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2 O DIREITO E A COMPLEXIDADE: A NORMA JURÍDICA E A REALIDADE

2.4 A CONCRETIZAÇÃO DA NORMA AMBIENTAL

2.4.4 O Uso de Metáforas

Uma ideia pode ser expressa de maneira própria, direta, em sua primeira significação. Ou pode ser usada de maneira figurada, metafórica, em que se faz uso de uma transposição para valorizar seu significado: “O termo metáfora é de origem grega e significa transposição, mudança, translação”. (CALANZANI, 2009, p. 20).

As metáforas têm condão de simplificar ideias aparentemente difíceis, tornando-as simples, compreensíveis. O uso de metáforas assemelha-se a contar histórias por meio de parábolas ou analogias: o significado torna-se claro por meio de um processo maiêutico, indutivo ou dedutivo, feito pelo próprio receptor. A ideia é assimilada de maneira mais fácil, transpondo, por vezes, filtros e preconceitos.

Segundo Calanzani (2009, p. 16), as metáforas jurídicas “nada mais são do que uma tentativa de trazer o Direito ao campo da essência e da simplicidade” e “a simplicidade é símbolo de perfeição.” De fato, quando se consegue dissecar uma

ideia ambientalmente complicada ou pouco compreendida e traduzi-la de forma simples, pode-se atingir mais facilmente os objetivos de convencimento do julgador.

O uso de metáforas é uma forma eficaz de tradução dos mais intrincados temas ambientais, sobretudo para diferenciar institutos ambientais dos institutos tradicionais afetos a outros campos do Direito. Evidentemente trata-se de processo mais trabalhoso que a simples transcrição literal de material já produzido, pois demanda um processo criativo. O uso de metáforas “serve para incutir os conceitos de forma simples e didática” (CALANZANI, 2009, p. 22). Nos termos propostos por Müller (2009), tratar-se-ia de mecanismo destinado à demonstração do âmbito da norma.

A comparação (ou a metáfora) reduz o nível de abstração do texto (SQUARISI; SALVADOR, 2004). A metáfora traz aos sentidos aquilo que vive no mundo das ideias, permitindo sua visualização e consequente compreensão:

Seja como recurso poético ou pedagógico, a metáfora é bela e provoca emoção estética ou facilita a compreensão do que é ensinado. No mundo jurídico, a metáfora não vem como recurso estético, mas como instrumento pedagógico, já que através dela, é possível apreender diversos conceitos jurídicos básicos (CALANZANI, 2009, p. 23)

No capítulo 1 deste trabalho, item 1.4.2, ilustrou-se, por meio da metáfora

dos cavalos selvagens, a ideia de complexidade, causalidades múltiplas,

recursividade, interações e probabilidades no sentido de que uma causa pode gerar consequências aparentemente benéficas mas que, em longo prazo, mostram-se negativas. E o inverso também pode ocorrer. E a mesma causa pode-se mostrar maléfica e benéfica ao mesmo tempo. A ideia, do ponto de vista abstrato, não exsurge de plano compreensível, mas por meio da metáfora torna-se cristalina.

Essa metáfora do pensamento complexo é útil para ilustrar a fragilidade do canto da sereia desenvolvimentista. Ilustra-se, ainda, a ideia pelo exemplo (instrumento metajurídico de convencimento, item 2.4.6) daquilo que ocorreu com a pesca do bacalhau no Canadá. De início, o desenvolvimento é muito bem vindo, mas seu desdobramento causal pode-se mostrar nocivo e até mesmo trágico.

Ainda acerca do falso antagonismo entre desenvolvimento e meio ambiente, tem-se a metáfora do caviar, utilizada no item anterior (2.4.4), “Sacrificar o médio e longo prazo em favor de um pouco de lucro no presente é semelhante a afirmar que o caviar de hoje nos fará esquecer a fome de amanhã, quando na verdade saudável seria ter arroz e feijão todos os dias”

No capítulo 3 deste trabalho, mais especificamente no Caso do Plantel (item 3.4), a explicação acerca da complexidade é feita por meio de uma metáfora, em uma interpretação a contrario sensu. Compara-se ali o plantel de pássaros a um carregamento de televisores.

Por meio dessa metáfora se pode explicar de forma bastante simples algo que é de difícil compreensão para a grande maioria dos operadores do Direito, ou seja, porque todas as aves de um plantel devem ser apreendidas quando apenas algumas estão irregulares. Demonstra-se, pela metáfora, que a racionalidade jurídica aplicável aos televisores (coisas inanimadas) não serve aos organismos vivos, que se relacionam entre si, nascem, reproduzem-se e morrem. A metáfora ajuda a explicar porque a lógica dos televisores não é a lógica dos pássaros e por que razão o raciocínio não é o mesmo.

Na prática da advocacia pública ambiental, diariamente ocorrem situações que demandam uma explicação criativa, que ilustre e explique os fatos. Essa explicação não consta dos manuais e precisa ser construída caso a caso. Pode-se citar, por exemplo, a relutância de um magistrado em aceitar a necessidade de apresentação de PRAD (Projeto de Recuperação de Área Degradada) para casos de desmatamento. O magistrado entendia desnecessário, acreditava tratar-se de mero formalismo.

A forma de sensibilização, nesse caso, foi explicar ao juiz que o PRAD era como uma “receita de bolo”: alguns ingredientes deveriam vir antes, outros depois, sob pena de frustrar os resultados pretendidos pela receita. Ou seja, algumas árvores pioneiras deveriam ser plantadas antes, permitindo a vinda das espécies seguintes. E se os ingredientes fossem utilizados em ordem diversa da receita, o bolo desandaria. Não se trata, é certo, de uma explicação científica, mas de uma tentativa de alfabetização do risco que, na hipótese, teve efeitos positivos. O juiz entendeu, de fato, que o PRAD era importante.

Assim sendo, a associação do PRAD à receita de bolo, associou um conceito a abstrato a um elemento concreto, permitindo a compreensão (e aceitação) do instituto, nos termos previstos por Calanzani (2009, p. 22)

O conceito abstrato é apreendido mais facilmente, quando, por transposição, é associado a um elemento concreto, do dia-a-dia das pessoas. Assim, através de metáfora jurídica, os conceitos abstratos do Direito tornam-se de fácil apreensão, por sua identificação com elementos concretos da vida. O mesmo pode-se dizer da fábulas e das parábolas: pelo

imaginário e pela transposição existe uma forma pedagógica de educar pelo símbolo.

Ilustrando uma “nova forma de dizer”, existem também manifestações judiciais dignas de nota. Exemplo disso é o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, da lavra do Ministro Herman Benjamin, em cuja ementa consta o mangue como “modalidade de patinho feio dos ecossistemas”. Essa ideia traz à tona uma imagem, evoca sentimentos, sensações e memórias. O patinho feio é, de fato, um cisne – tal qual ocorre com o mangue fétido, que é berçário de diversas espécies.

A analogia é simples e oportuna, impactando mais fortemente o interlocutor que a transcrição de laudos. A abordagem adotada no acórdão destoa, por certo, do que tradicionalmente se espera das decisões judiciais, em um exercício inconteste de ecocidadania:

[...]

2. Por séculos prevaleceu entre nós a concepção cultural distorcida que enxergava nos manguezais lato sensu (= manguezais stricto sensu e marismas) o modelo consumado do feio, do fétido e do insalubre, uma modalidade de patinho-feio dos ecossistemas ou antítese do Jardim do Éden.

3. Ecossistema-transição entre o ambiente marinho, fluvial e terrestre, os manguezais foram menosprezados, popular e juridicamente, e por isso mesmo considerados terra improdutiva e de ninguém, associados à procriação de mosquitos transmissores de doenças graves, como a malária e a febre amarela. Um ambiente desprezível, tanto que ocupado pela população mais humilde, na forma de palafitas, e sinônimo de pobreza, sujeira e párias sociais (como zonas de prostituição e outras atividades ilícitas).

4. Dar cabo dos manguezais, sobretudo os urbanos em época de