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Origens do Pensamento Complexo

1 ECOLOGIA, ECONOMIA E COMPLEXIDADE: DA INTERDEPENDÊNCIA CONCEITUAL AO ENFRENTAMENTO DA CRISE

1.4 A TEORIA DA COMPLEXIDADE: O ELO PERDIDO ENTRE A ECONOMIA TRADICIONAL E A SOCIEDADE DE RISCO

1.4.1 Origens do Pensamento Complexo

O pensamento complexo foi difundido no meio acadêmico, sobretudo nas ciências humanas e sociais16, pelo filósofo e sociólogo francês Edgar Morin. No entanto, a ideia de complexidade possui raízes no pensamento místico oriental: é

16 A complexidade foi mais facilmente compreendida e assimilada pelas chamadas “ciências duras”.

As ciências humanas têm um contato mais recente com tais ideias. Quanto ao Direito, as incursões são rarefeitas, sobretudo quanto ao aspecto prático.

possível aferir com clareza a complexidade nas escrituras budistas (principalmente na escola Mahayana, o chamado “Grande Veículo”) e em escritos zen budistas17

, mais especificamente na obra de Eihei Dogen, monge budista que levou o Zen ao Japão no século XII, após longa peregrinação e prática monástica na China (TANAHASHI, 1993).

No pensamento Zen, os chamados koans, raciocínios aparentemente contraditórios e sem resposta, são demonstrativos da complexidade, que rejeita as certezas, o dualismo e insta o praticante a ultrapassar o pensamento tradicional. Na prática monástica, o pensamento complexo se mostra quando o Mestre procura “quebrar” o espírito do discípulo, mudando as regras, quando este se crê sabedor das mesmas (HERRIGEL, 1993).

Além disso, do ponto de vista Zen, as coisas podem simultaneamente “ser” e “não ser”, sem que isso seja necessariamente uma contradição. Partindo-se da ideia básica de impermanência, que constitui o cerne do Budismo, tem-se que as coisas não possuem uma natureza essencial e imutável, por isso, não podem ser classificadas ou rotuladas de maneira categórica: estando em constante mutação, não há uma realidade intrínseca que permita uma decisão binária, de certo, errado, bom ou mau (DAÏSHI, 2000). Essa mesma ideia pode ser traduzida na concepção ocidental de complexidade:

Essa complexidade, que se anuncia no que Merleau-Ponty designava como ‘o enigma da natureza’, e que está contida, por exemplo, na seguinte observação: ‘A natureza não é apenas um objeto’ – o que permite afirmar, simultaneamente, contra Descartes, que a natureza é algo mais do que um simples objeto (é, acrescenta Merleau-Ponty, um ‘objecto do qual surgimos’) e, contra aqueles que pretendiam igualar a natureza ao sujeito, que esta é também um objecto. (OST, 1995, P. 280).

A depender do observador e do momento observado, o objeto apresentará feições diversas. Existe, pois, no pensamento oriental, especialmente no Zen, um liame entre observador e observado, que seriam, assim, uma só coisa, realidades que se unem e interpenetram, afetando-se mutuamente. Todos os seres estão

17 A autora deste trabalho travou intenso contato com o pensamento complexo de matriz zen budista

por intermédio do Mestre Zen japonês Ryotan Tokuda-Igarashi (Igarashi Roshi), de quem é discípula direta. Recebeu a ordenação leiga no ano de 2003 e a ordenação monsástica no ano de 2008. Participou intensamente das atividades (retiros) no Mosteiro Zen Eisho-Ji, em Pirenópolis, Goiás, durante os últimos dez anos. Teve oportunidade de acompanhar o mestre em longas viagens pelo Brasil. Nessas viagens, permaneceu em templos e mosteiros em que se realizam teishôs (palestras) sesshins (retiros) e zazen (meditação), práticas zen budistas tradicionais, que incluem o estudo das escrituras e a celebração de cerimônias. A prática zen budista tem por fim último a compreensão profunda e a internalização da complexidade em todos os atos da vida. O estudo da complexidade, no Zen, vincula-se fortemente à prática.

conectados e cada ato gera consequências infinitas no universo (KAPLEAU, 1978). Da mesma forma, esse raciocínio consta das ideias de complexidade propaladas no Ocidente: “Nós somos aquilo em que nos tornamos. E tornamo-nos no que somos, um com o outro, um pelo outro.” (OST, 1995, p. 274). Essas ideias incidem do micro ao macrocosmos e são facilmente transpostas e aplicáveis à realidade biofísica, em que a unidade e interdependência são fatores determinantes do equilíbrio ecológico.

Não se pode dizer que a visão oriental original de complexidade rejeite o pensamento cartesiano, pois é anterior a ele. Pode-se dizer, ao revés, que o pensamento cartesiano não contempla a complexidade, que já era estudada (e praticada) por filósofos e religiosos budistas aproximadamente dois mil anos antes da concepção do Discurso do Método, por Descartes: Sidarta Gautama, o Buda Histórico, nasceu aproximadamente no ano 500 a.C. (HANH, 2001); Descartes (2009) nasceu em 1596 e escreveu o Discurso do Método por volta de 1628.

Nesse sentido, recorrendo-se às raízes histórico-filosóficas que fundamentam o pensamento complexo e a interdependência, fincadas há aproximadamente 2.500 anos, chega-se aos ensinamentos de Sidarta Gautama, o Buda Histórico, via Thich Nhất Hạnh (2011), pacifista e monge zen vietnamita, indicado para o Prêmio Nobel da Paz por Martin Luther King, cujas palavras, ainda que bastante poéticas, conduzem à tomada de consciência pretendida por Morin e Kern (2005):

Se você for um poeta, verá claramente que há uma nuvem flutuando nesta folha de papel. Sem uma nuvem, não haverá chuva; sem chuva, as árvores não podem crescer e, sem árvores, não podemos fazer papel. A nuvem é essencial para que o papel exista. Se ela não estiver aqui, a folha de papel. Sem uma nuvem, não podemos ter papel, assim podemos afirmar que a nuvem e a folha de papel inter-são 18 . Se olharmos ainda mais profundamente para dentro desta folha de papel, nós poderemos ver os raios do sol nela. Se os raios do sol não estiverem lá, a floresta não pode crescer. De fato, nada pode crescer. Nem mesmo nó podemos crescer sem os raios do sol. E assim nós sabemos que os raios do sol também estão nesta folha de papel. O papel e os raios do sol. intersão. E, se continuarmos a olhar, poderemos ver o lenhador que cortou a árvore e a trouxe para ser transformada em papel na fábrica. E vemos o trigo. Nós sabemos que o lenhador não pode existir sem o seu pão diário e, consequentemente, o trigo que se tornou seu pão também está nesta folha de papel. E o pai e a mãe do lenhador estão nela também. Quando olhamos desta maneira, vemos que, sem todas estas coisas, esta folha de papel não pode existir. Olhando ainda mais profundamente, nós podemos ver que nós estamos nesta folha também. Isto não é difícil de ver, porque quando olhamos para uma folha de papel, a folha de papel é parte de nossa percepção. A sua

18 Neologismo criado por Thich Nhat Hanh,referente à ideia de interdependência e interconexão: a

existência está toda conectada, nada “é” intrinsecamente, mas o é em suas relações, ou seja, inter-é (daí o verbo” interser”).

mente está aqui dentro e a minha também. Então podemos dizer que todas as coisas estão aqui dentro desta folha de papel. Você não pode apontar uma única coisa que não esteja aqui- tempo, espaço, a terra, a chuva, os minerais do solo, os raios do sol, a nuvem, o rio, o calor. Tudo coexiste com esta folha de papel. É por isto que eu penso que a palavra interser deveria estar no dicionário. "Ser" é interser. Você simplesmente não pode "ser" por você mesmo, sozinho. Você tem que interser com cada uma das outras coisas. Esta folha de papel é porque tudo o mais é. Suponha que tentemos retornar um dos elementos à sua fonte. Suponha que nós retornemos ao sol os seus raios. Você acha que esta folha de papel seria possível? Não, sem os raios do sol nada pode existir. E se retornarmos o lenhador à sua mãe, então também não teríamos mais a folha de papel. O fato é que esta folha de papel é constituída de "elementos não-papel". E se retornarmos estes elementos não papel às suas fontes, então absolutamente não pode haver papel. Sem os "elementos não-papel", como a mente, o lenhador, os raios do sol e assim por diante, não existirá papel algum. Tão fina quanto possa ser esta folha de papel, ela contém todas as coisas do universo dentro dela.

Assim sendo, embora tenha começado a ganhar eco nos meios acadêmicos há cerca de duas décadas, é fato que o pensamento complexo não é algo novo em termos filosóficos: perspectivas não dualistas da realidade têm origens remotas, as quais foram obscurecidas pelo reinado das máquinas e pela facilidade de entender o mundo em termos binários.

As ideias de caos e complexidade voltaram à pauta dos cientistas e, agora, voltam também a ser discutidas no bojo das ciências humanas e sociais. No bojo do Direito, o conceito ainda causa estranheza e merece, assim, ser melhor compreendido – e aplicado.