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Modos de Relação com a Música

No documento Gostos e disposições musicais (páginas 42-52)

1. Música, Músicos e Ouvintes

1.3. Modos de Relação com a Música

Campos (2008) desenvolveu uma abordagem sociológica na área da música, escrutinando contornos de relações sociais e de expressões culturais associadas à produção musical. Tendo como unidade de análise os músicos profissionais (compositores e intérpretes), e perspetivando a música enquanto atividade profissional, desenvolveu o conceito de modos de

relação com a música, através do qual sistematizou e evidenciou as

diferentes formas como as pessoas concebem e interpretam as relações que estabelecem com a música.

Com base num inquérito por entrevista aplicado a vinte e quatro músicos profissionais, construiu uma tipologia de modos de relação com a música capaz de orientar a análise de situações empíricas assente em três planos conceptuais, concretamente: competências e contextos de aprendizagem

musicais, importância relativa da música no contexto da performance musical, e papéis da música nas relações consigo, com o público e em sociedade. Estes planos conceptuais desdobram-se posteriormente em treze dimensões analíticas que, funcionam como indicadores relevantes no escrutínio e avaliação dos diferentes modos de relação com a música. Segundo o autor, tratou-se de substantivar a relação que os músicos estabelecem com a música, parametrizando a estrutura de disposições (estruturadas e estruturantes) mais diretamente implicadas no campo musical, e potenciando uma avaliação quer dos contextos de atualização do

habitus (nos planos cognitivo, formativo, relacional e reflexivo), quer

enquanto elemento constitutivo dos processos sociais implicados numa produção cultural com grande projeção mediática (Campos, 2008:194). A análise empírica aferiu um conjunto alargado de características em torno dos três planos conceptuais considerados, que permitiram identificar um eixo com dois pólos: o essencial e o relacional.

O modo essencial evidencia o que é intrínseco ao campo estritamente musical, nomeadamente, um forte investimento no estudo musical no que respeita ao nível de formação de competências musicais; a supremacia do que é estritamente musical relativamente a outras componentes performativas, no que concerne à conceção da prestação musical e da presença em palco; e o privilégio do prazer musical e do ato criativo, negligenciando o papel do público e as componentes mais relacionais e comunicativas, no que respeita aos papéis da música nas relações consigo com o público e em sociedade.

No pólo oposto, o modo relacional evidencia o estabelecimento de articulações com terceiros, a componente comunicativa e a interação com o outro ao nível das pessoas e dos domínios disciplinares, nomeadamente, privilegiando a tradição oral e a aprendizagem em contextos informais, no que respeita ao nível de formação de competências musicais; concebendo a performance musical e a presença em palco como multidimensionais que

permitem acionar diversos meios de expressão e comunicação, no que concerne à conceção da prestação musical e da presença em palco; e o privilégio da comunicação e partilha relativamente ao ato criativo, no que respeita aos papéis da música nas relações consigo com o público e em sociedade.

Entre aqueles pólos, foram considerados tipos mistos de modos de relação com a música, os quais deram origem a um índice que autonomizou cinco tipos de relação com a música: relacional; misto pró-relacional; misto;

misto pró-essencial; e essencial.

No essencial, Campos verificou uma relação bastante significativa entre os géneros musicais considerados e os distintos modos de relação com a música. Segundo o estudo, a área do pop/rock situa-se nos tipos relacional e pró-relacional, a área do fado situa-se nos tipos misto pró-relacional e

misto, os músicos tradicionais não fadistas situam-se no tipo misto pró- essencial, os músicos académicos com a dominância do tipo misto pró- essencial, e os músicos jazz situam-se nos tipos misto pró-essencial e essencial.

Embora referindo-se aos músicos profissionais e não aos consumidores de música, Campos acabou por deixar também um contributo significativo à compreensão da construção e atualização do gosto musical, atestando a relação entre géneros musicais e modos de relação com a música, constatando que os músicos profissionais são provenientes de contextos familiares melómanos, onde o contacto com a música é frequente e fomentado através da audição de fonogramas, da frequência de prestações musicais ao vivo, e de práticas musicais amadoras, bem como indiciando uma relação entre géneros musicais e origens sociais.

Embora construído para analisar músicos profissionais (compositores e intérpretes), segundo o autor, a utilidade da tipologia de modos de relação

ser utilizada na análise de outros campos de produção cultural, bem como aplicado aos amantes de música ou mesmo às pessoas em geral.

Assim, uma das formas possíveis de avançar no conhecimento do campo da música poderá passar pela aplicação da tipologia de modos de relação com

a música proposta por Campos aos fruidores musicais. Acionar a tipologia

de modos de relação com a música parece constituir uma boa opção, no sentido de parametrizar as preferências dos indivíduos em termos de fruição musical, e assim compreender a construção e atualização do gosto musical.

Com base no modelo desenvolvido por Campos (2008) é possível construir um modelo de análise que permita dar conta da relação que as pessoas estabelecem com a música.

Num primeiro plano relativo às competências e contextos de fruição musical, importará levar em conta o modo de relação com a música no que respeita às competências musicais e respetivos contextos de aquisição, bem como, o modo de relação com a música no que que respeita aos contextos de fruição musical (produção e/ou consumo).

Para tal devem ser consideradas várias dimensões analíticas, tais como: as competências musicais, o tipo de aprendizagem musical, a regularidade da audição e da prática musical, as companhias na fruição musical, os meios de audição, e a frequência de eventos musicais.

Para além de ouvintes as pessoas podem adquirir competências musicais que lhe permitem ser também praticantes de música. A aprendizagem musical pode ser assim inexistente, o que significa a ausência de qualquer contacto com o ensino musical, informal quando o contacto com a formação/aprendizagem acontece em contextos informais, por exemplo em família ou com amigos, ou formal quando existe a frequência de ensino musical em contextos formais, por exemplo academias ou outras escolas de música.

Seja como for, no que respeita à regularidade e intensidade do consumo musical, poderá dizer-se que existem consumidores de música ocasionais, regulares, ou assíduos.

Uma consideração importante respeita às competências musicais de cada pessoa, os que são praticantes de música e aqueles que são apenas ouvintes, embora ambos possam ser entendidos como fruidores, uma vez que a prática musical apesar de se enquadrar no campo da produção, não deixa por isso de constituir uma forma de fruição musical.

Relativamente aos praticantes existem ainda diferentes formas de produzir/reproduzir música que podem ser dispostas em três modalidades distintas: as práticas musicais profissionais, que podem ser práticas musicais profissionais editadas (que albergam os profissionais com obra editada, aqueles que assinam um projeto artístico e musical), e as práticas musicais profissionais não editadas (que albergam os profissionais sem obra editada, aqueles que, por exemplo, abrilhantam espaços de restauração e lazer); as práticas musicais amadoras, que remetem por um lado, para o universo dos músicos não profissionais (aqueles que não fazem da música uma atividade profissional, onde se englobam, por exemplo, as práticas musicais da bandas filarmónicas das coletividades ou as práticas do cante alentejano, entre outras), e por outro lado, para as práticas musicais sem visibilidade pública (aquelas que se desenvolvem em casa com menos difusão pública, por exemplo, a aprendizagem de qualquer instrumento musical, ou o simples facto de tocar um instrumento no seio familiar); e outras práticas musicais que não se enquadram nas situações anteriores, como é o caso das práticas musicais associadas ao sistema de ensino obrigatório.

Como ouvintes, o contacto das pessoas com a música pode ir desde os consumidores indiferentes, até aos fãs incondicionais, existindo entre estes pólos diversos fatores de variação, que passam, por exemplo, pelos locais de audição, contextos de audição ou tipo de fruição musical.

Para aqueles que, para além de ouvintes também se dedicam à produção musical, este contacto com a música pode ir desde aqueles que se dedicam à prática esporádica de qualquer instrumento musical, até aos músicos profissionais que podem ser simultaneamente os mais ecléticos dos melómanos.

Embora o possam fazer individualmente as pessoas podem ouvir ou praticar música com diversas companhias, que podem ir desde a família aos amigos, passando por grupos socias ou até mesmo por multidões de desconhecidos, como acontece nos concertos. As formas mais comuns de consumo musical passam pelo consumo individual, o consumo em grupos de sociabilidade e a frequência de espetáculos musicais, modalidades que globalmente se enquadram no que Paula Abreu (2000) identifica como os três principais tipos de práticas culturais: consumo doméstico, práticas de saída, e participação em atividades culturais especializadas.

Como foi referido, a música cerca as pessoas nos mais variados contextos e espaços, através dos mais variados meios de audição. As novas tecnologias de reprodução e consumo vieram alterar consideravelmente o espaço musical. Atualmente as pessoas dispõem dos mais variados suportes musicais e equipamentos audiovisuais, onde se pode aceder de uma forma rápida e gratuita à música, que vão desde os tradicionais rádios e televisão, até ao telemóvel ou internet.

Para além da música gravada existe a música ao vivo, que pode acontecer numa diversidade de eventos musicais. Paula Abreu (2004) refere que os eventos culturais em Portugal assumem duas expressões fundamentais: a organização de festas multifacetadas e a produção de festivais, os quais considera eventos culturais mais ou menos especializados, de duração limitada, em espaços circunscritos e de ocorrência regular.

A autora agrupou os espetáculos musicais em três categorias, que designou como espetáculos de agenda, festas e festivais. Os espetáculos de agenda albergam as atividades dos agentes culturais cuja programação se

desenvolve regularmente, sendo por isso mais constantes em termos de calendarização; as festas acolhem celebrações que podem ser religiosas, cívicas, populares ou académicas; e os festivais são eventos culturais com uma intensa programação musical, que acontecem em espaços e tempo delimitados.

Um segundo plano conceptual da fruição musical diz respeito à importância relativa da música no contexto da fruição musical. Este plano visa parametrizar o grau de influência e a capacidade que a música, propriamente dita, poderá desempenhar na estruturação dos contextos de fruição musical das pessoas.

Importa levar em conta dimensões analíticas como: a importância relativa da música gravada e da música ao vivo no quadro da fruição musical, importância relativa da prática musical e da audição de música no quadro da fruição musical, importância do género musical, presença da música no quotidiano, e condições de audição.

Para além daquela que é produzida pelos próprios, a música também se coloca ao dispor das pessoas através de música gravada ou música ao vivo. Certamente que a preferência e importância atribuída a estas duas modalidades de fruição musical diferem de individuo para individuo, e têm pesos diferentes no quadro da fruição musical. No mesmo sentido, também a prática de música e a sua audição assumem diferentes pesos no quadro da fruição musical.

Existe uma enorme diversidade de géneros musicais aos quais os indivíduos são transversais. Para além da dificuldade na definição dos géneros musicais, existe ainda uma multiplicidade de classificações disponíveis, que os agrupam de forma diferenciada consoante os objetivos de quem propõe tais classificações2.

2 Uma das classificações de géneros musicais disponibilizada na enciclopédia livre Wikipédia dá conta de cento e trinta e seis subgéneros musicais, agrupados em três grandes géneros: a música eletrónica, a música erudita, e a música popular.

No plano da produção musical, Campos (2008) constatou uma razoável correspondência entre os vários géneros musicais praticados e distintos modos de relação com a música, correspondência esta que também se poderá estender ao plano da fruição musical.

Embora a presença da música no quotidiano das pessoas seja uma realidade, esta presença acontece em diferentes proporcionalidades. A música pode ter uma presença quase constante para alguns, por exemplo para aqueles que não prescindem de ouvir música no emprego, nas viagens ou em casa, mas pode também ter uma presença muito discreta nos casos daqueles que apenas ouvem música enquanto circulam em determinados espaços públicos, ou enquanto assistem a qualquer programa televisivo em que a música está presente como adereço.

Numa análise mais fina, ainda é possível diferenciar os ouvintes pelas condições de audição, ou seja, aqueles que ouvem música através de qualquer aparelho reprodutor de som, sem qualquer preocupação com a qualidade deste mesmo som, e aqueles que investem em tecnologia para melhorar significativamente as condições de fruição musical.

Num terceiro plano conceptual da fruição musical reservado aos papéis da música nas relações consigo e em sociedade, importará perceber a tendência do sentido que é atribuído à interação que se estabelece com a música, quer seja mais individual ou coletiva.

Para tal consideram-se dimensões analíticas como: o papel da música na construção da identidade, os sentimentos provocados pela música, a função da música no quotidiano, a importância da música nas relações familiares, a importância da música nas relações de amizade, ou o papel da música na sociedade.

O fascínio pela música remete para processos de construção e afirmação de identidades, na medida em que através da música se constroem valores, representações, gostos e estilos de vida. Por exemplo, Tia de Nora (1986)

refere-se à música como uma tecnologia de identidade, emoção e memória, a respeito do papel da música em relação à construção do eu. No mesmo sentido António Concorda Contador (2001), refere a propósito de um estudo sobre a cultura juvenil negra em Portugal, que a música africana remete para referências instrumentalizadas, ou operacionalizadas, no âmbito da consubstanciação de um quadro mais lato de referências à “cultura das origens”, à “etnicidade” e à “terra- mãe”, passando pela reinterpretação de simbologias ligadas aos PALOP, mas indo para além disso, ao abrir o leque de hipóteses de reapresentação de referências às mais variadas simbologias ligadas a África.

A carga afetiva que a música transporta e transmite pode despertar os mais variados sentimentos nas pessoas. A este respeito, parece ser pacífico que a música suscita sensações e emoções, mas na verdade, esta visão da música enquanto objeto promotor de sentido, de sensações e emoções não é assim tão consensual. Embora alguns autores não aceitem esta associação entre a música e sentimentos, outros fazem questão de realçar o valor expressivo da música.

Apesar das diferentes abordagens, parece consensual que a música possui um elevado valor expressivo, que produz efeitos nas pessoas, e que sobre ela as pessoas desenvolvem uma série de convicções e crenças.

A música pode desempenhar determinadas funções no quotidiano das pessoas, para alguns poderá funcionar apenas como divertimento e entretenimento, mas para outros a música poderá desempenhar papéis mais relevantes, ou seja, pode funcionar como meio de comunicação, de expressão sentimental, de representação simbólica, ou até mesmo de subsistência, no caso daqueles que fazem vida da música.

Muitas das vezes o gosto pela música nasce no seio familiar e assume um papel relevante nas relações familiares, quer seja através das práticas musicais, quer seja no âmbito da fruição musical, e mesmo sem se darem conta as pessoas reforçam os laços familiares por intermédio da música. Tal

como acontece nas relações familiares, também nas relações de amizade a música pode desempenhar um papel relevante. É natural que o gosto pela música aproxime as pessoas, principalmente quando as preferências por determinados géneros musicais, por determinados intérpretes ou modalidades de fruição musical são comuns.

Para além do papel que a música desempenha na vida de cada pessoa, existe também um papel da música na sociedade, que pode funcionar, entre outros, como divertimento e entretenimento, como fator de identificação cultural ou até mesmo como mecanismo de controlo social. Embora os contributos apresentados permitam perceber que a construção do gosto musical possa estar associada a diferentes contextos socioculturais de pertença social e à influência do universo familiar, parece claro que outros contextos e processos possam também eles explicar a construção e atualização do gosto musical. Por exemplo, a frequência de alguma forma de ensino musical, as redes de sociabilidade, alguns acontecimentos específicos da vida das pessoas, ou até mesmo as próprias orientações

sociais dos indivíduos. É natural que a aprendizagem de música em

contexto familiar ou escolar, o grupo de amigos, uma relação amorosa ou a frequência de determinados espaços, sejam acontecimentos potenciais de intervenção na estruturação, construção e atualização do gosto musical. Sinteticamente, o campo musical e particularmente o plano da fruição musical, compreende um diversificado conjunto de processos sociais associados ao gosto musical. Interessa por isso escrutinar a construção e atualização das disposições musicais acionando as tipologias de modos de

No documento Gostos e disposições musicais (páginas 42-52)