• Nenhum resultado encontrado

O CASO DA DEFENSORIA PÚBLICA: IGNORÂNCIA, INSIGNIFICÂNCIA E HIPOSSUFICIÊNCIA

2 O DIREITO E A COMPLEXIDADE: A NORMA JURÍDICA E A REALIDADE

3 JURISPRUDÊNCIA AMBIENTAL: DO PENSAMENTO CARTESIANO AO PENSAMENTO COMPLEXO

3.3 O CASO DA DEFENSORIA PÚBLICA: IGNORÂNCIA, INSIGNIFICÂNCIA E HIPOSSUFICIÊNCIA

O caso ora analisado, em sentido diametralmente oposto ao anterior (o Caso Cornélia), trata da apreensão de aves em poder de uma pessoa de poucas posses, representada pela Defensoria Pública da União (DPU). Esse caso é exemplificativo de uma série de casos análogos, que veiculam as mesmas teses jurídicas.

Nesses casos, os argumentos levantados para legitimar a infração migram do “bom tratamento” dado às aves (veterinários, belos viveiros etc.) para a insignificância, hipossuficiência e ignorância do infrator. Ambos os casos (argumentos usados pelos ricos e argumentos usados pelos pobres) são merecedores de análise neste trabalho, haja vista tratar-se de teses amplamente utilizadas pelos infratores e, muitas vezes, acatadas pela jurisprudência.

Ilustra-se aqui o posicionamento de parcela do Poder Judiciário acerca da baixa lesividade/insignificância da conduta consistente no cativeiro doméstico de animais silvestres, sobretudo o cativeiro de aves. É corrente a ideia de que a punição prevista em lei é excessiva e não merece ser aplicada. A lei costuma ser ignorada. Esses casos são paradigmáticos e refletem também a visão de boa parte da sociedade acerca do tema.

Decisões que chancelam a insignificância de condutas previstas como crime e infração ambiental podem ser encontradas não apenas em relação a passarinhos, mas em delitos diversos: de crimes de pesca a desmatamentos ou intervenções em áreas de preservação permanente, passando pelas mais variadas infrações ambientais. É comum, inclusive, a ridicularização, pela mídia e pelos operadores do Direito, acerca da fiscalização em relação diversas infrações ambientais.

A falta de compreensão da multidimensionalidade do bem jurídico tutelado leva o julgador à conclusão de que a lei é excessivamente severa e que não merece ser aplicada. Trata-se novamente de uma visão fragmentada, que isola o objeto de estudos. Um pássaro isolado pode parecer, sim, insignificante. Mas não o será se for visto em seu contexto, aliado às relações com o meio, a reprodução, a função ecológica, o papel na cadeia alimentar, a dispersão de sementes etc. Portanto, carecem de uma visão complexa as decisões que consideram insignificante e de

80

baixa lesividade o cativeiro de animais silvestres. Esse raciocínio (a não- insignificância à luz da complexidade) pode ser aplicável à grande maioria das infrações ambientais. Poucas podem realmente ser consideradas de baixa lesividade se consideradas sob a ótica das interações ecológicas.

O caso em análise cuida de infração ambiental consistente no cativeiro doméstico de sete aves silvestres, para a qual foi imposta a multa de R$ 3.500,00 (três mil e quinhentos reais). A multa foi arbitrada em montante fixo, nos termos da legislação vigente à época da infração (Decreto 3.179/99), que impunha multa de R$ 500,00 (quinhentos reais) por animal apreendido.

O autor, assistido pela Defensoria Pública da União, ingressou com ação em face do IBAMA visando à declaração de nulidade de multa imposta pela Autarquia. Afirmou haver realizado transação penal perante o Juizado Especial Criminal da Capital, o que levou à extinção da punibilidade naquela esfera. Argumentou que o valor da sanção se afigurava exorbitante e havia sido arbitrado sem critérios. Aduziu também que não lhe foi garantido o prévio exercício de defesa na via administrativa e invocou a prescrição da ação punitiva.

A ação foi proposta em 13 de novembro de 2012. No dia 27 do mesmo mês, a juíza federal substituta da Vara Federal Ambiental de Florianópolis, Marjôrie Cristina Freiberger Ribeiro da Silva, em juízo de cognição sumária julgou o pedido de antecipação da tutela, antes mesmo de ouvir o IBAMA.

Afastou diversos argumentos arrolados na inicial, como o de ausência de defesa, já que restou comprovado nos autos que o autor efetivamente defendeu-se na esfera administrativa. Afastou também a alegação de prescrição. Reconheceu a prática da infração, porém, entendeu aplicável o perdão judicial afirmando que “A jurisprudência, todavia, tem se inclinado a não considerar lesiva e, portanto, merecedora de perdão judicial, a conduta consistente na manutenção de poucos espécimes de animais em cativeiro em ambiente doméstico.” (BRASIL, 2012g, Evento4) [g.n.]

Invocou, inicialmente, a aplicação dos §§ 2º e 3º Art. 11, do Decreto n. 3.179/99 (BRASIL, 1999), vigente à época da infração:

§ 2o No caso de guarda doméstica de espécime silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode a autoridade competente, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a multa, nos termos do § 2o do art. 29 da Lei no 9.605, de 1998.

§ 3o No caso de guarda de espécime silvestre, deve a autoridade competente deixar de aplicar as sanções previstas neste Decreto, quando o agente espontaneamente entregar os animais ao órgão ambiental competente. [g.n.]

Do ponto de vista formal, verifica-se que referidos dispositivos não se aplicam ao caso em análise. As prerrogativas ali conferidas destinam-se à autoridade administrativa autuante, dentro da esfera de discricionariedade técnica decorrente das circunstâncias específicas do caso concreto, verificáveis por ocasião da fiscalização, em atividade tipicamente administrativa decorrente do poder de polícia. Trata-se dispositivo veiculado em decreto atinente às infrações ambientais, que tem por objetivo determinar o procedimento a ser adotado quando da imposição das multas pelos órgãos ambientais.

O comando não se destina ao Judiciário, como nos casos de perdão criminal. Nesses casos, quem aplica a pena é o Judiciário que, pelo princípio da simetria, pode deixar de aplicá-la. No caso do perdão administrativo, quem aplica a pena é a autoridade administrativa, sendo essa mesma autoridade apta a deixar de aplicar a sanção conforme as circunstâncias específicas do caso concreto. As esferas de atuação são distintas, sendo também distintas as formas de responsabilização administrativa e criminal, as quais gozam, inclusive, de relativa autonomia.

Como não se trata de norma direcionada ao Poder Judiciário, esse Poder não deve, em regra, imiscuir-se no mérito administrativo, haja vista o Princípio da Separação dos Poderes, constitucionalmente consagrado.

Já o mencionado § 3º refere-se à entrega espontânea dos animais ao órgão ambiental. No caso analisado, não houve entrega espontânea, mas coercitiva, por ocasião da fiscalização. Entrega espontânea não é sinônimo de ausência de resistência à fiscalização, mas de entrega sem que seja necessária qualquer fiscalização. Qualquer entrega decorrente de fiscalização deixa de ser espontânea, como é óbvio.

Quando da autuação, as aves devem ser apreendidas pelo IBAMA (Art. 2o do Decreto 3179/9981, vigente à época da autuação82), não havendo qualquer

81

Art. 2o As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções: [...] IV - apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração;§ 6o A apreensão, destruição ou inutilização, referidas nos incisos IV e V do caput deste artigo, obedecerão ao seguinte: I - os animais, produtos, subprodutos, instrumentos, petrechos, equipamentos, veículos e embarcações de pesca, objeto de infração administrativa serão apreendidos, lavrando-se os respectivos termos; II - os animais

discricionariedade ou flexibilidade nesse sentido. A lei prevê a apreensão e entrega das aves ao IBAMA e não o contrário. A apreensão é a regra, o depósito, por parte do infrator, é exceção.

Em um raciocínio semelhante ao Caso do Papagaio do Mangue, a decisão afirmou não se tratar de animal ameaçado, o que ilidiria a infração. Nesse caso, de fato as aves não eram ameaçadas. Contudo, a interpretação deu-se de forma equivocada: ao se verificar espécie ameaçada, a multa é majorada. Já o fato de não se tratar de espécie ameaçada não desnatura a infração, nem a torna insignificante.

Verifica-se, contudo, que diferentemente do Caso do Papagaio do Mangue (item 3.1), a magistrada procurou fundamentar seu entendimento no texto normativo; não partiu de mera retórica ou decisionismo puro e simples. Ainda que a interpretação conferida a alguns dispositivos seja questionável, a fundamentação é explícita e pode ser rebatida.

Utilizou-se a juíza do dogma da subsunção. Não negou vigência à lei, nem deixou de aplicá-la. Apenas conferiu-lhe equivocada interpretação no que tange à conceituação de entrega espontânea e à competência para deixar de aplicar a multa. A decisão já se aproxima um pouco da objetividade pretendida por Kelsen, e não em mero arbítrio.

No entanto, presa à positividade, não atentou à realidade no que tange ao bem jurídico tutelado, ou seja, à normatividade. O foco kelseniano na positividade (especificamente nos textos legais) deixou de lado a normatividade própria do Direito, que “somente pode ser percebida nas relações entre ser e dever ser, mas que foi ignorada pela separação entre o Direito e a realidade.” (FONTOURA, 2009)

Como fundamento da decisão, a magistrada arrolou duas decisões relativas ao perdão judicial na esfera criminal, este sim, afeto exclusivamente ao Judiciário. O perdão judicial difere da multa administrativa, prerrogativa do Poder Executivo e infensa à alteração judicial quanto à aplicação e dosimetria, sendo sua sindicabilidade restrita a aspectos de legalidade. Nesse sentido, precedente do apreendidos terão a seguinte destinação: a) libertados em seu habitat natural, após verificação da sua adaptação às condições de vida silvestre; b) entregues a jardins zoológicos, fundações ambientalistas ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados; ou c) na impossibilidade de atendimento imediato das condições previstas nas alíneas anteriores, o órgão ambiental autuante poderá confiar os animais a fiel depositário na forma dos arts. 1.265 a 1.282 da Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916, até implementação dos termos antes mencionados;

82

O mesmo raciocínio é adotado atualmente no Decreto 6.514/08, que rege as infrações administrativas ambientais na esfera federal.

Superior Tribunal de Justiça, datado de 2011, no Recurso Especial nº 1.233.484 (referente a caso diverso dos autos, mas perfeitamente aplicável, haja vista as semelhanças objetivas), estabelece que não cabe ao Poder Judiciário intervir na aplicação ou conversão da multa ambiental

É que, uma vez respeitados os parâmetros mínimo e máximo estabelecidos na legislação de regência para fixação da multa, o que, ao que se tem, ocorreu na espécie, não cabe ao Poder Judiciário substituir o administrador no exercício de seu poder discricionário acerca da conveniência e oportunidade da escolha da sanção a ser aplicada. [...]

Com efeito, o mérito do ato administrativo é o produto de um juízo de valor realizado pela autoridade pública, quanto às vantagens e consequências, as quais deverão ser levadas em conta como pressuposto da atividade administrativa. Assim, em se tratando de aplicação da multa por infração à legislação ambiental, não cabe ao Poder Judiciário intervir. (BRASIL, 2011)

Na fundamentação do acórdão proferido no citado Recurso Especial nº 1.233.484 constam dois outros precedentes que afastam a ingerência judicial na fixação de multas, sendo o primeiro deles afeto diretamente à seara ambiental e o segundo, relativo ao poder de polícia de forma geral (a decisão cuidava da aferição de bombas de combustível).

[...]

3. A multa fora estabelecida dentro dos parâmetros legais, correspondente à 0,04% do valor máximo permitido, com base nos fundamentos apresentados pelo órgão competente, não havendo que falar em violação pelo acórdão a quo dos dispositivos legais invocados.

4. Cabe ao administrador público, em virtude do seu poder