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Orientações sociais

No documento Gostos e disposições musicais (páginas 36-42)

1. Música, Músicos e Ouvintes

1.2. Orientações sociais

Numa perspetiva diferente de Lahire, também José Luís Casanova (2004) considera que a análise de Bourdieu compreende algumas limitações, tais como: constituir um obstáculo à avaliação da capacidade verificável dos homens refletirem e agirem pró-ativamente sobre si próprios, sobre o seu comportamento social e sobre o meio em que vivem; não tratar efetivamente a relação entre disposições e reflexibilidade; e não tratar efetivamente a relação entre o habitus e a transformação social.

Assim, a partir da análise de Bourdieu e também das suas limitações, Casanova desenvolveu uma abordagem formalizada às naturezas sociais através da definição do conceito operativo de orientações sociais. Nesta abordagem, as orientações sociais são definidas na esfera sociocultural enquanto crenças sobre as condições sociais de vida, socialmente estruturadas e estruturantes de valores, representações e práticas sociais. Casanova começa por introduzir a noção de “orientação” em alternativa à noção de “disposição” usada por Bourdieu, não só pela sua tradição sociológica, mas sobretudo para contornar uma certa parcialidade associada à noção de “disposição”, que advém da dominância quase exclusiva do inconsciente, do automatismo na ação e na reprodução social. O autor introduziu a designação de “orientações sociais” no sentido de objetivar orientações de acordo com um modelo mais relacional, e assim evidenciar orientações que se revelem estruturadas e estruturantes.

“Falar em orientações sociais significa, desde logo, focalizar um conceito relacional e plural em vez de substantivo, designando-se assim uma estrutura que não implica uma essência. As orientações sociais constituirão tanto uma resultante como uma condição das relações sociais e devem, portanto, ser compreendidas num plano analítico equivalente ao das relações sociais e não no exterior destas relações” (Casanova, 2004:17). Casanova define as orientações sociais como orientações relativas às condições sociais de vida, na medida em que as disposições relativas às condições sociais de vida são disposições mais estruturais, centrando por isso a sua operacionalização em crenças sobre as condições sociais de existência. As orientações sociais tal como Casanova as define, são orientações naturalizadas nos indivíduos, ou seja, orientações que os indivíduos interiorizaram e passaram a considerar como naturais. Considera-as “naturezas sociais típicas”, que podem funcionar como matrizes de comportamentos e ideias, em sentido semelhante ao de

Bourdieu quando empregou a expressão “quase naturezas” referindo-se ao

habitus.

Segundo Casanova as orientações sociais não são nem representações sociais, nem regras, nem valores, nem normas no sentido que habitualmente é dado a estas noções. “Representam relações particulares decisivas dos agentes com a expressão cognitiva, valorativa e normativa, relações estas que têm a particularidade de terem sido naturalizadas. Sob esta definição, as orientações sociais podem integrar-se mais corretamente naquilo que os autores clássicos chamam ‘os costumes’ quando procuravam distinguir entre aspetos culturais naturalizados por um lado, e normas ou valores por outro lado” (Casanova, 2004:19).

Considerou duas perspetivas na conceção das “condições sociais de vida”, por um lado a condição social dos agentes ou posição social é associada ao tipo de ação que desenvolvem, por outro lado, esta condição social ou posição social é explicada pelos constrangimentos inerentes à estrutura das desigualdades e funções sociais. Desta forma, considerou que as avaliações que os indivíduos fazem sobre o alcance da sua ação, e sobre a inevitabilidade da desigualdade social decorrente das diferenças de condições e funções sociais, devem ser tidas em conta na operacionalização das representações naturalizadas relativas às condições socias de vida. A estes dois tipos de avaliação Casanova deu o nome de orientação da ação e orientação relativa à desigualdade social, estabelecendo assim duas dimensões analíticas para as orientações sociais, que alimentam antigas polémicas existentes nas ciências sociais: entre o ser e o meio, o pessoal e não pessoal, a subjetividade e as estruturas pré-subjetivas, o individual e o coletivo.

No que respeita à orientação relativa à desigualdade social pretendeu distinguir as pessoas que consideram que é sempre possível diminuir a desigualdade social daquelas que pensam que a desigualdade social é inevitável. Relativamente à orientação da ação pretendeu distinguir as

pessoas que fazem uma avaliação positiva da consequência social da ação dirigida por objetivos, dos que manifestam descrença relativamente à consequência social desse tipo de ação.

Desta forma, Casanova aferiu a maneira de pensar dos indivíduos, registando a avaliação que fazem sobre si próprios e distinguindo por um lado, orientações de inconformidade e de conformidade relativamente à desigualdade social, e por outro lado, orientações pró-ativas e não pró- ativas relativamente à ação.

No que respeita às orientações relativas à desigualdade social, considerou a avaliação de que “a desigualdade social é inevitável” como representação da conformidade naturalizada com a desigualdade, e distinguiu orientações de conformidade e de inconformidade perante as desigualdades sociais. Relativamente à orientação da ação, considerou a conceção de que “a nossa posição social depende sobretudo de agirmos em função de objetivos”, e distinguiu orientações socialmente pró-ativas baseadas numa avaliação positiva da consequência social da ação dirigida por objetivos e orientações socialmente não pró-ativas baseadas na descrença na consequência social desse tipo de ação.

Posteriormente articulou num único conceito a orientação da ação e a orientação relativa à desigualdade social, viabilizando desta forma a observação da constituição de um sujeito em relação com o meio, e construindo um índice de orientação social.

Neste índice foram consideradas cinco modalidades representativas das

orientações sociais: igualitários pró-ativos, não igualitários pró-ativos, igualitários não pró-ativos, não igualitários e não pró-ativos e aqueles que

não responderam a pelo menos uma pergunta.

As orientações sociais são estruturadas em diferentes condições sociais de vida, quer sejam em diferenças de posição ou origem social, quer seja em

tipos de trajetórias e sociabilidades, e por outro lado, são estruturantes de valores, representações e práticas sociais.

O facto de cada modalidade de orientação social se associar em grande parte, a determinados valores e representações, e o facto da ordenação fixada das modalidades de orientação social se associar a graus diferentes de reflexibilidade social e envolvimento societal, permite aferir o aspeto relacional e progressivo das orientações sociais.

Casanova desenvolveu um conceito mais relacional, onde o carater socialmente estruturado das orientações sociais associado às diferentes condições sociais de vida reforçam a racionalidade das orientações sociais, na medida em que justificam a relação estabelecida entre as pessoas e o mundo social, ou seja, o estatuto da racionalidade pode encontrar-se nos diversos traços sociais que estão associados a cada tipo de orientação social.

Por outro lado, introduziu a possibilidade de reflexão na orientação da ação, reforçando assim a dimensão reflexiva das orientações sociais, ao mesmo tempo que se distancia do cunho essencialista associado à noção de inconsciente constante no habitus.

A relação do habitus com a problemática da mudança social é outra das questões que Casanova considera merecer algum desenvolvimento, na medida em que o habitus tende a circunscrever-se apenas à reprodução social, minimizando algumas questões relativas à mudança, entre outras, a permanente premência da socialização e da interação ou a incorporação do novo. Neste contexto procurou maximizar tais questões definindo o conceito de orientações sociais na articulação entre a sociologia das classes sociais e das desigualdades, e a sociologia da cultura, e desta forma conseguiu agregar no mesmo conceito as ideias de mudança cultural e mudança social.

Embora reconheça que Bourdieu procurou identificar habitus subjacentes a conjuntos de práticas e representações sociais sistémicas e cumulativas, que sustentam a plausibilidade do sistema de disposições, Casanova considera esta abordagem carente de desenvolvimentos teóricos e metodológicos significativos, e por isso: “insuficiente quando se pretende avaliar mudanças nos habitus individuais ou de setores sociais particulares, quando se quer verificar a formação de disposições determinadas em posições sociais diversas, ou quando interessa ponderar graus diversos de reflexibilidade em atores sociais diferentes, por exemplo” (Casanova, 2004:16).

No sentido de ultrapassar os problemas de operacionalização que o conceito de habitus encerra, Casanova investiu numa estratégia de operacionalização do conceito de orientações sociais que permitisse observar disposições mais estruturais, tendo para isso definido as

orientações sociais como orientações relativas às condições sociais de vida,

dado que as disposições mais estruturais são as disposições relativas às condições sociais de vida.

Casanova construiu assim um conceito mais operacionalizável, através de duas dimensões analíticas aferiu as avaliações que os indivíduos fazem sobre o alcance da sua ação e sobre a inevitabilidade da desigualdade social, simplificando desta forma a operacionalização do conceito, ao mesmo tempo que vai ao cerne da questão das naturezas sociais e da sua estruturação em desigualdades sociais.

Apesar da consistência do conceito de orientações sociais ter sido verificada empiricamente quer nível da sua estruturação na consistência entre os diferentes tipos de orientação social e determinadas condições objetivas de vida, quer a montante na consistência dos diferentes tipos de orientação social com algumas práticas, valores e representações sociais, foram sobretudo aferidos valores, práticas e representações sociais

diretamente implicados naquilo que o próprio conceito pretendeu medir, ou seja, atitudes face às desigualdades sociais e pró-atividade social.

Assim, aplicar este conceito noutras dimensões da vida social, noutras práticas, valores e representações sociais, parece representar um contributo importante ao desenvolvimento desta abordagem às naturezas sociais. Sendo as orientações sociais consideradas orientações naturalizadas nos indivíduos, crê-se que possam também estar associadas aos diferentes modos de fruição musical.

Serão as orientações sociais estruturantes dos gostos musicais? Existirá alguma relação entre as diferentes orientações sociais e os distintos gostos musicais, e as diversas formas de fruição musical?

No documento Gostos e disposições musicais (páginas 36-42)