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Eu Não Vejo, Logo Não Existe

2 O DIREITO E A COMPLEXIDADE: A NORMA JURÍDICA E A REALIDADE

2.4 A CONCRETIZAÇÃO DA NORMA AMBIENTAL

2.4.2 Eu Não Vejo, Logo Não Existe

O dano ambiental nem sempre é percebido de plano. Na verdade, quase nunca o é. Pelo menos, não em sua integralidade: o que se vê é apenas aponta do

iceberg. Suas consequências são difusas e se protraem no tempo. São

consequências invisíveis, imperceptíveis e que podem, inclusive, ser constatadas em local distante daquele em que a infração foi perpetrada. Tempo e espaço, no Direito Ambiental, adquirem feições diversas daquelas verificadas nas relações de causalidade direta.

Em novembro de 2011, as cinzas do vulcão chileno Puyhue chegaram ao Brasil: “cinzas pegaram carona em uma corrrente de ar polar e viajaram 2,6 mil quilômetros até atingir o RS e SC” (CINZAS..., 2011), carreando riscos à saúde. O mesmo acontece com a poluição do ar e da água, que é carreada de um lado a outro, sem que as comunidades diretamente afetadas se deem conta disso.

Outro exemplo: quando se destroi uma floresta, não se percebe, de imediato, o impacto daquele desmatamento no aquecimento global. O dano que se pode visualizar limita-se às árvores que foram cortadas ou destocadas. Também não se percebe o alto impacto que tem a destruição dos habitats na extinção das espécies. Levando o raciocínio além, verifica-se, ainda, os danos irreversíveis decorrentes da perda de biodiversidade, que impactam o equilíbrio ecológico como um todo. E isso não acontece apenas com desmatamentos, mas com incêndios e outras intervenções indevidas em áreas sensíveis, espaços territoriais especialmente protegidos, unidades de conservação etc.

Da mesma forma, tem-se que destruição de áreas de preservação permanente é causa de erosão, voçorocas, desabamentos, impactos no equilíbrio hídrico, na paisagem etc. No entanto, o dano que chega aos sentidos (à percepção) do julgador é somente a intervenção (às vezes pequena) à beira de um riacho, em uma encosta ou topo de morro, por exemplo, sem que seus reflexos sejam computados.

Um exemplo já abordado neste trabalho: quando se adquire um papagaio do tráfico, não se percebe, de imediato, os impactos negativos sobre a biodiversidade decorrentes da retirada de um único animal da natureza, nem da mortandade que subjaz ao tráfico de animais.

Os exemplos são muitos. O que importa, contudo, é ter em mente que existe uma teia causal de infinitas interações ecológicas influenciadas por uma única infração ambiental.

Contudo, sejam grandes ou pequenos, os impactos ambientais mostram-se de difícil detecção aos olhos leigos, habituados com danos diretos, que saltam aos olhos, como aqueles existentes, por exemplo, em uma acidente de automóveis. Um automóvel abalroa a traseira de outro: as causas, as consequências e os prejuízos restam imediatamente demonstrados. No máximo, pode-se fazer uma perícia para descobrir as causas. As consequências são aferidas por três orçamentos. E assim se resolve o caso. No Direito Ambiental, múltiplas são as causas. E fatoriais são as consequências, de exponencial danosidade.

Como visualizar, por exemplo, os agrotóxicos contidos em uma bela salada? Aparentemente, trata-se de uma refeição saudável. Mas, repleta de agrotóxicos, pode causar graves danos à saúde. O risco e o dano decorrentes dos agrotóxicos são insidiosos50. Como o são também os danos decorrentes da transgenia, não somente para a saúde humana, como para o meio ambiente51.

Invisíveis são, ainda, os danos à saúde decorrentes da poluição eletromagnética e da poluição luminosa. As relações de causa e efeito não são aferíveis de maneira simples e direta.

Esses novos riscos/danos não têm cor e se caracterizam, muitas vezes, pela incerteza, imprevisibilidade e invisibilidade. A lógica que paira sobre as questões ambientais é “eu não vejo, logo não existe”.

Um, dentre muitos casos que poderiam ser citados, é a decisão prolatada no Agravo de Instrumento nº 2006.04.00.037294-0/PR (BRASIL, 2007a), que enfrentou o problema dos organismos geneticamente modificados da seguinte forma: “De resto, ressalto não identificar na liberação do plantio risco ao meio ambiente,

50

Sobre agrotóxicos e a sociedade de risco, ver FERREIRA, Maria Leonor Paes Cavalcanti. Uma análise do Procedimento do Registro de Agrotóxicos como forma de assegurar o Direito Fundamental ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado na Sociedade de Risco. Dissertação apresentada ao curso de pós-graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas, da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Direito, área de concentração Instituições Jurídico-Políticas. Florianópolis, 2009.

51

Uma abordagem jurídica acerca dos transgênicos à luz da sociedade de risco pode ser encontrada em: FERREIRA, Heline Sivini. Desvendando os organismos transgênicos: As interferências da sociedade de risco no Estado de Direito Ambiental Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

visto que o plantio dessa variedade de semente de soja geneticamente modificada já foi efetuado em outras oportunidades no Estado do Paraná, não havendo notícia de dano ambiental.” [g.n.] (Anexo B)

Ou seja, uma questão científica altamente complexa, como a transgenia e seus efeitos, foi relegada à mera opinião dos operadores do Direito, que não enxergaram, de fato, o risco envolvido. A conclusão silogística foi: eu não vejo o

risco, logo ele não existe.

É preciso reverter essa lógica. Para tanto, é necessário dar cor a esses

novos danos para que a sociedade (para os objetivos deste trabalho, a sociedade

jurídica) os compreenda e se mobilize efetivamente. É preciso tornar visível o dano, ou seja, explicitá-lo cabalmente por meio da argumentação e da utilização de instrumentos metajurídicos que tragam a realidade ao bojo do processo. É a concretização da norma ambiental no seu sentido mais lato, conforme previsto por Müller.

As normas e princípios “reclamam um preenchimento via implementação fática. São portais que, uma vez transpostos, conduzem a um campo fértil receptivo àquilo que se semear” (DERANI, 2009, p. 200)

A resistência ideológica às ideias de proteção do meio ambiente muitas vezes se exterioriza por meio do decisionismo, retórica pura e simples e apelo ao senso comum. São muitas as decisões que dispensam, inclusive, prova técnica, veiculando apenas a íntima convicção do julgador, à revelia da ciência.

Algo, portanto, está errado e precisa ser transformado. A abordagem técnica, fria e direta parece não ser suficiente para a concretização ambiental da norma. A argumentação lógica, a citação de leis, resoluções, regras, princípios que seriam suficientes em uma lide tributária ou previdenciária, parecem não surtir os mesmos efeitos quando se trata de uma demanda ambiental. O cotejo entre instrumentos já consolidados e a nova juridicidade ambiental faz com que, quase sempre, esta última fique em posição desvantajosa.

Aqui cabe a referência feita por Derani (2009, p. 15) ao conceito de

“Instituição Jurídica” apresentado por Habermas como um conjunto de normas jurídicas que não podem ser suficientemente legitimados por meio de referências positivistas a processos. Tão logo a validade destas normas seja questionada na prática diária, não basta a referência à sua legalidade. Ela precisa de uma justificação material, porque ela própria pertence ao conjunto de organizações do mundo da vida e juntamente com normas de agir informais constituem o pano de fundo do agir comunicativo. Consequentemente, o Direito precisa estar assentado em valores

socialmente aceitáveis, capazes de justificar a sua prática (ver Jürgen Habermas, Theorie, cit., v.2, p. 536) [g.n.]

Para despertar o interesse dos operadores do Direito e gerar ação efetivamente comprometida com a proteção ambiental, necessário é ultrapassar o tecnicismo, o formalismo jurídico, em busca de concretização do conteúdo ambiental da norma: “a concretização do Direito é uma das formas de manifestação da política. A hermenêutica vinculada estritamente à interpretação do texto ignora o inafastável caminho inverso: o do mundo da vida para a norma escrita.” (DERANI, 2009, p. 196).

O caminho que conduz do mundo da norma escrita ao mundo da vida passa por uma abordagem nova, que inclui a reformulação na linguagem, sensibilização ecológica, uso de metáforas, argumentos metajurídicos, exemplos práticos, analogias, textos jornalísticos, fundamentos de ordem econômica, sociológica, holística e ecossistêmica entre outros.

Bonavides (1994, p. 338) afirma que “o verdadeiro problema do Direito Constitucional de nossa época está em como juridicizar o Estado Social, como estabelecer e inaugurar novas técnicas ou institutos processuais para garantir os Direitos sociais básicos, a fim de fazê-los efetivos.” [g.n.]

Portanto, a partir do diagnóstico de insuficiente compreensão e aplicação do Direito Ambiental por parte do operador tradicional do Direito, o que se propõe, aqui é uma nova abordagem, como forma de instigar a transformação da racionalidade jurídica clássica no que concerne à matéria ambiental.