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Metajornalismo e identidade

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CAPÍTULO 2 MODOS DE PENSAR

2.2 NOVAS E DIFERENTES MÍDIAS

2.2.4 Metajornalismo e identidade

Introduzindo este novo assunto, vamos observar primeiro que percorremos um caminho pelas mídias que estamos chamando de independentes com uma aproximação descritiva do universo das sete mídias brasileiras escolhidas para enfoque, no primeiro capítulo, e por uma aproximação reflexivo conceitual, neste segundo capítulo, com uma passagem pelas mídias independentes, radicalizadas nas experiências dos modelos midialivristas/midiativistas, todas elas alternativas aos modelos tradicionais de mídia. Nesse percurso, percebemos em maior ou menor medida o grau de envolvimento dos jornalistas – já nos apropriando dos achados das entrevistas que realizamos – com as mídias e processos jornalísticos em que atuam. Esse envolvimento pode ser visto ou intuído tanto em sua postura crítica, em suas práticas que chamamos de metajornalísticas, quanto em sua identificação com as organizações que estão inseridos. Não à toa, em nossa rápida passagem pelo território do midiativismo/midialivrismo, ouvimos que o fenômeno, mais que apenas com a produção de notícia, tem a ver com modos de conceber e organizar a própria vida (MALINI; ANTOUN, 2013, p. 146).

Ivan Satuf (2016, p. 8) afirma que no panorama midiático brasileiro, que revela “expansão em projetos jornalísticos de cariz independente com utilização intensa de tecnologias móveis e plataformas digitais”, muito do trabalho dessas mídias é “repensar o jornalismo feito pelas grandes corporações – seja de maneira aberta em artigos, pautas ou editoriais, ou de modo indireto por meio da demarcação do que acreditam ser um bom jornalismo”.

[...] a observação pormenorizada dos textos, fotos e vídeos produzidos por grupos que se autodenominam coletivos de “mídia independente” permite constatar que parte significativa do discurso é endereçado ao interior do próprio campo jornalístico sob a forma de críticas aos meios de comunicação tradicionais. Tais críticas abordam questões práticas relacionadas às rotinas de produção da notícia executadas por repórteres e editores profissionais, bem como as decisões editoriais sob orientação dos executivos que controlam os conglomerados do setor (SATUF, 2016, p. 8).

Nesse caminho de reinvenção jornalística das mídias independentes é comum, como apontamos e como expressa Satuf (2016), uma prática que se faz sobre a base da crítica mais ou menos forte ao próprio ao jornalismo, na atuação dos jornalistas que em mais de um caso chegam a essas mídias ou participam de sua criação depois de uma longa atuação nas mídias tradicionais. O âmbito da perspectiva crítica com relação ao

jornalismo não se dá, no entanto, como supúnhamos, somente com relação às mídias tradicionais. Se mostra às vezes presente nas falas dos jornalistas entrevistados em críticas que tecem ao próprio campo da mídia independente e às próprias ações jornalísticas (autocrítica), bem como aos veículos em que atuam. Temos aí, no campo de disputa por interferência na esfera pública, uma atuação marcada pela necessidade de reinvenção, de busca por novos modelos e experiências, e pela intenção de fazer melhor que as mídias tradicionais, valorizando o compromisso com os públicos. Que a resposta a esses imensos desafios não está dada, não bastando as boas intenções, nem precisasse talvez ser apontado. Mas, ao ser apontado, traz à tona o campo de complexidade e de conflitos que o próprio alternativo/independente/não- industrial/não- massivo encerra.

Esta postura crítica se reflete, também, no engajamento temático de algumas mídias (caso da Repórter Brasil, que se ocupa desde a sua origem com o combate ao trabalho escravo no Brasil), e de seu compromisso com causas e/ou ideários (caso do The Intercept e a defesa da democracia e da Mídia Ninja, que se posiciona, conforme informações de seu site, como um jornalismo de ação em defesa do “interesse público, a diversidade cultural e o direito à informação, visibilizando pautas de comunicação, causas identitárias, cultura, meio ambiente, juventude e outras que dialogam com os desafios do século XXI)”. Estamos falando de uma prática orientada por uma visão crítica, ou, mesmo, no caso dos veículos que se posicionam como startups, de uma necessidade de reinvenção (caso do Jornal Nexo e sua proposta de produção de um jornalismo de contexto e suas inovações na forma de apresentar os conteúdos), ou atuação voltada a áreas e públicos específicos (caso da startup Jota, que busca se diferenciar tanto no modelo de gestão, quanto nas dinâmicas de trabalho, e ainda na origem direcionada a, segundo os seus criadores, cobrir uma lacuna existente com relação à atuação jornalística da mídia tradicional nas decisões e instâncias Judiciárias de Brasília; e do Congresso em Foco, que também nasce direcionado a uma cobertura diferenciada da Câmara e Senado).

Chris Atton (2001, p. 155, tradução nossa) destaca o caráter participativo presente nas mídias alternativas/independentes, uma vez que se colocam de modo a interagir mais com seus públicos. O autor considera que esse processo de construção mais colaborativo dá espaço “em lugar de espetáculo; identidade em vez de mera representação”. Esse caráter mais participativo e interativo apontado pelo autor aparece também nas relações de trabalho dos jornalistas nas mídias independentes, que relatam dinâmicas mais fluídas e horizontais nos processos produtivos, além de mais espaço e

possibilidade de um jornalismo em profundidade, com novas temporalidades e mais voz autoral. Sempre em termos ideais, pode-se observar que isso permite que o jornalista se sinta representado pelo jornalismo que pratica e que se identifique com a mídia em que atua e seus ideários e proposta editorial.

Compreendemos essa dimensão subjetiva, a que estamos dando o nome de envolvimento, em distintos graus e de distintas maneiras, dos jornalistas das mídias independentes – expressa a) na postura crítica e práticas metajornalísticas; b) no proclamado compromisso com ideários humanistas e solidários e/ou com o desejo de práticas inovadoras; c) na valorização de dinâmicas de trabalho mais horizontais e mais profundas e autorais – como elementos que compõem uma dimensão identitária desses profissionais. Mais que revelar um perfil profissional, digamos, de natureza mais técnica, (PEREIRA; COUTINHO; MAIA; MOURA, 2013) em nossa visão, os aspectos elencados revelam como esses jornalistas se percebem e compreendem a si e ao mundo. O que não quer dizer que não enfrentem rotinas difíceis e complexas que os colocam muitas vezes diante de grandes contradições frente ao compromisso editorial que expressam, por vezes pelo próprio envolvimento com seus nobres ideários.

Cláudia Rodrigues e Leonel Aguiar (2016, p. 6) chamam a atenção para a questão da precarização profissional “que passa pelas novas condições de trabalho que reconfiguram o mercado – em parte resultado das mudanças estruturais introduzidas pelas novas tecnologias”, com o crescimento do desemprego e redução de profissionais nas redações, cada vez mais integradas e com jornalistas “polivalentes”. No entendimento dos autores, com o qual concordamos, “os novos atores do campo jornalístico – como o jornalista blogueiro, o jornalista amador ou o webjornalista – contribuem para ampliar e reconfigurar a noção de identidade profissional no jornalismo”. Os jornalistas atuantes nas mídias independentes não parecem escapar desse destino, embora apresentem aspectos identitários próprios, mais amplos e com forte carga subjetiva, como temos defendido.

Isabel Travancas (2011), – no clássico O mundo dos jornalistas, cuja primeira edição é de 1993 –, ao discutir a identidade profissional do jornalista, traz a afirmação de Bourdieu de que “os jornalistas têm óculos especiais com os quais veem o mundo”, e afirma que, apesar de não estar segura sob os óculos, este grupo profissional possui um modo próprio de ver e estar no mundo. “Com certeza sua visão de mundo e sua compreensão da sociedade em que se inserem estão diretamente ligadas à sua vivência profissional. É esse ser jornalista não como essência, mas como forma de estar no

mundo que os distingue”. Em qualquer lugar do mundo, diz a autora, antropóloga e jornalista.

Travancas, a partir de pesquisa etnográfica realizada com jornalistas da imprensa no início da década de 1990, em que busca pensar como se constitui a identidade do jornalista e em que ela se ancora, diz ter tido claro,

[...] o quanto a profissão é um elemento importante na vida deles, definindo suas trajetórias e delineando uma identidade particular para esses indivíduos. A meu ver, os jornalistas estabelecem uma relação bastante específica com sua ocupação, o que não ocorre com outros profissionais. [...]. Para muitos, esse laço de envolvimento com a profissão será definido como uma paixão pelo trabalho e será condição sine qua non para sua efetiva realização. Em outras palavras, fica difícil perceber-se como jornalista sem o estabelecimento desse vínculo (TRAVANCAS, 2011, p. 15,16).

Em contextos de tantas mudanças no jornalismo, este aspecto estruturante da identidade a partir do ofício, no caso do jornalista das mídias independentes, parece se acentuar. No bojo da independência, e das características próprias destas mídias, expressas ainda mais intensamente pelas mídias livres e ativistas, o envolvimento dos jornalistas ultrapassa o âmbito profissional, numa imbricação com suas próprias vidas, na “dimensão do prazer”, expressão usada por Travancas (2011).

Adesão significaria, portanto, um envolvimento da profissão na vida da pessoa, de tal forma que levaria a uma sujeição de outros aspectos da vida. Ocasionaria uma visão de mundo particular, sem que um sentimento emocional fosse condição essencial. Essa adesão envolve uma questão subjetiva da relação do jornalista com o trabalho e que não deve ser compreendida apenas pelo número de horas em que ele se ocupa dela (TRAVANCAS, 2011, p.81).

Essa forma muito própria de estar no mundo, no caso dos jornalistas das mídias independentes que entrevistamos – todos em posições de editores e/ou fundadores das mídias –, fica bastante clara, tanto em suas falas quanto em um olhar sobre suas trajetórias, construídas em um percurso de escolhas, que os levou até onde estão. “Demorei mas cheguei, hein, gente. 38 anos. Aqui é meu lugar”, nos diz em entrevista a jornalista Ana Magalhães, da Repórter Brasil.23 O jornalista Bruno Torturra, ao olhar

sua passagem pela Mídia Ninja, pondera, com relação ao caráter ativista do coletivo e suas implicações no jornalismo: “Hoje eu tenho mais dificuldade de dizer que o que a Mídia Ninja faz é jornalismo, do que naquela época [2013 em entrevista para o Programa Roda Viva], que eu afirmava com todas as minhas letras. Eu saí porque eu

23 Entrevista gravada da editora da Repórter Brasil, Ana Magalhães, concedida para a pesquisa no dia 5 de

não achava que era tão mais jornalismo assim”. Em uma dinâmica em que o ativismo se sobrepõe ao jornalismo, e em que se tornara mais uma liderança política que um editor, Bruno afirma que pensou na época em que deixou o coletivo: “não é o processo que eu quero fazer parte. [...] O processo que essas pessoas querem executar não é o meu. E aí eu montei o Fluxo”.

Um novo modo de existir, aponta Olívia Fraga, editora executiva do Nexo. “E acho que isso para todo mundo que trabalha com jornalismo foi muito tentador fazer essa mudança, se houvesse campo para todo mundo fazer a migração. Um outro problema né. A gente tem só São Paulo empregando tanta gente nova assim”, ressalta a editora do jornal Nexo, que nos contou que a mídia é cobiçada por jovens profissionais que aceitam começar lá “de graça”, o que ela considera bastante triste.

No caso da Mídia Ninja, Rodrigues e Baroni (2018, p. 607) afirmam que os Ninjas demonstram crer tanto no midiativismo quanto em um novo modo de vida. Isso fica claro na relação do Fora do Eixo e suas casas coletivas e a Mídia Ninja. “Na visão dos integrantes, a vida coletiva intensifica a lealdade aos compromissos” (RODRIGUES; BARONI, 2018, p. 607). Bentes (2015, p. 18) aponta que o que financia esse “novo jornalismo ou midiativismo” é a vida de cada um, já que as atividades “excedem e rompem a relação trabalhista”. Ela diz ainda, que se trata de “cooperação entre cérebros, a transferência de conhecimentos e a produção entre pares, a cooperação livre, a gestão compartilhada com a comunidade de produtores de conteúdos”, em alternativa a um modelo fordista. A jornalista Marielle Ramires, da Mídia Ninja, em entrevista para esta pesquisa, expressa que “fugiu da alienação do trabalho. Essa coisa de pegar, ir pra uma coisa, vender seu tempo livre de trabalho”.24

Isso fica evidente, ainda, na fala de Raíssa Galvão, editora do coletivo, que descreve uma vida imbricada com o trabalho, em um processo que chamou de dedicação exclusiva. “A gente não tem um trabalho que eu vou ficar só oito horas e vou embora. Como a gente vive nas casas coletivas, também está se dedicando o tempo inteiro pra isso, pensando nisso, pensando em projetos. Enfim, como avançar nisso tudo”, afirma. A reunião de pauta, por exemplo, é constante. “A gente faz algumas reuniões, mas no geral ela é constante. O tempo inteiro é uma reunião de pauta”. 25

24 Entrevista gravada com a editora da Mídia Ninja, Marielle Ramires, concedida para a pesquisa no dia

23 de março de 2019. A entrevista na íntegra encontra-se transcrita nos Apêndices desta tese.

25 Entrevista gravada com a editora das redes sociais e da rede de colunistas da Mídia Ninja, Raíssa

Galvão, concedida para a pesquisa no dia 11 de maio de 2019. A entrevista na íntegra encontra -se transcrita nos Apêndices desta tese.

Mas, como estamos vendo, não é só no caso da Mídia Ninja, com sua postura ativista, que uma relação profunda com o trabalho pode ser observada. A editora do Nexo, Olívia Fraga, mais uma vez, fala que o jornal tem um diferencial, um apelo. “Quando ele surgiu, ele falou muito alto ao coração dos jornalistas que estavam na imprensa tradicional”. Isso porque, explica ela, a mídia nasce para ser financiada com recursos próprios, mais assinatura, sem anúncio. “Eu lembro quando surgiu, que uma galera do Estadão já não estava mais no Estadão, estava morando fora. E uma galera foi contratada. ‘Ah, a gente tá indo porque a gente acredita que pode ser um futuro’”.

Nessa perspectiva apontada, de um acentuado envolvimento com o trabalho e com um conjunto de características próprias das mídias independentes, entre elas seus ideários e compromissos, as práticas jornalísticas da maioria das mídias independentes que nos aproximamos, rechaçam alguns valores e diretrizes jornalísticas tradicionais, com clareza da importância e buscando construir e preservar a credibilidade e confiança do leitor.

Silvia Lisboa e Marcia Benetti (2015) pontuam que o cenário contemporâneo do jornalismo em redes problematiza ainda mais as questões de credibilidade e confiança entre os sujeitos sociais. No entanto, apesar da pluralidade de interesses, de pontos de vistas e de questões sociais, os valores verdade e justificação continuam centrais na discussão acerca da atividade e de sua razão de ser e existir.

[...] o jornalismo se torna um conhecimento quando o sujeito qualifica o que antes era apenas uma mera crença, passando a tomar o discurso jornalístico como confiável, já que este discurso demonstra de forma justificada que diz a verdade ou que buscou, por meio de seus procedimentos técnicos e profissionais, chegar à verdade. A crença simples passa a ser uma crença verdadeira e justificada, ou seja, um conhecimento (LISBOA; BENETTI, 2015, p. 22).

Numa compreensão do jornalismo como uma crença verdadeira e justificada, Lisboa e Benetti, (2015, p.12) ressaltam “a necessidade de presunção da credibilidade para que o jornalismo seja um conhecimento específico, e não outra coisa qualquer”. E perguntam: “Como, então, o sujeito pode presumir que o jornalismo é credível? Pela confiança de que o discurso jornalístico diz a verdade”. As autoras afirmam que o ofício, para se tornar um conhecimento, deve atender às condições da crença, da verdade e da justificação. “Basicamente, o sujeito deve crer que o jornalismo diz a verdade, e esta verdade deve estar justificada em seu próprio discurso” (LISBOA; BENETTI, 2015, p. 11). Sem isso, para as autoras, não existe a formação do conhecimento jornalístico. Sendo o jornalismo uma prática social, de natureza coletiva e

discursiva, sua relação com os leitores forma um ethos, uma presunção de credibilidade, que é anterior ao ato de enunciação.

Muniz Sodré e Raquel Paiva (2011, p. 22) trazem que em nossa modernidade há um pacto de credibilidade firmado entre os públicos e a imprensa. “A ela caberia garantir não apenas a livre expressão, mas também a publicização da verdade oculta nos desvãos do Poder”. A imprensa seria, assim, explicam os autores, a antítese do boato.

Por isso, a imprensa se investe modernamente do direito moral de narrar, inerente a toda e qualquer testemunha de um fato. Testemunho em grego clássico, é histor – daí, história. Acreditamos numa história porque foi testemunhada, senão diretamente ao menos por uma mediação confiável, a cargo do jornalismo (SODRÉ; PAIVA, 2011, p. 22).

Nesta perspectiva, os autores consideram acerca do jornalismo e da verdade que “[...] não está ali em jogo nenhuma demonstração lógico-filosófica da verdade, e sim um pacto de credibilidade que, como toda convenção, institui as suas próprias regras de aceitação do pactuado” (SODRÉ; PAIVA, 2011, p. 23).

Na busca por este pacto de credibilidade, elo de confiança com seus públicos, no universo de mídias que abordamos – a exceção dos modelos mais próximos à cultura de startup (Nexo Jornal e Jota), percebemos uma prática que rompe com valores próprios da tradição da cultura jornalística como neutralidade e imparcialidade – como apontou Rodrigues e Baroni (2018) com relação à Mídia Ninja, na busca de credibilidade e confiança, procurando produzir relatos verazes.

Por isso criticam a ideia de neutralidade e a ideia de imparcialidade – porque são entendidas como mascaramento de uma tomada de partido, de uma parcialidade, de uma mídia que, de fato, tem lado, que na maioria das vezes é o lado do poder político e econômico. A crítica à neutralidade e à imparcialidade, e mesmo à objetividade, (expressas em produções autorais e interpretativas) não deve igualmente ser entendida no sentido ontológico, da coisa em si, e, sim, numa prática de jornalismo que, no fundo, nada tem de neutro e imparcial. Uma opção de vida.

Capítulo 3

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