do Direito e política constitucional. E aqui não se fala em preponderância do texto normativo, mas preponderância da norma, tal qual entendida em Müller (texto + realidade, programa normativo + âmbito normativo, ser + dever ser).

No entanto, nos casos de conflito, preponderam os elementos gramatical e sistemático, haja vista a função limitadora do texto legal (legitimamente produzido, em conformidade formal e material com a Constituição), próprio do Estado Democrático de Direito.

Um último aspecto importante do processo de concretização da norma proposto por Müller (2012), é que ele não se dá apenas em relação à aplicação da lei em uma demanda judicial, mas em qualquer hipótese em que se faça valer a norma. O processo de concretização dá-se, também, pela observância da norma, que deixa de fazer existir o conflito e é atribuição de todos os titulares de funções, não só do juiz que julga o caso concreto, mas de todos os poderes, que se encontram em igual nível hierárquico quanto à função concretizadora.

A partir das ideias de norma jurídica em Müller e de sua instrumentalização, por meio da metódica estruturante, busca-se, a seguir, apontar sugestões de concretização dentro do Direito Ambiental.