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Mapa 3 Localização da microrregião Guanambi na mesorregião Centro-Sul Baiana

5.3 Os/as jovens da Reforma Agrária sob o olhar do sindicato (FETAG/Guanambi)

5.3.1 Modelos de Reforma Agrária e a incerteza de ser jovem camponês

Uma questão que, no meu entender, está intrinsecamente ligada à constituição da identidade camponesa dos/das jovens diz respeito ao modelo de Reforma Agrária que tem acontecido no Brasil. Na entrevista com o assessor da FETAG, ele destaca que a luta dos trabalhadores do campo tem sido descaracterizada pelo Estado, que, hegemonicamente, tem reforçado o poder dos latifundiários e fortalecido o agronegócio. Essa questão se enquadra no debate sobre os dois modelos distintos de Reforma Agrária discutidos nos capítulos I e II desta tese. O modelo por desapropriação e por mecanismos de mercado, ou seja, compra e venda da terra.

No entendimento de Mello e Gomes (2013, p.4-5), “não basta colocar a implantação de um assentamento conforme o que já se prevê (ainda que isso quase nunca ocorra), mas, formular e implantar políticas mais intensas e inteligentes para dar conta das especificidades.” O percentual de famílias em “extrema pobreza” nos assentamentos da Bahia, conforme a mesorregião em 2009, ainda se apresenta de forma acentuada, conforme se pode observar na tabela 5 a seguir.

Tabela 5 - Percentual de famílias em “extrema pobreza” nos assentamentos da Bahia conforme a mesorregião em 2009

Fonte: MELLO; GOMES (2013, p.19).

Elaborada com base na pesquisa INCRA/2010.

Os dados mostram que o número de famílias em “extrema pobreza” nos assentamentos rurais basicamente supera o número de famílias nessa mesma situação de pobreza da mesorregião metropolitana. Ou seja, as condições de sobrevivência desses dois grupos de indivíduos são similares. Mello e Gomes (2013), com base nos dados do INCRA/2010, apontam que 21% das famílias assentadas no Brasil ainda não têm acesso à água suficiente, 36,4% na Bahia, somente 42% têm acesso à energia elétrica, 58% na Bahia, 67,9% acham as estradas ruins ou péssimas, 70% na Bahia, 47,8% não acessaram o PRONAF, 48% na Bahia.

Observando os dados, é possível relacioná-los com o modelo de Reforma Agrária conservadora (CARTER, 2010), que beneficia poucas pessoas, favorece muito mais o Estado e os grandes latifundiários rurais, e, por outro lado, a distribuição de terra não altera as relações de poder existentes, e consequentemente, não tem instituído mudanças revolucionárias na realidade social dos indivíduos das famílias assentadas, apesar dos avanços conquistados pelos trabalhadores rurais. Ainda assim, os dados demonstram o tamanho do déficit de infraestrutura e de acesso a créditos nos assentamentos do país e em particular na Bahia.

Agora mesmo nós estava com um acampamento no Vale do Iuiú com 170 famílias, lá o fazendeiro pediu reintegração de posse e conseguiu, o fazendeiro teve apoio, os trabalhadores estão lá sem fazer nada. Então, se

Mesorregião % de famílias

Vale São Francisco 36,1

Sul 26,7 Extremo Sul 30,3 Centro Sul 30,6 Centro Norte 30,8 Nordeste 30,2 Metropolitana 30,0 Bahia 31,4

não tiver uma política diferenciada, não vai dá! Você vê que são pessoas, trabalhadores rurais que querem desenvolver um trabalho, quer produzir, mas se depara com a burocracia que ainda existe (FETAG/GUANAMBI).

A fala do interlocutor da pesquisa evidencia que opera sobre o Estado o poder emanado do latifúndio. Essa é uma questão histórica debatida no primeiro capítulo desta tese que continua viva na sociedade brasileira. A hegemonia dos coronéis do campo, mesmo numa sociedade teoricamente democrática, ainda continua operando no país. No entendimento de Gramsci (1982), hegemonia significa o predomínio ideológico das classes dominantes sobre a classe subalterna na sociedade civil.

O conceito de hegemonia de Gramsci nos ajuda a entender que o predomínio ideológico da classe dominante no campo brasileiro tem operado de forma efetiva nas questões da Reforma Agrária. Esse conceito permite que se compreenda como têm se dado as relações de poder no campo. A fala do assessor da FETAG/Guanambi é bastante ilustrativa dessa questão quando ele destaca que o modelo de Reforma Agrária de mercado tem favorecido o latifúndio e enfraquecido ainda mais os camponeses.

[...] quem levou vantagem com essa Reforma Agrária de mercado foi os fazendeiros, por que foi os fazendeiros? Por exemplo, eu sou um fazendeiro, eu tenho a terra pra vender, ou três ou quatro fazendas, eu boto a terra pra vender a mais inferior, aí você é o corretor que faz os trâmites, vê as famílias, tenta colocar nas terras, negociar com os fazendeiros, aí você já negocia comigo que sou o fazendeiro, aí tem essa terra aqui, essa parte daqui pra lá eu vendo pra você, avisa o pessoal aí pra ocupar essa área, mas essa área só serve pra criar bode, não produz outra coisa, as terras filé, eu não vendo, eu te vendo essa, aí eu tô capitalizando o fazendeiro e lascando com os pequenos que já vem com fome, já vêm com carência de terra, e aquela vontade de produzir, aquela ansiedade. O preço que o fazendeiro coloca é de terra boa. [...] Muitos fazendeiros aqui ganharam com isso, vendeu as terras ruins que tinham das 10, 5, 3 mil hectares, tirava mil pra vender por CDA, pelo Crédito da Terra, lascava com os produtores, muitos estão inadimplentes por causa disso, chega na terra, planta roça de feijão, o feijão não sai, ele já assumiu o débito da terra, da casa, todo investimento que teve, aí planta o feijão, a parcela já vem no ano que vem, aí chega o ano que vem não sai, entendeu, já entra inadimplente, o cara não consegue sobreviver ali porque o que plantou não produziu, ele acaba largando tudo e sai, só que ele já sai do assentamento com o nome sujo.

O assessor da FETAG pondera que, em muitos casos, o intermediador da compra entre trabalhadores sem-terra e o fazendeiro coloca os trabalhadores contra o movimento, quando o

movimento identifica que a terra que está para ser vendida é uma terra “ruim”. O poder do capital fala mais alto do que a relação de confiança dos trabalhadores sem-terra com o sindicato. Isso é compreensível, tendo em vista que esses trabalhadores estão com muita vontade de produzir, de ver um sonho muito próximo de acontecer, uma página nova da sua história que está para ser escrita ou reescrita. A esperança de dias melhores, mais tranquilos, mais humanos os impulsiona a apressar a conquista da terra, melhor dizendo, a compra da terra. Portanto, não conseguem ver as artimanhas ideológicas do capital ao querer ludibriá-los.

De posse da terra, mas junto com ela, a dívida contraída pela sua compra via Crédito Fundiário. Esse tem sido o modelo de Reforma Agrária predominante na região segundo o assessor da FETAG/Guanambi e, no entender de Fernandes (2001b), visa desmantelar o projeto dos sem terra e beneficiar os latifundiários. Por outro lado, deixa os trabalhadores em condições mais fragilizadas do que antes, pois contraem a dívida da compra da terra. Muitos trabalhadores têm ficado inadimplentes junto às agências financiadoras da terra e de outros recursos para sua manutenção, por não conseguirem quitar suas dívidas. Essa é uma realidade constatada no assentamento Nova Esperança.

O que é produzido pelas famílias assentadas não é suficiente para o autoconsumo e para pagar as dívidas contraídas. Em virtude de vários fatores, como a falta de assistência técnica, muitos assentados são analfabetos, portanto não dispõem de conhecimentos técnicos para serem aplicados na produção e, por outro lado, falta experiência de trabalho coletivo entre os assentados, dentre outros fatores.

Aí que eu pergunto: que Reforma Agrária é essa que o governo está impondo? Porque aí é forçar o trabalhador a fazer a Reforma Agrária. Você tem que comprar tudo, e disse que isso é Reforma Agrária. Eu acho se a gente quer fazer uma Reforma Agrária, tem que dá condição, que o cara já está quebrado (FETAG/GUANAMBI).

A Reforma Agrária de mercado atende ao interesse do Estado, mas não resolve os problemas dos camponeses assentados, uma vez que eles não conseguem viver dignamente da terra. Por outro lado, reforça o poder do capital no campo; muitos trabalhadores, inclusive jovens, são obrigados a venderem sua força de trabalho para o latifúndio, hoje representado pelo agronegócio. “Nosso público tá migrando tudo pra dá apoio ao agronegócio, eu conheço

filhos de colegas, agricultor familiar que estão todos trabalhando nas grandes fazendas do agronegócio, produção de algodão” (FETAG/GUANAMBI).

Na ótica desse movimento, o agronegócio na região tem-se aproveitado dos poucos jovens que foram capacitados pelo movimento. Os/as jovens se formam, mas não veem possibilidades de desenvolvimento dentro do assentamento. Então, muitas vezes, por uma questão de sobrevivência ou pelo fascínio de ganhar dinheiro, poder comprar bens materiais, os jovens são cooptados pelo agronegócio.

Nesse processo, as trajetórias de vida desses jovens vão sendo construídas entre o desejo de colocar em prática o conhecimento adquirido nos seus próprios projetos e a necessidade de enfrentar o trabalho duro, precário no agronegócio, realizando-o muitas vezes em condições subumanas, com alta jornada de trabalho e exploração da sua força de trabalho pelo dono do capital. Todavia, essa atividade lhes proporciona bens materiais que o trabalho junto à família assentada nas áreas da Reforma Agrária não lhes tem proporcionado.

No entendimento de Martins (1986), o principal fruto das lutas no campo é a emancipação política dos trabalhadores rurais, cujas consciências têm sido secularmente escravizadas pela dependência pessoal e pelo clientelismo político. Esse autor explicita que a questão agrária não será resolvida com a simples distribuição de terras. É necessário “evitar que o problema da terra constitua mediações políticas que envolvam necessariamente uma redefinição do pacto político que sustenta o Estado” (MARTINS, Ibid., p.61). Frigotto corrobora esse pensamento quando afirma que “não basta ter acesso à terra. É necessário que haja uma política agrária mediante a qual possam viabilizar uma vida digna” (FRIGOTTO, 2004, p.210).

Assim, pode-se dizer que o modelo de Reforma Agrária realizado no Brasil tem demonstrado pouca preocupação quanto ao futuro do assentado na terra, ou seja, com as condições necessárias para o camponês produzir de forma viável, bem como se reproduzir socialmente no campo com qualidade de vida. Isso configura preocupação com a reprodução do trabalho da família camponesa no contexto dos assentamentos. A ideia de os/as filhos/as reproduzirem as atividades produtivas da família cada vez fica mais distante da realidade, pois os sentidos

que os/as jovens vão atribuindo à terra refletem a situação vivida pela família. A terra passa a ter uma conotação negativa, portanto sai do campo de desejo dos/das jovens.

Na opinião do movimento sindical (FETAG), na atual conjuntura em que se encontra o camponês no contexto dos assentamentos e frente às dificuldades encontradas no processo de luta pelo acesso à terra e seu uso, de modo geral, a maioria dos/das jovens não quer ficar no campo, o que compromete a reprodução social do trabalho da família camponesa. A formação de novas gerações de camponeses, sob a ótica do movimento sindical, é algo muito incerto, a possibilidade de continuidade do patrimônio familiar como valor não só econômico, mas também simbólico e afetivo, torna-se algo questionável.

Se você olhar no geral, a maioria não quer ficar não, são poucos os que vão dá continuidade no que o pai vem executando, porque é o seguinte, ele presenciou tanta burocracia, tanta dificuldade [...] eles preferem arrumar um emprego, do que ficar se batendo numa tecla que pra ele conseguir alguma coisa, ele vai chegar à idade do pai na mesma posição que o pai tá hoje (FETAG/GUANAMBI).

Os diversos obstáculos com os quais os camponeses convivem impõem mudanças nas relações sociais de trabalho e de convivência no e do campo. Impõem-se na desconstituição de laços familiares pelo deslocamento das pessoas que buscam alternativas de sobrevivência. Na itinerância da investigação, verifiquei que a falta de condições para manter o sustento da família tem levado muitos pais às fazendas do agronegócio, principalmente para os municípios de Barreiras e Luiz Eduardo Magalhães, na Bahia. Nesse caso, a migração se configura como uma estratégia para garantir o sustento da família camponesa (WOORTMANN, 2009 [1990]) no assentamento. Isso significa que não são só os/as jovens que têm deixado o campo em busca de outras alternativas de vida, mas também os chefes de família.

Há uma convergência de pontos de vista entre o movimento sindical (FETAG) e os representantes das associações dos assentamentos, no sentido de que os/as jovens precisam ser estimulados a ficarem no campo, ter condição de trabalho remunerado, algo que possa gerar renda dentro dos assentamentos. Os interlocutores denunciam a política do governo federal, a exemplo do Pronaf Jovem Campo e Pronaf Mulher, que nasceram para não funcionar, pois os

programas que poderiam incentivar os/as jovens a permanecerem no campo não chegam aos assentamentos pesquisados.

Desse modo, é importante ponderar que as políticas públicas de juventude do campo são frágeis e insuficientes uma vez que elas não conseguem atingir seus objetivos principais, que são: promover geração de renda e melhorar as condições de vida dos/das camponeses e camponesas, consequentemente, possibilitar que o homem do campo viva e permaneça no campo. Na perspectiva da política local, as ações têm ficado na base da promessa. Os/as jovens de ambos os assentamentos pesquisados têm sido excluídos das ações direcionadas à juventude. Mesmo os programas socioeducativos, como o PETI, não têm funcionado de forma efetiva e contínua nos assentamentos Marrecas e Nova Esperança.

Entendo que, frente às carências, às ausências, às limitações e, sobretudo, ao predomínio do capital no campo, sob a ótica das instituições públicas aqui destacadas, a perspectiva para os/as jovens dos assentamentos pesquisados é um tanto desanimadora. Isso tem implicação nas possibilidades de construção social dos/das jovens, da identidade camponesa e do processo de continuidade do trabalho camponês da família. O movimento sindical sugere que as famílias precisam repensar a organização do trabalho no contexto dos assentamentos e expressa que

a orientação do movimento é pelo trabalho coletivo. O trabalho coletivo é que enriquece, inclusive esse assentamento que falei que tá com o recurso para pagar cinco parcela é fruto do trabalho coletivo. Os outros que estão no individual, estão inadimplentes (FETAG/GUANAMBI).

Sob a ótica dos presidentes das associações dos assentamentos Marrecas e Nova Esperança, o Brasil precisa de políticas públicas focadas nos jovens da Reforma Agrária que possibilitem mais recursos, financiamentos de projetos para que os jovens continuem sendo os sucessores dos pais, caso contrário, a realidade não vai ser muito boa para aqueles que vêm do processo de Reforma Agrária, questão que será discutida no capítulo subsequente.

5.4 Concepções de juventude camponesa: múltiplos enfoques a partir do ponto de vista