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Políticas públicas de juventude do campo no Brasil: avanços e desafios

Mapa 3 Localização da microrregião Guanambi na mesorregião Centro-Sul Baiana

3.3 Políticas públicas de juventude do campo no Brasil: avanços e desafios

Historicamente invisível nas políticas públicas, a juventude vem mais recentemente protagonizando sua história, a partir da contribuição dos movimentos sociais e sindicais do campo e da cidade que empunham a bandeira das políticas públicas de juventude. Em 1990, as demandas juvenis passaram a se integrar às pautas de reivindicações e às agendas políticas de diversos movimentos como da CONTAG, das Pastorais da Juventude (PJ), dos movimentos sociais que fazem parte da Via Campesina Brasil: MST, Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Movimentos dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimentos dos Pequenos Agricultores (MPA), dentre outros.

Nesse contexto, juventude e políticas públicas como tema investigativo alcançam visibilidade com grande impulso nos anos de 2000, no campo acadêmico e governamental, sobretudo, devido à intensa mobilização dos movimentos sociais, sindicais e grupos juvenis. Nesse processo, verifica-se “uma mudança de paradigma de juventude em situação de risco para juventude sujeito de direitos” (CASTRO, 2011, p. 283). Há no campo das ideias um deslocamento das políticas públicas de juventude direcionadas a um público visto como delinquente e desinteressado em seu papel na sociedade para sujeitos responsáveis pela construção das políticas públicas.

Isso significa que o debate sobre as políticas públicas voltadas para a juventude supera as adjetivações juventude rebelde, juventude problema e assume a perspectiva das relações sociais e processos identitários. Os/as jovens passam a ser vistos como sujeitos que combinam trajetórias individuais e coletivas, que associam formas de sociabilidades, trajetórias familiares, de trabalho, de mobilidade espacial, escolares, dentre outras. A juventude passa a ser entendida como categoria identitária de representação política presente em uma diversidade de expressões organizativas e formas de participação política.

Os/as jovens, nas suas mais diversas formas de organização, seja nos movimentos sociais, sindicais ou grupos juvenis, passam a contribuir significativamente nas reflexões sobre as políticas públicas de juventude do campo e da cidade no Brasil, colocando em suas pautas internas a questão da garantia de direitos, o respeito à diversidade e pluralidade de sujeitos que compõem a sociedade brasileira. Disputam, por dentro e por fora do Estado, o lugar de

direito que os povos do campo, em especial, merecem ter. Contribuem das mais diversas formas a construir a história das políticas públicas de juventude, já sendo possível visualizar algumas conquistas.

Destacam-se os programas de acesso à terra e à educação, quais sejam: O Programa Nacional de Crédito Fundiário (Programa Nossa Primeira Terra) desde 2003; PRONAF Jovem, criado em 2004; ProJovem Campo – Saberes da Terra28; o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) e o Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO).

No que se refere ao Programa Nossa Primeira Terra, o seu objetivo consiste no financiamento de compra de terras e investimentos em infraestrutura básica, como parte do Programa Nacional de Crédito Fundiário, destinado aos filhos de agricultores e estudantes de Escolas Agrotécnicas e Escolas Família Agrícola com idade de 18 a 28 anos que queiram permanecer e investir na propriedade (BRASIL, 2006). Embora seja resultado das reivindicações dos movimentos sociais e sindicais do campo, esse programa tem sido visto por estudiosos das questões agrárias e movimentos sociais como parte da política de Reforma Agrária de mercado financiada pelo Banco Mundial e iniciada no governo de Fernando Henrique Cardoso, em continuidade nos governos sucessores. Esse modelo de Reforma Agrária visa de certa forma “amenizar os conflitos ou responder pontualmente às demandas e às pressões dos movimentos sociais agrários” (SAUER, 2006, p. 294). Essa ação não tem resolvido o problema da concentração de terra no Brasil. E, por outro lado, tem gerado um endividamento crescente das famílias envolvidas, por não conseguirem pagar as prestações da compra da terra; aquilo que era sonho virou dívida (SAUER, 2010).

Quanto ao PRONAF Jovem, criado em 2004, configura-se como uma linha de financiamento do Programa Nacional de Agricultura Familiar criada para atender os filhos de 16 a 25 anos

28 Esse programa é uma ação integrada entre o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de

Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC); o Ministério do Desenvolvimento Agrário por meio da Secretaria de Agricultura Familiar (SAF) e da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT); o Ministério do Trabalho e Emprego por meio da Secretaria de Políticas Públicas de Emprego (SPPE) e da Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES); o Ministério do Meio Ambiente por meio da Secretaria de Biodiversidade e Floresta (SBF); o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), vinculada à Presidência da República.

dos agricultores familiares que tenham concluído ou estejam cursando o último ano em centros familiares rurais de formação por alternância, ou em escolas técnicas agrícolas de nível médio ou que tenham participado de curso ou estágio de formação profissional. E o Saberes da Terra, lançado em 2005, também pelo governo federal, visa à escolarização de jovens agricultores/as familiares em nível fundamental na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), integrado à qualificação social e profissional de jovens camponeses de 18 a 29 anos. Atualmente o Saberes da Terra se integra à Política Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem) e passa a se denominar ProJovem Campo – Saberes da Terra (SILVA; ANDRADE, 2009).

Segundo Ferreira e Alves (2009), esses três programas ainda são insuficientes para a produção de mudanças significativas perante os desafios referentes ao acesso a uma educação de qualidade no campo; não possibilitam aos jovens opções viáveis para a construção de seus projetos de vida e de trabalho. Por outro lado, têm abrangência limitada, beneficiam apenas pequena parcela da população pobre sem-terra ou com pouca terra.

A insuficiência dos programas em relação às demandas dos/das jovens e a invisibilidade desses sujeitos no conjunto das políticas públicas federais, são perceptíveis no documento “Reflexões sobre a Política Nacional de Juventude” (BRASIL, 2011b), elaborado pela SNJ e pelo CONJUVE. Ele traz uma análise de 55 programas e/ou ações que constituíram as políticas públicas federais de juventude no período de 2003 a 2010. Adota-se uma metodologia de análise que separa os programas e/ou as ações desenvolvidas conforme três grandes eixos temáticos: Desenvolvimento Integral; Qualidade de Vida; e Direitos Humanos.

Desse conjunto de políticas, apenas os três programas evidenciados anteriormente são voltados diretamente para os/as jovens do campo. Percebe-se, nos eixos temáticos Qualidade de Vida e Direitos Humanos, uma ausência de programas e/ou ações voltados para a juventude do campo.

Assim sendo, aquilo que existe de políticas públicas de juventude quase que em sua totalidade ainda é pautado por meio da chave de risco, do desvio, da criminalidade, ou da preparação dos/das jovens para o mundo adulto. Um dos limites dessa forma de compreender juventude é que gera políticas compensatórias focadas nos setores que apresentam as características de

vulnerabilidades, e, por outro lado, não visualizam os/as jovens como sujeitos do presente; o futuro é o eixo ordenador de sua preparação.

No que se refere ao PRONERA, ele não consta na relação de programas elencados no documento mencionado anteriormente. Acredita-se que seja em virtude de sua criação (1998) anteceder o período estudado (2003/2010). Contudo, entende-se que, apesar de esse programa já ter sido bastante estudado por pesquisadores brasileiros, portanto dispensa uma reflexão mais aprofundada neste momento, é importante ressaltar que o PRONERA, a partir da sua criação, tem se tornado um grande impulsionador da luta pela terra e pela educação e se consolida como um espaço de resistência e também subsidia a elaboração de outros programas e novas políticas, como exemplo, o Pronacampo, sobre o qual falaremos na sequência.

O programa em destaque, lançado no dia 20 de março de 2012 pelo governo federal, é uma experiência que direta e indiretamente está voltada para os/as jovens camponeses. É uma reivindicação coletiva dos movimentos sociais e sindicais do campo, de educadores e de pesquisadores militantes da luta por um projeto contra-hegemônico de desenvolvimento do campo e da nação. Segundo Molina (2010, p.139), “uma das características marcantes da inserção da Educação do Campo na agenda política é o fato de, nos últimos anos, suas ações terem se dado a partir dos sujeitos coletivos de direitos”. Entendem-se sujeitos coletivos de direitos como grupos organizados com objetivos comuns em defesa de um projeto de nação que se contrapõe ao poder do capital.

É importante sublinhar que o Pronacampo se anuncia como alternativa de políticas públicas de Educação do Campo. Todavia, esse programa parece não refletir o debate, os anseios, as experiências dos movimentos sociais e sindicais do campo, pois ele é um conjunto de programas já existentes na agenda do governo federal, com poucas inovações na sua totalidade de ações. Segundo um coletivo de pesquisadores militantes da Educação do Campo, vinculados ao Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC):

O formato de programa, a lógica de sua formulação, suas ausências e ênfases nos permitem situar o Pronacampo muito mais próximo a uma política de ‘educação rural’, no que esse nome encarna historicamente na forma de pensar a política educacional para os trabalhadores do campo em nosso país,

do que das ações e dos sujeitos que historicamente constituíram a prática social identificada como Educação do Campo (FONEC, 2012, p.1).

Conforme documento produzido pelo FONEC/2012, o foco desse programa está em “garantir elementos de política pública que permitam avançar na preparação da mão de obra para o agronegócio ou diminuir os focos de conflitos com os camponeses, suas organizações de classe”. Dessa forma, entende-se que, em certa medida, é um retrocesso, devido a não materializar a política de Educação do Campo a partir das concepções definidas no Decreto nº 7352/201029.

O desafio neste momento é questionar a concepção de políticas públicas para o meio rural que têm fundamentado as ações desenvolvidas e em desenvolvimento pelo Estado brasileiro, e continuar colocando no debate as questões estruturais e conjunturais que envolvem a realidade dos camponeses. O FONEC/2012 aponta uma preocupação com a formação profissional por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego (PRONATEC) para o campo, que foi apresentado pelo governo federal como uma conquista dos povos do campo, no processo de democratização do acesso ao ensino no meio rural, e que passa a se integrar à política educacional brasileira; trata-se, porém, muito mais de uma ferramenta da estratégia de construção da hegemonia da agricultura capitalista, focalizada na preparação de mão de obra para o trabalho mais desqualificado que o agronegócio demanda.

Frente a esse desvio de foco por parte dos implementadores desse programa, é necessário (re)afirmar que o debate da educação profissional, na perspectiva da Educação do Campo, implica assumir a possibilidade da formação específica para o trabalho no/do campo desde uma lógica de desenvolvimento cuja centralidade está no trabalho, na apropriação dos meios de produção pelos próprios trabalhadores, e na terra como meio de produzir vida e identidade, e não como negócio (CALDART, 2009). Assim, a formação profissional não pode estar desvinculada da luta social pela Reforma Agrária e da construção e difusão de uma matriz científico-tecnológica para o desenvolvimento do campo.

29 Esse Decreto dispõe sobre a política de Educação do Campo e sobre o Programa Nacional de

Educação na Reforma Agrária – PRONERA. Ele dá legitimidade à Educação do Campo, consequentemente, à luta dos povos do campo pela garantia de direitos.

Nesse sentido, um dos desafios das políticas públicas de desenvolvimento do campo no Brasil é pautar o trabalho na perspectiva da produção de alimentos baseados na reprodução da vida, contrapondo-se à lógica do capital, da agricultura capitalista. Caldart (2009) enfatiza que os movimentos camponeses da Via Campesina Brasil têm pautado a soberania alimentar como princípio organizador da agricultura; a democratização da propriedade e uso da terra, (re)afirmando a necessidade da Reforma Agrária, de uma nova matriz produtiva e tecnológica de base agroecológica e uma nova lógica organizativa da produção, baseada na cooperação. Essa lógica exige visão de totalidade, domínio dos processos produtivos e formação que permita a (re)apropriação do processo de produção pelos trabalhadores camponeses, sem a perda dos meios de produção.

No entendimento de Caldart (2011), a elaboração de uma política de educação profissional do campo passa por três grandes dimensões de práticas e de debates. A primeira está vinculada ao debate e à construção teórico-prática de uma nova matriz científico-tecnológica para o trabalho no campo, na lógica da agricultura camponesa sustentável como propõem os movimentos sociais da Via Campesina. A segunda refere-se à contextualização dessa matriz no contexto mais amplo de transformações das relações sociais e da luta contra o sistema hegemônico de produção. Por sua vez, a terceira centra-se nas questões das especificidades e das necessidades socioculturais e econômicas de seus sujeitos concretos.

Segundo Sá, Molina e Barbosa (2011, p.12), “uma concepção transformadora de educação profissional não prescinde, portanto, da perspectiva de emancipação social dos trabalhadores e da superação das relações sociais de produção capitalistas”. Desse modo, a formação dos camponeses necessita estar articulada com a transformação do modelo de desenvolvimento hegemônico no campo e com as mudanças na sociedade brasileira, no sentido de colocar a educação a serviço da construção de uma nova lógica de produção vinculada às necessidades alimentares da população. Para isso, exigem-se políticas públicas de desenvolvimento do campo que sejam capazes de instrumentalizar os trabalhadores rurais, especialmente os/as jovens, para fazerem suas escolhas de ficar no campo ou sair dele, mas que tenham condição de ajudar na construção de um projeto social em que todos possam produzir com dignidade suas condições materiais de existência.

Nessa perspectiva, o papel das políticas públicas de educação e de juventude do campo é fundamental na definição dos projetos de futuro/vida dos/das jovens camponeses/as. Portanto, esse foi um aspecto importante contemplado no processo investigativo das estratégias de reprodução social e dos encaminhamentos dos projetos de futuro/vida dos/das jovens dos assentamentos Marrecas e Nova Esperança, no intuito de identificar se as políticas públicas de juventude contribuem ou não para a reprodução social desses/as jovens e qual tem sido o papel da educação na elaboração dos seus projetos de futuro/vida.

IV O LÓCUS DA PESQUISA E AS TRILHAS METODOLÓGICAS

(...) Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no universo (...)30 Por isso a minha aldeia é tão grande

Como outra terra qualquer Porque eu sou do tamanho do que vejo E não do tamanho da minha altura (...)

(Alberto Caeiro)

Os versos de Alberto Caeiro me servem de entrada para o texto sobre o lócus da pesquisa, comungando da ideia de que “da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no universo (...). Porque eu sou do tamanho do que vejo. E não do tamanho da minha altura”. Nesse sentido, sentimos, vemos e vivemos muito além de nossa aldeia. Assim sendo, passo, então, a descrever o lócus da investigação, os lugares dos quais se fala nesta tese. Uma realidade rural da Bahia, na microrregião de Guanambi, fruto da luta dos povos do campo, permeada de contradições, logo as narrativas tecidas sobre essa realidade divergem das narrativas que, hegemonicamente, caracterizam o rural, estigmatizado como espaço do atraso, da tradição e impermeável às mudanças. Meu olhar sobre o espaço da investigação foi se ampliando, gradativamente, a partir da minha imersão no campo de pesquisa. Colocar-me nesse contexto, proporcionou viver a experiência dos sujeitos pesquisados, seja pela observação, seja por meio das narrativas dos sujeitos, das confidências, do dito e do não dito presentes no cotidiano dos/das interlocutores/as do estudo. Na qualidade de pesquisador, reconheço que levei informações que, mesmo silenciosas, falam pela presença naquele lugar.

Assim sendo, a minha inserção nos assentamentos Marrecas e Nova Esperança (dormir, amanhecer, frequentar espaços de convivência, de lazer, de acesso ao conhecimento) foi de fundamental importância no sentido de compreender o lugar da fala dos/das interlocutores/as da pesquisa, seus sonhos, seus desejos, suas angústias, seus desafios, e nutri-me das condições para compreender os elementos componentes da constituição social dos/das jovens no contexto desses espaços. Os diálogos estabelecidos com os/as interlocutores/as e outros moradores dos assentamentos durante a pesquisa de campo subsidiaram significativamente a

30 Poema O guardador de rebanhos de Alberto Caeiro – Fernando Pessoa. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/1486. Acessado em: 15/05/2014.

compreensão de como os/as jovens constroem seus modos de vida, seu ser jovem de assentamento rural da Reforma Agrária, e a constatação de que, por sua vez, não são isolados do restante do mundo.

Os dados a seguir, referentes aos assentamentos, foram coletados por meio do acesso a atas de reuniões da Associação dos Trabalhadores Rurais dos assentamentos já mencionados; entrevista com o presidente de cada Associação (2012); conversas informais entre o pesquisador e os moradores das comunidades pesquisadas. Além dessas fontes, dados foram extraídos do DVD “Dez anos do Assentamento Marrecas”, produzido pela FETAG Polo Guanambi e Associação dos moradores do assentamento (2010).