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Mapa 3 Localização da microrregião Guanambi na mesorregião Centro-Sul Baiana

2.3 Processos sucessórios no campo

O processo de acumulação do capital no campo brasileiro, a partir do final do século XX, tem gerado mudanças significativas nos projetos de vida dos trabalhadores do campo, principalmente dos/das jovens, o que tem colocado em discussão a questão da reprodução social das unidades produtivas familiares, conforme demonstra o estudo realizado por Abramovay et al. (1998) sobre juventude e agricultura familiar no Oeste de Santa Catarina.

Esse estudo aponta que, diferentemente do que acontecia até o final dos anos 1960, em que as unidades produtivas eram reproduzidas quase que automaticamente, na atualidade as possibilidades objetivas de formação de novas unidades familiares de produção são bem escassas devido à expansão do capital no campo, que em certa medida tem expulsado os/as jovens do meio rural. Constata-se também um processo de masculinização da juventude no campo, em virtude de as moças deixarem o campo numa proporção maior que os rapazes. Segundo Abramovay et al. (1998), atribui-se isso à precariedade das perspectivas assim como ao papel subalterno que continuam a ter as moças no interior das famílias de agricultores.

Essa realidade, em certa medida, também se apresenta no sertão da Bahia. Estudo realizado por Silva (2009) com jovens rurais do município de Palmas de Monte Alto/BA, aponta que as perspectivas de continuidade dos estudos por parte dos/das jovens e os projetos de futuro/vida muitas vezes são vislumbrados com a saída do campo para a cidade, com predominância das jovens mulheres. Segundo Silva (Ibid.), as jovens mulheres parece não vislumbrarem a permanência junto à família na localidade em que vivem, passando a cidade a ser apontada como possível espaço de moradia, onde podem projetar o futuro.

É certo que os dados fornecidos por esses dois estudos não podem ser entendidos de forma generalizada, por serem parcialmente aplicáveis aos grupos estudados no Oeste de Santa Catarina e Sertão da Bahia. Sendo assim, não compreendem o todo, mas parte da realidade, cuja totalidade ainda é mais inquietante. A questão da migração dos/das jovens no cenário brasileiro é bastante complexa, dada a sua natureza, e exige um olhar conforme com a sua especificidade.

Woortmann (2009, [1990]), em estudo realizado em Sergipe entre sitiantes, classifica a migração em três modalidades: a migração pré-matrimonial do filho, aquela do chefe da família, de tipo circular, e a emigração definitiva. Ele refere-se às duas primeiras como a viagem, porque os migrantes retornam às suas localidades, portanto elas se configuram como estratégias de garantia de reprodução social em sua localidade, e à última como a saída sem retorno, a não ser para rever os parentes deixados para trás.

Discussão apresentada por Sabourin, com base em pesquisas realizadas no Nordeste brasileiro, aponta:

No Nordeste semiárido, boa parte do processo de migração é temporária, podendo ser sazonal, para garantir uma renda complementar à da agricultura, ou se estender por alguns anos, de forma que os jovens possam acumular um capital para a aquisição de seu primeiro rebanho, ou até mesmo de suas primeiras terras (SABOURIN, 2009, p. 23).

Nesse sentido, entende-se a migração como uma estratégia encontrada pelos trabalhadores do campo para garantir a reprodução social. Sendo assim, nem sempre migração24 significa descontinuidade da unidade de produção familiar, mas pode ser o único horizonte possível de garantia da reprodução social.

É importante enfatizar que a reprodução social consiste não só na reprodução das forças produtivas, mas, sobretudo, na reprodução das relações sociais de produção, as quais, por sua vez, são permeadas por múltiplas dimensões, como a cultural, a política, a ambiental e a ideológica. Assim sendo, cada grupo familiar, ao assegurar que as gerações futuras continuem a se produzir do ponto de vista econômico, deve também assegurar que essas gerações se reproduzam nas suas múltiplas dimensões.

Referindo-se à reprodução social camponesa, Wanderley (2009, p.159) sublinha que, “para além da garantia da sobrevivência no presente, as relações no interior da família camponesa têm como referência o horizonte das gerações, isto é, um projeto para o futuro”. Essa autora enfatiza que a garantia de um projeto de futuro é definida pela combinação dos recursos de que as unidades de produção dispõem com aquelas acessadas fora da unidade produtiva. A família define estratégias que visam, ao mesmo tempo, garantir sua sobrevivência imediata com a reprodução das gerações descendentes.

Com efeito, um dos eixos centrais da associação camponesa entre família, produção e trabalho é a expectativa de que todo investimento em recursos materiais e de trabalho despendido na unidade de produção, pela geração atual, possa vir a ser transmitido à geração seguinte, garantindo a esta, as condições de sua sobrevivência (WANDERLEY, Ibid., p.159).

Assim sendo, os desafios da afirmação da reprodução social são múltiplos, e sua compreensão supõe a referência constante ao movimento do conjunto de relações espaciais e temporais.

Nessa perspectiva, a reprodução social não pode ser depreendida apenas a partir da dimensão econômica, mas numa lógica multidimensional, considerando a dinamicidade da vida em sociedade.

2.3.1 Herança da terra

A questão da sucessão familiar tem sido estudada por diversos pesquisadores, como Bourdieu (1962); Moura (1978); Woortmann (1995); Silvestro et al. (2001); Abramovay et al. (1998); Garcia Jr. e Heredia (2009), dentre outros. Entretanto, percebe-se a ausência de pesquisas sobre essa questão no contexto de assentamentos rurais da Reforma Agrária. Assim sendo, buscou-se nesta investigação, que tem como eixo maior a reprodução social de jovens da Reforma Agrária, identificar elementos a partir do ponto de vista tanto dos pais como dos/das jovens a respeito dos processos sucessórios pelos quais a atual geração deverá passar, sobretudo no que diz respeito à herança da terra.

Garcia Jr. e Heredia (2009, p.231) enfatizam:

As regras de transmissão de patrimônio material e simbólico balizam os processos sucessórios e vínculos intergerencionais, incidindo diretamente nos capitais econômicos (terras, equipamentos, meios financeiros etc.) e culturais (escolaridade, vínculos religiosos, associativos etc.) que podem ser mobilizados por qualquer grupo doméstico ao longo de seu ciclo de existência.

O processo de sucessão de uma unidade familiar implica a criação de estratégias diversas que determinem o momento e a forma da passagem das responsabilidades sobre a gestão do estabelecimento familiar para a geração seguinte. No Brasil, apesar de o Código Civil estabelecer igualdade de condições entre todos os filhos, as regras culturais podem modificar a lei conforme os interesses da família, que se impõem aos interesses individuais. Esse fenômeno acontece, principalmente, quando a manutenção da integridade do patrimônio familiar está em jogo, ou seja, quando a garantia da condição para o funcionamento da unidade de produção e reprodução da identidade social do trabalho agrícola depende da transmissão da terra à nova geração, então é realizada com base nos códigos culturais (CARNEIRO, 2001).

O que sustenta esse modelo de transmissão patrimonial, segundo Carneiro (2001), é o ‘valor família’. A família entendida como unidade de interesses coletivos, os quais devem ser preservados, mesmo diante das determinações externas (jurídicas) ao grupo. Dessa forma, diferentes práticas de transmissão do patrimônio familiar têm se sustentado em lógicas próprias de reprodução; isso significa, portanto, que essas práticas não podem ser entendidas dentro de uma concepção meramente formal, ou seja, da jurisprudência.

Nesse sentido, compreender as regras de transmissão do patrimônio familiar, entre assentados da Reforma Agrária, considerando a diversidade de formas de transmissão do patrimônio existentes no Brasil, as quais variam de acordo com o contexto histórico, econômico, geográfico, institucional e cultural, se torna importante para entender as estratégias de reprodução social dos/das jovens filhos/as de assentados/as da Reforma Agrária, principalmente porque uma das dimensões importantes das lutas dos camponeses brasileiros está pautada no esforço para constituir um território familiar, um lugar de vida e de trabalho, capaz de guardar a memória das famílias e de reproduzi-la para as gerações futuras (WANDERLEY, 2009).